terça-feira, 12 de julho de 2011

400 ANOS DEPOIS DE ESCANDERLU de Célio Passos


Eurico de Matos olhou, mais uma vez, para o calendário, incrédulo. Como era possível já ter passado dez anos de reforma. Ainda se lembra do dia em que foi chamado à direcção de pessoal e proporem-lhe uma reforma antecipada, pelo facto de ele ter idade e anos de serviço para a reforma definitiva. O banco tinha excesso de pessoal e ele reunia as condições para tal. O banco podia, assim, reduzir o pessoal e livrar-se de um “peso-morto” que era Eurico. De fraca rentabilidade, sem dinamismo, sem iniciativa, apático perante o serviço, fosse ele muito ou pouco, o seu ritmo, diziam os colegas, era como a sua passada, metricamente igual, até diziam que a “passada do Eurico” era merecedora de estar em Paris, no Instituto Internacional de Pesos e Medidas.
Eurico de Matos, depois de ter finalizado o antigo 5.º ano dos liceus, veio para lá do Marão, desceu a serra e no litoral, graças a uns velhos conhecimentos do seu progenitor, uma secretária de uma instituição bancária esperava-o. Ia iniciar uma carreira de empregado bancário. Definitivamente, a vida de Eurico estava traçada.
Natural de uma aldeia perto de Vila Real, filho único de um casal de abastados lavradores, casou com o único namoro que teve, vizinha da sua aldeia, que frequentou igualmente o liceu em Vila Real, Maria Luísa Torres, de seu nome. Esta tirou o curso de letras e tornou-se professora de Português e Francês num liceu da cidade. Naqueles tempos, uma vida estável e profissão garantida.
Eurico de Matos tinha um aspecto reboliço, a cara arredondada, na cabeça elementos pilosos já tinham deixado de existir, tronco razoavelmente fornecido de gorduras e membros curtos, tanto de braços como de pernas, sorriso agradável e disponível. Era definido como um “tipo porreiro”, nada mais a acrescentar.
Desde muito jovem, tinha paixão pelas colecções. Tinha das mais variadas: de selos, de lápis, esferográficas, várias de cromos (da sua juventude que guardou religiosamente), cinzeiros (grande parte deles subtraídos), sacos de açúcar, caixas de fósforos, etc. Mas a sua maior paixão eram as miniaturas de barcos antigos – galés, galeras, galeotas, naus, veleiros, bergantins, caravelas de vários mastros, escunas, cuja única propulsão era o vento ou a força braçal. Tinha o prazer de as montar, mas também as comprava, quando não as conseguia desmontadas. Era um dos melhores presentes que lhe podiam dar. A sua esposa, quando ele não a acompanhava nas suas viagens turísticas, trazia-lhe sempre uns quantos exemplares para seu delírio. Esta paixão era complementada com uma colecção de livros especializada em aventuras, essencialmente sobre espadachins, corsários, piratas, flibusteiros e bucaneiros. Da juventude tinha guardado vários livros: A colecção completa de Sandokan – O Tigre da Malásia, de Emilio Salgari, o Robin dos Bosques, a Ilha do Tesouro, de Stevenson, biografias e livros de aventuras dos piratas Negro, Barba Azul ou Barba Roxa, narrações de aventuras de outros piratas célebres como o Capitão Kidd, o Capitão Morgan, o celebérrimo Transis Drake e também, porque não, dos portugueses António Faria, Simão de Andrade e do Bartolomeu.
                                                                                                                  
A sua outra paixão, a literatura, estava actualmente centrada nas obras de um autor espanhol, cujas personagens passaram para o seu rol de imaginários amigos, mais bem reais que os amigos e amigas da esposa que também os considerava seus, já que os antigos colegas de banco ou da sua terra para lá do Marão deixaram de frequentar a sua vida.

Na sua casa, herdada de uma tia-avó, uma casa antiga, Eurico tinha espaço para os seus passatempos. Tinha um aposento para um escritório-biblioteca e outro para as suas colecções e criações navais. No momento estava a montar três galés: a Mulata, a Caridad Negra e a Cruz de Rodas. Todas elas estiveram em Escanderlu, batalha de corsários espanhóis contra turcos otomanos que se travou quase há quatrocentos anos. Lendo artigos sobre estas embarcações, montava com os mais ínfimos pormenores as suas fantásticas galés, dando espaço às conversas dos seus embarcadiços, pelos relatos do escritor.
Agora, mais do que nunca, era com fervor que lia e trabalhava nas suas réplicas, talvez para esquecer a doença que o apoquentava.

Mente quem disser que nunca sentiu medo, pois não há coisa que não tenha o seu dia. E naquele amanhecer, diante das oito galés turcas que impediam a saída para o mar aberto, nos momentos que antecederam o confronto que hoje figura nas relações e livros de História como o combate de Escanderlu, ou do Cabo Negro, pude reconhecer a sensação, familiar de outras vezes, que me tensava o estômago até ao limite da náusea e fazia com que um estranho formigueiro me percorresse as virilhas. (1)

Pousou o livro. A empregada do consultório do Dr. Sousa chamou-o para a consulta marcada para aquela hora.
      – Então que tal vai isso, Sr. Eurico? – pergunta sacramental de médico para o habitual doente.
– Como Deus quer. Uns dias melhores outros dias menos bem – resposta óbvia de um doente cuja saúde já teve melhores dias.
      – Tem que pensar em ser operado. Quanto mais tarde pior. E digo-lhe sinceramente, de outro modo não o aconselhava, melhorava substancialmente a sua qualidade de vida, e hoje em dia essa operação tem uma elevada percentagem de sucesso. Claro! Uma operação é sempre uma operação, tem os seus riscos inerentes, como sabe - disse o médico.
      – Mas eu estou decidido em aceitar o seu conselho. Contudo, gostaria de fazer uma viagem com uns amigos e, depois disso, avançava. Vê algum inconveniente.
– E quando é essa viagem?
      – É já para a semana. É um cruzeiro pelas ilhas gregas, junto à Turquia. São quinze dias. O doutor vê algum inconveniente?
      – Claro que não. Não vejo nenhum inconveniente, antes pelo contrário, até virá com outra disposição e isso é bastante positivo. Desejo-lhe uma boa viagem e aguardo o seu regresso. Não se esqueça da medicamentação.                                                                                                           
                                                              
Deixou o consultório, entrou no carro que estava estacionado junto ao consultório e arrancou. A viagem foi curta, estacionou num parque junto ao emprego da esposa.
Enquanto esperava pela sua chegada, abriu de novo o livro. Sentiu-se confiante com a decisão tomada.

Procurei com os olhos o capitão Alatriste. Avistei-o finalmente na parte mais à proa do corredor, dispondo os arcabuzeiros na arrombada. Designado maioral na banda esquerda, tinha colocado Sebastián Copons como cabo de brega. Pareceu-me tranquilo, frio como de costume, com o chapéu inclinado sobre os olhos e o perfil aquilino, os polegares enfiados no cinto de onde pendiam espada e adaga, sobre o colete de pele de búfalo sulcado de marcas antigas estocadas. (1)

Entretanto, a esposa chegou.
– Vejo-te bem-disposto. A consulta correu bem? - perguntou a esposa
– Melhor do que pensava. Depois do cruzeiro vou ser operado, está decidido - disse confiante.
Quando chegou a casa foi directo para as suas construções. As galés estavam prontas  para entrar em combate.  “Por Santiago, Ekin, Ekin”.
O seu espírito estava em Escanderlu, viu o alferes Labajos morrer a meio do combate, bastante acossado pelos turcos, ao repelir a enésima abordagem ao toldo da «Mulata», onde também ficou ferido o capitão Urdemalas. Apoiado na coluna do toldo, com todo o corpo dorido, limpando o sangue da cara e das mãos com água do mar – ardia nos arranhões e nas pequenas feridas – Diego Alatriste viu como se deitavam pela borda os mortos que estorvavam na coberta desfeita, caos de tabuagem partida, enxárcia destroçada, sangue e homens exausto (1).
Ficou preocupado com as duas outras galés, a Caridad Negra e a Cruz de Rodas, não sabia o que se teria passado.
Voltou às suas embarcações e teve dificuldade em colar um mastro no Cruz de Rodas, era sinal de mau agoiro. Tentou mais uma vez e reparou que o mastro caía. 
Não foi jantar, a esposa levou-lhe algo para comer, e noite dentro Eurico não deixou de trabalhar e ler sobre este combate entre galés espanholas e otomanas.

Maria Luísa chamou-o uma vez mais. O táxi já estava a aguardar para levá-los ao aeroporto, de onde embarcariam até Atenas. Aí, começava o cruzeiro pelas ilhas gregas e pela costa turca da Anatólia. Abandonou o local do seu fascínio, meteu o livro debaixo do braço, e de relanço olhou mais uma vez para a Cruz de Rodas.

O deck do navio estava deserto, apesar de um sol que merecia ser gozado. Eurico aproximou-se da amurada. Pousou os cotovelos no madeirame e com as mãos em concha pousou a cara. O mar estava “chão”, sem ondas e não se avistavam outras embarcações, o navio deslizava suavemente naquele mar azul. Vindos da ilha de Lesbos, dirigiam-se para o porto de Esmirna e passavam naquele momento no golfo de Çandarli, outrora chamado golfo de Escanderlu, na costa da Anatólia.
A imaginação de Eurico vogava naqueles mares de antanho, ali passaram-se grandes batalhas.                                                                                                                                                                                                                                                                    
Finalmente, podia abrir sossegado o seu companheiro de viagem.

Depois de a «Cruz de Rodas» ter investido contra a linha turca e imediatamente se ter visto preso nela, a «Caridad Negra» aproveitou o espaço para manobrar e atravessar as linhas turcas. (1)
Mas a Cruz de Rodas, o que se teria passado com ela? Apertada irremediavelmente pelas galés turcas enquanto outras se aproximavam a bom remar, ainda aguentou três abordagens. (1)
Ouviu o estouro de um canhão, e mais outro, as colubrinas disparavam sem cessar, mas sentiu que o destino da Cruz de Rodas estava traçado, não demorou muito que, desfeita e incendiada, se afundava num mar de sangue, entre corpos semidesfeitos, entre o madeirame que outrora fazia parte da galé.

O mar continuava calmo, azul profundo, não se via embarcações e do ar começou a cair uma poalha, uma fuligem negra. Sentiu-a a cair sobre o barco e sobre o seu corpo. Curiosamente, mal chegava ao chão desaparecia, talvez por não pertencer ao presente mas sim a um passado remoto.

– Uma moeda pelos teus pensamentos – disse a esposa de Eurico, Maria Luísa.
– Estava a pensar nos acontecimentos que se deram aqui nos anos de 1627, terríveis batalhas, cujos testemunhos se encontram, para sempre, no fundo deste mar. A vida naquele tempo não valia nada. Lutava-se por ideais que hoje a maior parte das pessoas acham ridículos, eu não. Havia a honra, a amizade, a luta por um ideal, a fidelidade pela palavra dada, não se deixavam abater por uma pequena contrariedade. Claro que havia aspectos negativos, os escravos, os saques, mas hoje também os há com outros nomes mais subtis. O capitão Diego Alatriste esteve aqui e sobreviveu, era um herói, um grande homem. De certeza que não teria medo de fazer uma operação como a que vou fazer. Se calhar até a fazia sem anestesia.
– Deixa de pensar nisso. Vamos jantar?- perguntou Maria Luísa.
– Claro. Vou já. Deixa-me despedir dos meus amigos - disse Eurico
– Quais amigos? Quiseste vir sozinho comigo neste cruzeiro. Os nossos amigos até vão ficar admirados quando souberem – disse Maria Luísa.
– Isso é o que tu pensas! - respondeu calmamente.
Maria Luísa disse que se ia arranjar e que o esperava no camarote.

Observou atentamente o mar calmo, e ouviu: O apito do comitre que martirizava-nos os ouvidos, ao mesmo tempo que o chicote esfolava as costas da chusma e a galé voava sobre o mar. Pois aquele apito intermitente, rápido, marcava a distância que nos separava da morte ou do cativeiro.
Era tudo um pandemónio de disparos, setas que passavam e se cravavam nos paveses, nos mastros ou na carne, gritos e maldições. E quando o nosso timoneiro, com o capitão Urdemalas gritando-lhe ordens directamente ao ouvido – parecia o diabo nos autos do Corpus – metia a cana para uma banda para não acertar na galé amiga «Caridad Negra», que guinava arrastando pela água a antena do seu  mastro truncado, a galé inimiga alcançou-nos com o seu esporão quase até aos
bancos da popa. Saltaram em pedaços três ou quatro remos, por entre uma algaravia de gritos turcos, lamentos de galeotes e Santiagos daqueles que acorríamos para repelir a abordagem. (1)

Estava preocupado. A batalha não estava a favor dos seus amigos. Não descansou. Folheou mais uma vez o livro com ansiedade.

Na manhã seguinte, ao amanhecer de Deus, os turcos já lá não estavam. A gente de guarda acordou-nos, apontando para o mar vazio, onde, à nossa volta, somente se viam restos de combate. E ainda incrédulo, olhando para todas as direcções sem ver rasto dos otomanos, a felicidade era enorme. (1)

Fechou o livro, e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Gente daquela têmpera já não existe. Regozijava-se com a vitória conseguida pelo capitão Alatriste, com Udermales e com a chusma exausta das galés sobreviventes –“Por Santiago, Ekin, Ekin”
Agora, já podia dormir o longo sono honrado de que gozam os homens valentes. (1)

Tinha que se ausentar. Eurico olhou para o mar, bem distante, e passou em revista os seus amigos  – capitão Diego Alatriste,o jovem Iñigo Balboa, Lope de Balboa, Copons, Labajos, Contrairás, capitão Urdemalas, general Pimentel, Gorostiola, para além do poeta D. Francisco Quevedo, o conde de Gualmedina, Álvaro de La Marca, conde de Olivares, Vicunã, tenente Saldaña, o contador Olmedilla e a  Lebrijana, estes amigos de outras aventuras. Pardeus! Se me olvidei de algum, com certeza, eles foram tantos, desculpai-me, a doença tem destas coisas.
O sol descia no horizonte e Eurico olhou o mar mais uma vez, levantou os dois braços e acenou um adeus. Em voz quase inaudível, Eurico disse: Hasta la vista, compañeros, o até a eternidad; desceu as escadas que conduziam ao camarote.

Deitado na cama do hospital, os enfermeiros preparavam Eurico para a operação. Estava muito calmo, a esposa é que demonstrava algum nervosismo.
Findos os preparativos, os enfermeiros saíram informando que dentro de dez minutos vinham buscá-lo para o levarem para o bloco operatório
-        Maria Luísa. Podias fazer-me um favor! – disse Eurico.
-        Claro. Diz o que pretendes! – respondeu a esposa.
            - Tens muita habilidade para o desenho e eu tenho ali no casaco uma caneta que escreve muito bem na pele. Desenhas-me o logótipo do capitão Diego Alatriste na palma da mão? É simples: é um “A” estilizado atravessado por uma espada. Gostava que o meu amigo estivesse comigo durante a operação. A sua presença confortar-me-ia, e eu ia sentir-me mais acompanhado.
Eurico ia travar uma batalha, também de vida ou de morte, contudo ter ao lado o seu imaginário amigo considerava que a mesma estava antecipadamente vencida. Pardeus se ele se enganou!                                                                                          

(1)    As Aventuras do Capitão AlatristeCorsários do Levante, de Arturo Pérez-Reverte.