quarta-feira, 29 de abril de 2009

Orgulho lusitano

– Ó pai, ainda falta muito?
– Tem calma, filha, estamos quase a chegar.
– Mas pai, está tanto trânsito… quando chegarmos a piscina já vai estar cheia.
– Sossega, Andreia, deixa o teu pai conduzir descansado, já sabes como ele é, consegue sempre desenrascar-se. Ó Juvenal, vamos ter que ficar aqui na seca nesta fila enorme?
– Cambada de lesmas – praguejou o Juvenal, enquanto estendia o pescoço a tentar perceber até onde ia aquela imensa fila de carros. – São uns totós, não se mexem. Eu vou já resolver isto Natércia.
E de imediato o Juvenal concretizou o que disse. Saiu da fila a toda a velocidade, colocando-se na faixa de rodagem destinada a outras direcções, e foi ultrapassando aquela imensidão de carros que permaneciam imóveis. Chegado o momento de voltar à sua faixa, o Juvenal aproveitou uma brecha para aí se enfiar vitorioso, indiferente às incrédulas buzinadelas dos outros condutores que manifestavam o seu protesto.
– Boa! – exclamou o Gonçalo, o filho mais velho. – O pai é o maior, ficaram todos para trás. Quando tiver um carro, também vou passar todos – rejubilava ele enquanto bebia um pacote de sumo.
– Ó Gonçalo, dá-me um bocadinho do teu sumo – pedia o João, o filho mais novo.
– Já bebeste o teu todo – respondeu-lhe o Gonçalo. – Deixa-ma beber descansado.
– És mau – lamentava-se o João. – Quando me pedires alguma coisa também não te dou.
– Olha, já acabou, queres um bocado? – perguntava Gonçalo em tom de gozo.
– Ó pai, o Gonçalo atirou o pacote de sumo pela janela – gritou João indignado.
– E então qual é o problema? – perguntou o pai. – Nós não temos caixote do lixo no carro.
– Mas na escola a professora disse que nós devíamos…
– Está bem, esquece a professora – interrompeu o pai. – Aqui o professor sou eu.
– Ouve o que o teu pai diz, Joãozinho – disse a mãe. – Olha que ele tem muita experiência de vida. Mais até que a tua professora.
– Pronto, já chegámos – suspirou Juvenal. – Agora só falta arranjar um lugar para estacionar.
– Não vai ser fácil – disse Natércia roendo as unhas. – Está tudo cheio.
– Vai já ficar aqui – disse ele.
– Mas pai, aqui é uma linha amarela, não se pode – disse Joãozinho.
– Não vai ser uma linha amarela que me vai impedir de estacionar.
O Juvenal estacionou e todos saíram numa azáfama atropelada, esvaziando o carro de toda a tralha que os acompanhava. A geladeira era a peça mais preciosa do rol, cabendo a Juvenal a segurança do seu transporte.
A família dirigiu-se para a fila da bilheteira, arrastando com orgulho todo o seu precioso equipamento, enquanto Juvenal congeminava uma forma de se desenrascar dali rapidamente.
– Joãozinho, vai ao colo da tua mãe – ordenou ele. – Venham comigo.
– Eu não quero ir ao colo, não sou nenhum bebé – resmungava Joãozinho.
– Está calado, faz o que te disse.
Joãozinho acedeu contrariado. Dirigiram-se para o balcão da bilheteira e Juvenal, com um ar bastante aflito, abordou as primeiras pessoas da fila pedindo-lhes para passar à frente, porque o seu filho tinha ficado subitamente mal-disposto e tinha necessidade de entrar rapidamente para que pudesse ir à casa de banho. As pessoas, apanhadas de surpresa com aquela situação e com o ar apoquentado de Juvenal, concordaram em deixá-lo passar.
– Eu não estou doen… ai!
A mãe interrompeu o Joãozinho apertando-
-lhe um braço. Entraram triunfantes. Faltava escolher o lugar mais favorável para se instalarem confortavelmente e desfrutarem de uma tarde bem passada em família. Juvenal varreu o recinto com o seu olhar de lince e decidiu:
– Vamos para ali, estou a ver uma espreguiçadeira livre.
Esvaziaram sacos e mochilas e foram-se instalando numa grande agitação.
– Ó Juvenal, precisávamos de pelo menos mais uma espreguiçadeira – exclamou Natércia. – Vai ser difícil, parece estar tudo ocupado.
Juvenal não respondeu, ficou atento a analisar a vizinhança de ocasião. Dirigiu-se a uma série de espreguiçadeiras que se encontravam com as toalhas em cima e permaneceu aí alguns instantes observando disfarçadamente. Certificou-se que ninguém estava a ver e, de repente, arrastou uma espreguiçadeira consigo atirando a toalha para cima de umas mochilas.
– Pronto, já está – disse Juvenal. – Já temos outra.
– Mas a cama era daqueles meninos – disse o Joãozinho alarmado.
– Fala baixo – sussurrou a mãe. – Eles vão estar sempre na água, não vão precisar dela.
– Ó pai, podemos ir para a água? – perguntou o Gonçalo.
– Sim, vamos lá dar uns mergulhos, mas tu, Natércia, ficas aqui, não vá desaparecer nada, com esta gente nunca se sabe, mais vale prevenir.
E assim passaram a tarde felizes, entre mergulhos, merendas e comentários avulsos sobre os artigos das revistas cor-de-rosa que a Natércia ia folheando.
Esta família, como tantas outras, padecia de uma filosofia de vida violentamente marcada, quem sabe, por uma qualquer deficiente matriz lusitana traduzida numa dificuldade evolutiva, ou por uma mal-fadada herança de vários anos de repressão e ignorância cuja libertação se interpretou e assimilou de forma deturpada ou extrapolada, transformando-se numa correria imensa, numa competição tenaz, onde as regras, civismo e educação são constantemente invocadas por todos, mas endereçadas e aplicáveis somente aos outros.
Nesta família, como em tantas outras, a principal máxima é o “desenrascar”. Este princípio, fortemente enraizado na nossa sociedade e em todos os estratos sociais, partilha diligente o nosso dia-a-dia, engatilhado e pronto a disparar em qualquer ocasião de necessidade. Está presente em todas as profissões mas torna-se por vezes imperceptível, dissimulado, entre técnicas de esperteza ou habilmente encobertas por retóricas académicas. Toda a gente espera um país mais próspero e evoluído, mas contam sempre que haja alguém a trabalhar nesse sentido, esquecendo-se que a sua própria participação na construção de algo pode ir muito mais além do que o desfilar de queixumes e lamentações. Este espírito do “desenrasca” é um verdadeiro travão à evolução e desenvolvimento de uma sociedade.
Mas voltemos à piscina, onde se encontram todos. É já final de tarde.
– Juvenal – disse a mulher. – Antes de irmos para casa, preciso de passar no supermercado.
– Está bem – respondeu o Juvenal disfarçando o olhar que tinha pregado numa morena luzidia. – Meninos, vamo-nos secar para irmos embora.
Secaram-se, arrumaram as tralhas e saíram, dirigindo-se ao carro arrastando os chinelos, enquanto mastigavam o resto do farnel.
– Olha pai – disse a Andreia. – Tu foste o primeiro a estacionar ali e agora já estão lá tantos.
– Pois é – respondeu Juvenal fanfarrão. – Já diz o velho ditado… à terra onde fores ter faz como vires fazer. Aprende minha filha.
Meteram-se no carro e arrancaram, cantarolando a música do rádio, que gemia entre graves distorcidos, aflitos com o excesso de volume.
Mais à frente, uma fila de trânsito que se movimentava muito lentamente e muitas buzinadelas. Alguns minutos depois, Juvenal apercebeu-se da razão daquela fila.
– Já viste isto, Natércia – disse ele indignado. – Estes idiotas estacionam aqui em fila dupla para ir ao Multibanco, não há respeito nenhum. Tirem daqui as latas – dizia ele enquanto apitava violentamente. – Seus anormais.
– Que falta de civismo – suspirava Natércia.
Chegaram finalmente ao supermercado e, como havia falta de lugares de estacionamento, Juvenal meteu o carro num dos lugares reservados a deficientes.
– Ó pai, este lugar é para as pessoas doentes – explicou o Joãozinho.
– Olha, nem tinha reparado – disse Juvenal. – Mas vai ser rápido.
– Se precisarem, ainda têm ali outro lugar reservado – disse a mãe. – Vamos lá depressa.
Joãozinho olhava desolado para os irmãos que lhe faziam algumas caretas, aquelas situações confundiam-no e atormentavam-no bastante.
Existem felizmente ainda muitas pessoas esclarecidas que não partilham de todo este espírito tacanho, possuidoras de lucidez suficiente para evitar esta onda medíocre, enjeitam qualquer manifestação de «chico-espertismo».
Talvez o Joãozinho venha a ser uma delas, ou talvez não.
Dentro do supermercado, dirigem-se à frutaria. Enquanto Natércia escolhe a fruta, o Juvenal vai petiscando aqui e ali. O Gonçalo chega com um iogurte líquido, abre-o e começa a beber.
– Ó pai, também quero um, posso ir buscar? – pediu a Andreia.
– Está bem, vai lá e traz um para o João.
– Eu quero beber o meu em casa – disse Joãozinho.
– Porque não bebes aqui? – perguntou-lhe Juvenal.
– Porque não, prefiro beber em casa.
O iogurte do Joãozinho foi para dentro do carro de compras, os outros dois foram para o caixote do lixo do supermercado.
Deram mais umas voltas pelos corredores e dirigiram-se às caixas.
– Vamos para uma dessas caixas rápidas – disse Juvenal.
Chegaram à caixa e colocaram as coisas sobre o tapete rolante. A operadora alertou-os para o facto de aquela caixa estar destinada a um limite de dez artigos. Como excediam o estabelecido, Juvenal resolveu distribuir as compras.
– Estas são minhas, aquelas da minha mulher e as outras do meu filho – disse ele. – Eu pago todas.
A operadora concordou, ficando sem palavras. Desenrascado este Juvenal.
Chegaram finalmente a casa, uma bela vivenda construída pelo Juvenal. Era a sua profissão, a sua arte. Juvenal era empreiteiro, dedicava-se a construir vivendas e moradias com o seu cunhado irmão de Natércia. Ele e a mulher, beneficiários do rendimento mínimo, viviam em casa do Juvenal. Enquanto os maridos trabalhavam, as mulheres faziam companhia uma à outra, saíam juntas, iam ao cabeleireiro, faziam compras nos centros comerciais e organizavam uns lanches com as amigas.
Natércia há já muito tempo que se encontrava de baixa. Depois de três dias de suspensão do seu emprego, achou que não se encontrava bem psicologicamente para ir trabalhar. Era funcionária pública, trabalhava nas finanças, descobriram que, valendo-se da sua posição, dava uns jeitos nalgumas papeladas a troco de generosos presentes. Mandaram-na para casa três dias para reflectir.
Em casa os miúdos já estavam avisados de que se fosse lá alguém perguntar pelos tios eles responderiam que moravam lá porque eram pobres e não tinham casa para morar.
– Ó Juvenal, amanhã vai o fiscal à vivenda lá de cima do monte – disse Gustavo, o cunhado de Juvenal.
– Ah, pois vai, já sabes o que tens a fazer. Deixa-lo ver tudo o que quiser e depois… entregas-lhe o respectivo envelope, precisamos daquilo aprovado.
– Ok. E aquele assunto dos empregados? Eles dizem que se não lhes pagar, vão-se embora.
– Deixa-os ir, também não fazem nada de jeito, eu já estou a tratar de arranjar outros, tenho aí em vista uns trabalhadores de Leste, estão ilegais, esses são mais fáceis de controlar. Amanhã tenho que ir às finanças resolver aquele assunto. Os gajos não percebem como é que a empresa dá prejuízo todos os anos, devem pensar que eu ando para sustentar pançudos. Eu vou falar lá com um doutor conhecido da Natércia e vamos conseguir controlar o problema, tem sido sempre assim, eles que trabalhem, não vou eu pagar impostos, para suas excelências estarem alapadas na assembleia sem fazer nada.
– Então já decidiste qual é o jipe que vamos comprar para a empresa? – perguntou Gustavo.
– Olha, ainda não sei, ouvi falar aí de uns novos fundos de apoio a pequenas empresas, pode ser que se arranje qualquer coisa – respondeu Juvenal piscando o olho.
– Ah, lembrei-me agora – disse Gustavo batendo com a mão na cabeça. – Temos muito entulho para tirar da obra, para onde é que o levamos?
– Despejem-no lá para trás no meio do pinhal – disse Juvenal enquanto passava os olhos pelo jornal. – Alguém o há-de limpar mais tarde.
– Meninos, todos para a mesa, o jantar está pronto – anunciou Natércia.
Jantaram animadamente e depois dirigiram-se à salinha para tomar café e conversarem.
Os miúdos viam televisão.
– Ó pai, amanhã vou ter um teste – disse o Joãozinho. – Vou lá para dentro estudar um bocadinho.
– Estudar? – questionou Gonçalo em tom de gozo. – É preciso é fazer uns copianços…
– Está calado – irritou-se Joãozinho. – Eu não gosto de copiar.
– Pronto, não se zanguem – disse o Juvenal sorrindo. – Não gostas de copiar, não copias, eu só quero que vocês me tragam boas notas, agora se copiam ou não… o problema é vosso.
Mais tarde, todos se deitaram. Tinha terminado mais um dia de luta.
Este instinto de sobrevivência, quase selvagem, embora hiperbólico pelo seu teor cumulativo de episódios, alguns caricatos outros mais graves, acaba por retratar a predisposição de uma parte significativa da sociedade para recorrer a este tipo de técnicas. É claro que estas são situações perfeitamente identificáveis e conhecidas.
Mais grave ainda será o uso de técnicas semelhantes por alguns Juvenais com muito mais formação e poder em situações que a maior parte das pessoas não compreende nem domina. Nos restantes reside a esperança.
Esperemos que novas gerações surjam com um novo espírito mais empreendedor e construtivo, voltado para o desenvolvimento, para o futuro.
Passaram-se vinte anos.
Juvenal continuava a trabalhar mas já sem o seu cunhado, que tinha emigrado. Continuava com o seu jogo de cintura, sempre a fugir de alguém, sempre a esconder-se de um fornecedor, de um cliente ou das finanças.
A mulher conseguiu reformar-se mais cedo, já não estaria na posse de todas as suas faculdades mentais.
Andreia formou-se em Direito e era vereadora na câmara. Estava a braços com um processo por peculato, mas nada que lhe tirasse o sono.
Gonçalo interrompeu os estudos e seguiu as pisadas do pai. Ele e um amigo montaram a sua própria empresa de construção. Alguns anos depois, enganou o sócio e fugiu com o dinheiro da firma. Encontrava-se em parte incerta no estrangeiro.
Joãozinho era professor. Era um bom professor, sempre preocupado com a educação dos seus alunos e da sociedade em geral. Tinha poucos contactos com a sua família.
Anos mais tarde, Juvenal morreu e ascendeu a outra dimensão.
Algures, num majestoso palácio, andavam todos muito aflitos, nunca tinha acontecido nada assim.
Juvenal estava numa bela sala cintilante e imaculada, instalado numa faustosa poltrona que parecia feita de algodão.
– Como é possível teres entrado aqui? – perguntaram-lhe incrédulos. – Como conseguiste passar pelos nossos guardiães? Quem és tu afinal?
– Eu…ora, eu sou o Juvenal… e sou português.

1 comentário:

Anónimo disse...

Caracterização mordaz do género lusitano. Passagens pitorescas que todos nós, sem dúvida, já assistimos.
Este Juvenal era mesmo incrível, até no assento etéreo onde conseguiu subir deu a sua golpada.
Conto que nos faz sorrir, infelizmente, pelo seu realismo.