quarta-feira, 1 de abril de 2009

HEITOR


Naquele dia, cinzento como o eram todos por muito que o sol brilhasse, Luís entrou no prédio e dirigiu-se para o elevador, que repentinamente se abriu, surpreendendo-o. Lá dentro estavam o Heitor e o Sr. Afonso, que, com o braço esticado, segurava a porta para que ele entrasse:
– Ia subir, mas apercebi-me que alguém estava a chegar. Entre. Entre, ele não faz mal. Pode estar à vontade.
– Obrigado. É muito bonito o seu cão – sussurrou Luís, receoso.
– Chama-se Heitor. Pode tocar. Faça-lhe festas que ele não ferra. É muito brincalhão e estouvado, mas não faz mal a uma mosca.
– É melhor não – disse Luís, que, com as pernas trémulas e as mãos escondidas dentro dos bolsos, se encostou receoso a um canto do elevador.
– Não se atemorize, homem, já lhe disse que ele não faz mal e além disso eu estou aqui – a severidade no tom da voz denotava censura pelo medo que visivelmente se apoderara de Luís. – Vai para o terceiro não vai? Eu vou para o quarto, moro no andar por cima de si. O meu nome é Afonso.
– O meu é Luís – as palavras juntaram-se a custo num ciciar pálido e a pele branca da cara enrubesceu, salpicada pelos tons vermelhos do pavor.
Enquanto afagava tranquilo o suave dorso de Heitor, O Sr. Afonso fixou de soslaio o seu timorato vizinho, sem se preocupar em disfarçar um olhar de desprezo.
Os segundos que o elevador demorou a chegar ao terceiro andar pareceram uma eternidade.
Pequenas gotas de suor frio nasciam ao cimo da testa, envergonhadas, escondidas entre os primeiros cabelos. Sentia comichão, mas naquele instante estava paralisado. Luís temia que alguma mais atrevida descesse testa abaixo, expondo a tibieza do seu carácter, mas, apesar disso, não tirava as mãos dos bolsos. Esmagado entre os perturbadores olhos azuis – um azul gélido – com que aquele imponente animal o fitava e o esgar de desdém estampado no rosto do dono, Luís perdia forças, mingava, quase desfalecia, cedendo à força do medo. Martírio silencioso!
«Não, não posso. O que vai ele pensar de mim? Se já considera que sou um tremendo cobarde, um medricas sem coluna vertebral, o que não pensará se eu desmaiar aqui á sua frente. Amanhã toda gente do prédio saberá quão fraco e insignificante sou. Meu Deus, porque demora tanto! O elevador está parado ou sou eu que estou fora de mim? Que vergonha! Que nojo! Que nojo tenho de mim!»
Naquela cabina do desespero, as unhas das mãos cravavam-se nas coxas com tamanha força que provocavam dor. Era como se a sua sobrevivência dependesse daquela pressão. Os músculos doloridos sofriam subjugados por aquele doentio cérebro que lhe aprisionava o corpo e o escravizava. As costas, para que as costelas se mantivessem unidas e não se desarticulassem, forçava-as contra a parede, e o pescoço inerte, vergado pelo peso da cabeça, tombou para o lado como um peru bêbado.
– Já está no seu andar. Vá lá… desta safou-se com vida! – chacoteou o Sr. Afonso apontando o dedo para a luz com o número três.
Luís saiu apressado, balbuciando atabalhoado um imperceptível:
– Adeus… e bom dia.
Luís tinha 30 anos, o corpo magro, estatura média, olhos castanhos docemente lânguidos e encovados, cabelo escuro, pele clara, embora um pouco amarelada. Era frágil e não aparentava gozar de muita saúde. Estava casado há seis anos com Lúcia e tinham um filho de 4.
Era um indivíduo introvertido, inseguro, enclausurado nos seus pensamentos e medos. Chicoteado pela sua enorme falta de auto-estima, sentia cada dia da sua vida como um castigo divino; sempre que a atenção dos outros pousava em si – mesmo que casualmente – era porque o reputavam de imbecil, horroroso, palhaço. Tudo servia para se autoflagelar; considerava-se uma nódoa, alguém incapaz de despertar o interesse dos outros, uma nulidade. Um aborto. Apenas mais um erro da natureza.
Muitas vezes o assaltavam receios que lhe atormentavam o coração:
«Não entendo o que a Lúcia viu em mim! Não sou homem para ela. Sou feio, não tenho atributos físicos, salvo esta bela fileira de alvos dentes que brilha mais que a dentadura do Joly Jumper, não tenho dinheiro nem inteligência digna de realce. Não a trato bem! Não sou carinhoso. Sou amargo, amargurado, taciturno, capaz de passar o dia sem lhe dirigir palavra, como se ela não existisse! O mais provável é que venha a encontrar alguém que a mereça e me abandone. Também… com um marido assim, quem a poderá censurar? Eu não.»
Naquela época, Luís encontrava-se desempregado. Desde que casara já havia passado por três empregos. Em nenhum deles aguentou mais que um ano. Sempre que o despediam, entrava em casa com mal disfarçada tristeza e dizia:
– Acabou o contrato. Mandaram-me embora. Disseram que pretendem reduzir o numero de empregados, mas na realidade o que eles querem é alguém melhor que eu. Casaste com um falhado – sabia que os seus lamentos não comoviam a esposa. Sabia que lhe eram indiferentes, mas mesmo assim repetia-os como se de um ritual se tratasse.
– Só espero que não saias ao pai, meu filho – murmurava, enquanto afagava os caracóis castanhos do menino. – O mundo precisa de outro tipo de homens. Tu és bonito! Sais à tua mãe. As mulheres vão gostar de ti. Vais ser atraente e corajoso e não uma bosta como eu.
Lúcia já não suportava ouvir as suas lamúrias. Mantinha-se em silêncio, triste, cozinhando o casamento em lume brando e derramando todo o seu amor sobre o filho. Os dias aconteciam inexoráveis, só a alegria e as traquinices do pequeno Miguel aligeiravam o peso do fardo em que a sua vida se tornara. Para o menino canalizava todas as suas esperanças num futuro melhor.
O que Lúcia não sabia era que o Luís em todas as empresas onde trabalhara tudo fizera para que não lhe renovassem o contrato. Não porque fosse malandro ou incompetente, mas simplesmente porque não queria estar rodeado de outras pessoas! Não suportava os seus olhares! Acreditava que as pessoas o consideravam um bobo, um coitadinho digno de piedade. Embora não fosse gago, quando tinha que prestar contas a alguém ou sujeitar-se a qualquer tipo de avaliação, por vezes gaguejava um pouco.
Um dia, no último emprego, o seu chefe, irritado, dirigiu-se a ele num tom firme e severo:
– Porra, homem! Você parece que receia a própria sombra! Está com medo de quê? Despache-se lá, idiota. Faça o que lhe disse – fora a gota de água.
«Não sei se vou aguentar até o final do contrato. Neste momento já devem estar todos a falar de mim:
– Viste a cara dele? Além de palerma é dócil – dirá um.
– Mais parecia um cachorro, quando leva um raspanete do dono – comentará outro.
– Este gajo, além de cagarola, é mas é um complexado de alta competição – criticará um terceiro.
Se vou agora embora, a Lúcia não me perdoa. Meu Deus… faz com que os dias passem depressa! Tira-me daqui! Torna-me invisível.»
Suportar as oito horas de trabalho mortificava-o: directamente do ruído das máquinas para a sua cabeça viajavam adjectivos como cadavérico, desprezível, falhado, imbecil, e os seus colegas de trabalho eram pequenos monstros que por vezes se cruzavam com ele soltando um hálito quente da boca e faíscas do olhar.
Os dias sucederam-se penosos até a libertação final: o desemprego.
Todas as manhãs, por volta das 9 horas, levava o filho à avó e voltava a correr para casa. Se adivinhasse com quem iria partilhar aquela penosa viagem até o terceiro andar, jamais teria entrado, mas o destino não o quis retardar um minuto e assim teve que sofrer a humilhação de mostrar ao Sr. Afonso o seu lastimoso carácter.
Ainda não restabelecido do susto, dirigiu-se imediatamente para a secretária, que – estrategicamente colocada num canto do seu quarto – era onde melhor se sentia, o seu ninho, o seu pequeno mundo, o local em que sem constrangimentos podia dar asas ao seu verdadeiro eu.
Escrever era algo que gostava de fazer. Extenuado, sentou-se em frente de uma folha de papel branco, ligou o rádio e como habitualmente divagou por entre considerações diversas, flagelando-se com juízos de valor sobre si e sobre o mundo que aos poucos lhe dilaceravam o ser. Era na dor que encontrava a sensação de estar vivo; era da sua vontade de morrer, da sua incapacidade para suportar o ar que respirava, que retirava a certeza de existir. Sem a dor não era ninguém! Não passava de um pedaço de ar morno insípido a vaguear invisível pelo mundo, monotonamente escondido nas costas de alguém.
No dia anterior, ouvira José Rodrigues dos Santos noticiar:
«No Porto, um grupo de jovens, que habitualmente se dedica a perseguir e maltratar homossexuais que se prostituem na zona do Campo 24 de Agosto, espancou severamente um transexual. No dia seguinte, voltaram ao local do crime e, vendo que o homem estava morto, atiraram o corpo para um fosso. O mais velho dos jovens tem 16 anos.»
«Se em vez de brancos e do Porto, os jovens fossem negros e da Amadora, seriam, com certeza, anunciados como um bando ou um gangue.»
Fora o único pensamento que lhe ocorrera, enquanto saboreava um delicioso prato de bacalhau à espanhola que Lúcia havia preparado.
A insensibilidade com que recebera aquela grotesca notícia, a forma como o paladar do bacalhau se sobrepôs ao impacto de tão vil acto, fê-lo sentir-se fútil e abjecto. Ele que tantas vezes criticava o ser humano, que tantas vezes o sentenciava, afinal não passava de um falso pregador de monólogos sentimentalistas!
Apoderou-se de si uma sensação de sufoco, sentiu um nó na garganta e o coração começou a doer mais… mais que o habitual. Na sua cabeça, passou repetidamente uma frase que em tempos ouvira num disco de José Mário Branco:
«Mãe. Eu quero desnascer! Mãe. Eu quero desnascer!»
De imediato, como se de um acto redentor se tratasse, pegou na esferográfica e escreveu:

Queimam os pés no solo que pisam,
Ferem os ouvidos os sons do quotidiano,
Cegam os olhos pela luz e claridade,
Envelhecem os pulmões pelo ar que respiram.

Lateja o sangue nas veias,
Barragens prestes a transbordar.
Barragens são ideias
E o sangue não tem sol, terra, música e ar.

E a terra queima,
O som quotidiano fere,
A luz cega
O ar envelhece.

Olham para o espelho e ele reflecte
Um rosto nem triste, nem desfigurado. Amorfo.
Um corpo como seios descaídos. Inerte.
O espelho é um rio e a figura o lodo.

Meus irmãos!
Pedaços gémeos de mim.

Todos assim… sou Eu.

Quando de repente ouviu Heitor ladrar bem alto…

Heitor era um Husky siberiano de porte médio com uma pelagem acinzentada, macia e densa, mas que não ofuscava as suas linhas bem definidas. O pêlo na cauda e no peito era de um branco puro, que contrastava com o cinzento no resto do corpo, o que, em conjunto com uns fantásticos olhos azuis, lhe conferia uma aparência apelativa de rara beleza. O seu porte altivo, o seu olhar gelado e a sua semelhança com o lobo faziam ressaltar em si a necessidade de liberdade e de espaço onde pudesse exibir todo o seu fulgor e energia.
O som vinha de fora do quarto e não parava. Era persistente e incomodativo, no entanto, teve o condão de interromper temporariamente o seu sofrimento. Dirigiu-se até a varanda, onde se deparou com uma cena no mínimo preocupante. Heitor estava apoiado sobre duas patas, com o corpo debruçado sobre o parapeito da varanda do quarto andar e, apesar de não o estar a conseguir, fazia um enorme esforço no sentido de subir até o topo.
Luís olhou para o cão e, receoso que este caísse, disse-lhe aflito:
– Vai para dentro. Olha que ainda cais lá abaixo. Podes morrer, Heitor, podes morrer.
O animal pareceu ter entendido, porque deixou de estar à vista, no entanto, Luís ouvia-o caminhar energeticamente de um lado para o outro, como se estivesse irritado, e, por vezes, também escutava o ruído das patas a arranhar na persiana. Nervoso, voltou a ladrar insistentemente enquanto uma vez mais se esfarrapava todo para tentar subir ao parapeito.
– Não faças isso bichinho. Pára. Olha que te vais magoar. Vá, olha para mim. Fala comigo – Luís fazia o que podia para o distrair.
– Tu não és um pássaro. Não vais conseguir voar.
Entretanto, na rádio começara a tocar uma canção dos Coldplay, que, curiosamente, teve o condão de acalmar Heitor. Fez-se silêncio.
«Provavelmente adormeceu» – pensou o Luís com um leve sorriso nos lábios.
Não conseguia entender como é que o Sr. Afonso era capaz de deixar Heitor preso num espaço tão exíguo.
Extenuado, entrou no quarto, deitou-se na cama e adormeceu. Já não tinha forças para pensar.
Quando acordou, passava das duas horas da tarde. Levantou-se meio ensonado e dirigiu-se à varanda para verificar se Heitor ainda lá estava preso. Felizmente não. A persiana estava subida, o Sr. Afonso já tinha voltado.
Impressionou-o bastante que aquele fantástico animal estivesse decidido a atirar-se de um quarto andar para a rua só para ser livre. Sem dúvida que uma varanda com cerca de dois metros e meio de largura por um de comprimento não era um local digno de tão nobre cão.
Há muito tempo que Luís vinha cristalizando em si uma ideia perversa que a ânsia de liberdade de Heitor ajudara a catalisar. Detestava-se! Não conseguia conviver consigo próprio nem com os outros! Sentia-se asfixiar na teia que o cérebro lhe montara. Para quê viver? Pelo Miguel? Amava o filho, mas estava certo que um dia mais tarde ele viria a ter vergonha do pai, sentia horror por isso. Pela Lúcia? Não. Lúcia merecia ser feliz! Merecia alguém melhor.
Naquele momento, não era mais que o escravo submisso de um cérebro poderoso e doentio, capaz de absorver e transformar o exterior em finas lâminas incandescentes que o queimavam e empurravam rumo ao suicídio.
Eram já cinco horas da tarde, foi à sala, pegou numa garrafa de uísque, encheu um copo e depois outro e outro e outro…
«Lúcia, não faças de comer para mim. Hoje chego tarde.»
Deixou o recado em cima da mesa da cozinha. Assim… sem mais.
Vestiu o fato-de-treino, o blusão, calçou as sapatilhas, bebeu mais um copo e saiu. Dirigiu-se vagarosamente para a marginal do rio Douro. Ainda era cerca de uma hora a pé. Tinha que fazer o tempo passar, não estava suficientemente escuro. No caminho, entrou no Torrado e tomou um café e um bagaço. Adorava café! Pediu mais um e saboreou-o até a última gota.
Já estava escuro, mas àquela hora muita gente regressava dos seus empregos. Era melhor esperar um pouco mais. Nessa altura já estariam todos a jantar.
Desceu até a margem do rio, sentou-se na areia e olhou para o céu. A lua infantilmente pálida e redonda iluminou o seu rosto com um sorriso triste.
A água reflectia a luz dos candeeiros da estrada; colunas de luz, paralelas, iluminavam o rio, indicando a Luís o caminho a percorrer. O destino era já ali, o fim estava a meia dúzia de passos. O seu fim! Escolhido por si, exclusivamente seu: frio, molhado, negro!
Tirou o blusão, as sapatilhas, o fato de treino e toda roupa interior. Nu e com os olhos marejados em lágrimas, entrou na água decidido a caminhar até que esta lhe inundasse os pulmões. Passo atrás de passo, cadenciadamente, foi afundando o corpo rio adentro. Já com a água pelo pescoço deu mais dois passos, ficou tapado e sem respirar. Continuou a sua caminhada, firme e determinado. Mais um passo e engoliu o primeiro gole. Só mais um e seria o fim… finalmente! Avançou, porém, em vez de descer, subiu um montinho de areia e depois outro e outro, o fundo do rio não era regular, começava a subir, de repente encontrava-se de novo com a cabeça à superfície. Respirava fundo, ganhava coragem para um novo impulso, quando ouviu, vindo da margem, o som de um cão a ladrar.
Conhecia aquela latir! Voltou a cabeça e viu aqueles belos olhos azuis apontados para si. Heitor, sempre a ladrar, atirou-se e nadou na direcção do Luís, que caminhou ao seu encontro. Quando se encontraram, ficaram imóveis, olhando-se fixamente em silêncio como duas estátuas retiradas em segredo do fundo do rio. Pela primeira vez Luís não tinha medo!
Voltaram para a margem e sentaram-se na areia, esgotados. Ainda nu, Luís encostou o seu rosto no focinho molhado de Heitor e abraçou-o. Com as calças do fato-de-treino enxugou os seus corpos e depois seguiram para a estrada.
«Como é que ele veio aqui parar?»
– Estás sozinho? Que é feito do teu dono?
Não demorou muito tempo a encontrar a resposta. Ao longe, ouvia-se a voz do Sr. Afonso a chamar por Heitor, que de imediato correu em sua direcção.
Jovens casais costumavam namorar numa zona mais resguardada da marginal, cerca de quinhentos metros à frente do local onde se encontrava. Enquanto o Sr. Afonso asquerosamente espiava a intimidade dos outros, o instinto de liberdade de Heitor fizera-o galgar pela margem do rio até si.
Já era quase meia-noite, quando entrou em casa. Lúcia contemplou-o com um olhar inquiridor.
– Fui passear até a beira do rio, apareceu um cão que começou a rosnar e atirou-se a mim. Para fugir dele, atirei-me à água. Fiquei lá imenso tempo até que ele fosse embora.
– Não me digas que o cão pertencia a algum casal que estava a namorar – a resposta saiu curta, fria e cortante.
Lúcia sentia que, além do amor estar a desaparecer, também o respeito diminuía.
Na manhã seguinte, Luís foi tomar um café à confeitaria onde habitualmente comprava o pão. No canto do balcão, acompanhado por dois copos de Martini com cerveja, um vazio e outro meio, o Sr. Afonso resmungava entre dentes para o parceiro do lado:
– Vêm estes bêbados para aqui trabalhar por tuta-e-meia. Depois os portugueses ficam sem emprego. Se eu mandasse, iam todos para a Sibéria plantar batatas – referia-se a um indivíduo, alto, loiro, de olhos azuis, que atravessava a rua em direcção à confeitaria.
– Bom dia. Favor cope lete e bolo – pediu, com um sorriso afável.
Luís voltou para casa a pensar na simpatia do imigrante em contraste com o preconceito do Sr. Afonso. Ao chegar à entrada do prédio, viu Heitor debruçado sobre a varanda.
– Desce daí, Heitor. Sai daí. Não faças isso – pressentia o pior.
Colocou a chave na fechadura, abriu a porta apressado, olhou para os elevadores e verificou que estavam no quinto, não havia tempo. Subiu as escadas a correr com toda a força que tinha. Esbaforido, entrou dentro de casa e dirigiu-se imediatamente para a varanda. Preocupado, olhou para o cão, que incrivelmente já tinha todo o seu corpo balanceando sobre o parapeito.
– Não. Heitor, não. Por favor! – gritou Luís ofegante
Desta vez não o ouviu. Imponente, lançou-se no vazio tentando a sua sorte. Só queria ser livre. Recusava-se a estar preso.
Luís lançou-se numa louca correria escada abaixo, até chegar à estrada junto de Heitor, que já se encontrava rodeado de pessoas que presenciaram a sua queda. Estava imóvel, com as pernas partidas, os olhos abertos e um fio de sangue a escorrer do canto da boca. Minutos depois, chegava o Sr. Afonso, que se ajoelhou junto de Heitor. Este soltou um gemido e fechou os olhos definitivamente. Esperara o dono chegar para lançar o último suspiro.
Luís sentiu uma enorme tristeza, acompanhada de uma raiva surda que jamais sentira e o compelia a vingar a morte do seu querido amigo. Para si, o culpado tinha um nome: Afonso.
Naquela noite subiu um andar e tocou na campainha. Tremia de medo, mas estava determinado, não podia falhar. Sabia que ele estava em casa, tocou uma vez mais, enquanto repetia mentalmente o plano que havia delineado. A porta abriu-se e diante de si surgiu um homem triste e cansado.
– Eu sei que não é boa altura, mas acontece que está a pingar no tecto da minha cozinha e talvez tenha a ver com a sua máquina de lavar ou com a banca. Não sei ao certo. Posso entrar?
– Faça o favor de entrar, Sr. Luís. Penso que na minha cozinha está tudo bem, mas entre, entre.
Luís entrou… aterrorizado. Lembrou-se de Heitor no rio, do fio de sangue e da sua altivez. Seguiu em frente, a sua mão, como uma tenaz, apertava com força o cabo de uma faca serrilhada que levava no bolso.
«Está quase! Só tenho que o pôr a jeito e fazê-lo pagar pelo que fez.»
– Vê, não tenho água no chão. Está tudo seco.
– Para ter a certeza, devíamos arrastar a máquina – disse Luís, na esperança de que ele se virasse de costas e pegasse nela.
– Tudo bem. Pegue desse lado, que eu pego deste.
Ficaram lado a lado, conjugando a sua força para levantar a máquina. Logicamente estava tudo seco, esfumava-se a oportunidade e com ela a coragem que arranjara para cometer o crime que planeara.
Ao passar junto à porta da sala, viu colocado na chaminé da lareira alguns pequenos quadros com fotografias, que lhe despertaram a atenção.
– Posso ver? – perguntou apontando para a lareira.
– Entre. Faça o favor.
Numa fotografia, Heitor estava sentado ao lado de um belo menino com cabelo castanho encaracolado e uns enormes olhos verdes. Noutra, estavam os dois mais o Sr. Afonso – que nem parecia o mesmo de tão elegante e bem vestido – e uma linda mulher, que só podia ser a mãe do menino.
– Perdi-os num acidente de automóvel. Já passaram seis anos, mas parece que foi ontem – uma lágrima de tristeza deslizava abandonada pelo canto do olho –, só eu e Heitor sobrevivemos. Agora foi ele, nunca imaginei que isto fosse acontecer. A minha esposa era professora de História e eu de Educação Física. Demos-lhe o nome de Heitor em homenagem ao nobre guerreiro que comandava o exército de Tróia.
– Desculpe o incómodo, Sr. Afonso – disse Luís visivelmente comovido.
«Como a vida pode transformar um homem!» – pensou… envergonhado com a sua mesquinhez.
A dimensão da tragédia vivida pelo seu vizinho reduzia os seus traumas à insignificância. Se existia alguém com motivos para não querer viver era o Afonso, não ele. Ele tinha tudo para ser feliz, não podia destruir essa possibilidade.
Desceu as escadas, entrou em casa, beijou Lúcia carinhosamente e disse:
– Preciso de ajuda, antes que seja tarde de mais. Amanhã mesmo vou procurar um psicólogo que me livre desta angústia em que vivo. Vamos ser felizes, Lúcia!
Esta é a história de um paciente e amigo que muito estimo, que um dia irrompeu pelo meu consultório, dizendo desesperado:
– Sr. Doutor, sei que não tenho consulta marcada e que o senhor não me conhece, mas eu não quero morrer. Quero ser feliz! Viva Heitor!

2 comentários:

Anónimo disse...

A morte do Heitor e a dimensão da tragédia vivida pelo seu vizinho foi a solução para a sua angustia de viver.Quantos casos destes existem hoje em dia?
Um conto muito interessante.

Anónimo disse...

Com destinos diferentes apesar de perseguirem o mesmo objectivo.
Belo conto.