segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Mudar de Vida de António Alvarez


Deitado na cama olhava a janela onde surgiam os primeiros raios matinais. Não dormira quase nada e sentia o corpo todo dorido. Por isso deixava-se estar naquela serena madorna. Além disso o barulho também chegara cedo com a azáfama de mais um dia.
...
- Hoje não irei trabalhar!... – Pensou relaxadamente. Ao fim de tantos anos de trabalho naquele escritório a ver as mesmas caras diariamente sentia um prazer quase “arrepiante” de não ter que ver aquele cenário uma vez mais. Repuxou a manta e afagou a cabeça na almofada…
...
Depois dum pequeno-almoço que lhe soubera maravilhosamente bem saboreava agora o primeiro cigarro do dia. Caminhava placidamente, ao ar livre, olhando os outros à sua volta. Gostava de o fazer e não ser interrompido por alguém conhecido. Muitas vezes dera consigo a imaginar-se a viver numa ilha deserta. Como naquele filme do Tom Hanks… Não conseguia lembrar-se do nome. – Ah! – Recordou-se de repente - CastAway. Tinha sido um filme que o fascinara bastante. Chegara até a imaginar-se de barba grande, todo esfarrapado e a olhar aquele mar azul transparente à sua frente. Comeria, como ele fizera, frutos que conseguira apanhar e pescar com um artefacto como ele criara. Nada de computadores, telemóveis, trânsito, contas por pagar enfim… só ele ali na ilha deserta. E mulheres? – Lembrou-se – Que se lixe!… Já tenho a minha conta.
...
Tinha pegado num livro que há muito tempo andara para ler. Olhou a capa e fixou a imagem reproduzida. Lembrava-lhe a imagem do filme com o Henry Fonda que vira uma vez num cartaz de cinema. Comprara aquele livro num alfarrabista por € 3,00 – “As Vinhas da Ira”. Impressionara-se com a imagem. Achava-a parecida com um dos desenhos do Álvaro Cunhal - Na certeza também ele lera aquele livro - Pensou. Sentou-se no banco corrido onde já se encontrava um outro individuo, mais ou menos da sua idade, entretido a ler um jornal. Se calhar também ele não lhe apetecera ir trabalhar. Abriu o livro e foi lendo serenamente. Não tinha pressa alguma em terminá-lo. Queria-o “compreender” na sua plenitude. Já ouvira falar do seu autor – John Steinbeck – um americano. Na capa em baixo dizia que aquele obra fora galardoada com o “Prémio Pulitzer”. Parou um bocado de ler e deu consigo a pensar quem seria Pulitzer – Deveria ser americano por certo… ou se calhar não!... -  
...
Olhou para o relógio e vendo as horas sentiu, quase de imediato, “um ratito” na barriga. Estava na hora do almoço. Levantou-se, colocou o livro debaixo do braço e caminhou vagarosamente. Queria ainda fumar uma “cigarrada” antes do almoço…
...
Em frente à televisão assistia, com uma atenção especial, à reportagem que o telejornal da TVI transmitia. O assunto abordado tinha a ver com a “recessão da económica mundial” – assim dissera o jornalista – e com a actual conjuntura do país.Os entrevistados eram de vários extractos sociais e a repórter aparecia a entrevistar pessoas tanto do campo como das grandes cidades.Curiosamente achava que as mulheres expunham as suas opiniões mais abertamente. Achara que os homens tinham tido mais cuidado com o que diziam… sobretudo os das grandes cidades. Nos do campo essa diferença não era tão notória assim…
...
- O que é que achas disto? – Perguntou-lhe uma voz vinda detrás. Voltou a cabeça e viu que o seu interlocutor não era alguém que conhecesse. Tratava-se de um individuo vestido algo modestamente e com uma cara de “poucos amigos”. Parecia igualmente já estar um pouco embriagado.
- Sei lá!... – Respondeu-lhe secamente para não lhe dar aso a grandes conversas. Chateava-o estar concentrado numa coisa e que alguém o interrompesse. Geralmente, aquela hora, poucos eram os frequentadores daquele espaço e por isso tinha resolvido ir até lá. Não tornaria lá de novo… levantou-se e saiu de mãos nos bolsos. Cá fora a chuva miudinha caia. Subiu as abas do casaco e seguiu em passo apressado… com receio que o outro ainda viesse atrás dele aborrecê-lo com perguntas “chatas”…
...
A água morna tombava sobre a cabeça. Abrira a torneira do duche com pouca pressão. Apenas queria estar ali debaixo e lavar-se exteriormente e… interiormente. Sobretudo interiormente. Lavar e limpar a mente de uma vez por todas. Esquecer… isso mesmo esquecer!...
...
Escovou os dentes com a precisão de um autómato. Tinha um cuidado especial com a sua higiene oral. Como se costumava dizer: “Pela boca morre o peixe” e acrescentou para si: “e os homens também”. Era um dos seus tiques aquela preocupação de ter uma boca sã. Muitas vezes se lembrava da mãe o chamar à atenção para aquele hábito. E passados uns anos, mais do que um hábito, tornara-se quase numa obsessão. – Obsessão ou mania? – Questionou-se. – É quase a mesma coisa… - Também pode ser tara!... – Olhou-se fixamente no espelho da casa de banho e fez uma careta para si. – Tchi!… És feio pra burro. Arrumou cuidadosamente o copo e a escova e dirigiu-se para a cama. Apesar de não ter muito sono apetecia-lhe deitar-se. Ouvia as gotas da chuva que caíam no beiral da janela. E embalado por aquele som foi adormecendo suavemente.
...
- Qual é o seu nome completo?
- José Miguel Nunes Pereira da Silva.
- Idade?
- 47 anos.
- Profissão?
- Técnico-Administrativo.
- Há quantos anos trabalha na firma “Manuel Bernardes & Filhos, Lda.”?
- Fiz 24 anos no dia 12 de Setembro.
- Porque é que a partir dessa data nunca mais compareceu ao serviço?
- Porque… porque não me apeteceu!... – Respondeu desdenhosamente.
...
Ajeitou o chapéu e compôs a gravata. Achou-se vestido a preceito. Caminhou lentamente por entre a multidão compacta que o rodeava. Nada ouvia a não ser a sua voz interior. Alguém lhe abriu a porta de par em par e ele encaminhou-se resoluto em direcção à cadeira…
...
Abriu o jornal e leu a notícia palavra a palavra:
“O tribunal da Boa-Hora, condenou esta 2ª feira, a 25 anos de prisão José Miguel Silva acusado do homicídio em 1º grau de Manuel Bernardes dono e gerente da firma“Manuel Bernardes & Filhos, Lda.”. O autor do violento assassínio confessou ter perpetuado o crime em virtude do patrão o ter ameaçado despedir por ele se recusar a assinar um novo contrato de trabalho. Segundo o mesmo, com a assinatura desse novo contrato, “perderia todas as regalias de toda uma vida de trabalho dedicado”. O autor confesso vai cumprir a pena no estabelecimento prisional de Alcochete”.
Fechou o jornal e deitou-se suavemente na cama… da cela 253.

FIM