quinta-feira, 17 de maio de 2012

Anjo Negro de Luis Fernandes


Distraído, entrou num bar sem se aperceber. Ao fundo do balcão estava uma TV ligada, mas sem som, a transmitir um jogo de futebol da liga espanhola. Era um balcão corrido com bancos altos ocupados quase banco sim, banco não. As paredes do bar estavam repletas de merchandising de um clube espanhol – cachecóis, bandeiras, camisolas, galhardetes, tudo naquele espaço era alusivo ao clube. Adepto de um pequeno clube marroquino, não o espantava a obsessão aparente que tomava conta de quem servia e de quem era servido. Todos aguardavam a final da partida que era transmitida pela televisão e que daria lugar ao jogo da Taça do Rei que tanto ansiavam. Em poucos minutos o leve ruído que se fazia ouvir transformou-se numa algazarra encimada pelo som da televisão aos berros e pelos comentários animados da dezena de pessoas que olhava para o televisor como se estivesse num camarote.

                                                            ***
Umas horas antes…

Naquela manhã Omar acordara calmo mas decidido. Era, sem dúvida, um óptimo dia para morrer. Porque não? E se não fosse hoje, seria com certeza nos dias que se seguiriam. Na noite anterior tinha-se despedido dos pais e anunciara a sua decisão de morrer pela causa islâmica, podendo assim honrar a sua família e elevar-se a mártir – um orgulho para os pais e para todos os seus. Omar fazia naquele dia 19 anos e achava que não podia adiar mais o seu destino. Tinha uma quantidade considerável de explosivos, que guardava debaixo da cama, os quais tinha herdado de um companheiro de escola que vira a sua vida acabar devido a um momento de distracção - tinha morrido atropelado sem ter conseguido cumprir o destino a que se entregara. Omar questionava-se agora qual seria o alvo do seu atentado. Não queria cair no esquecimento. A publicidade que rondaria o seu acto era um dos seus objectivos. Queria ser falado e servir de exemplo aos seus conterrâneos mais novos – queria ser lembrado como herói.

Omar afagava a sua vasta cabeleira e perfilava a sua barba apesar de ainda imberbe. Os seus olhos negros, profundos, faziam a delícia das mulheres nórdicas, que, com os seus loiros cabelos, quase incolores, se prostravam diante dele na esperança de que aquele homem de aspecto agreste se deixasse entregar em seus braços. Esperança vã, já que para Omar não obedecer à castidade estava fora de questão. Omar desconhecia o prazer e facilmente fugia aos olhares lascivos daquelas fêmeas provocadoras e dos sorrisos convidativos que deixavam adivinhar uma noite de sexo selvagem.

O futuro mártir habitava num pequeno apartamento nos subúrbios de Madrid, que partilhava com mais três árabes. Os companheiros raramente estavam em casa, mantendo rotinas completamente diferentes das dele, o que lhe permitia muito tempo de calma e reflexão. O seu principal passatempo era engendrar diversas formas de assassinar o Primeiro-Ministro Israelita.

Não tinha passado muito tempo desde que fora perseguido na rua e espancado, com bastões de basebol, por um grupo de cabeças rapadas que ostentavam orgulhosamente suásticas ao peito e envergavam roupas negras coladas ao corpo, assim como botas militares, que lhes transmitiam um ar violento e assustador. Na altura Omar não se deixou intimidar, o que lhe valeu a cabeça aberta e diversas escoriações por todo o corpo. Aqueles actos eram cada vez mais frequentes nos bairros pobres da periferia e começavam a espalhar o pânico entre as comunidades muçulmanas. Não seria mal pensado pôr cobro a isso arquitectando um ataque suicida ao “quartel-general” destes pseudoguerreiros, que se juntavam diariamente num barracão abandonado, onde decidiam o raio de acção para cada dia. Mas teria um impacto de pouca extensão.

Omar pouco conhecia da história europeia. Lembrava-se das Cruzadas levadas a cabo pelos fidalgos cavaleiros, que empreendiam, na altura, uma guerra santa em nome da razão cristã. Odioso perante tal lembrança, esboçou um esgar cínico, que culminou com um soco sonoro na parede. Lembrou-se do Eusébio, essa pantera negra, que enchia de excitação a sua faceta de “futebolista castrado”. Esse homem devia ter sido muçulmano, pensava Omar em voz alta! Um ser fisicamente tão brilhante nunca poderia ter um deus diferente do dele. Nisto decidiu-se! O seu alvo seria um estádio de futebol cheio de adeptos a assistirem a um jogo. Não era original, mas seria eficaz e grandioso.Bastava-lhe agora escolher o estádio maior da Europa ou, quem sabe, a equipa de futebol mais cara da Europa. O país, ou a cor política do governo do mesmo, era pouco importante.

Naquele dia teria lugar um grande jogo na cidade. Sem dúvida um alvo apetecível, mas uma contrariedade fez frente aos seus intentos – os bilhetes estavam esgotados e não tinha dinheiro para adquirir um no mercado negro.

Depois de várias tentativas sem êxito, deambulou pelas ruas sem qualquer destino aparente.
                                                           ***

Omar, encostado a uma máquina de flippers, observava a “fauna” que fazia daquele bar um lugar imundo e impuro e a visão causava-lhe náuseas. Acabou por pedir um chá de menta, que sorvia como um acto sagrado, enquanto o jogo, iniciado há quinze minutos, lhe ia prendendo a atenção e aos poucos se sobrepunha ao intento que o fizera sair de casa.

Eram perto das nove da noite quando entrou pela porta uma mulher jovem e atraente, com feições árabes, que fugia sem dúvida de alguma coisa. Imediatamente Omar prendeu a sua atenção nela. Seria prostituta? Omar não queria sequer admitir que uma mulher com as suas raízes frequentasse um lugar conspurcado daqueles. Não sendo prostituta, só poderia estar em apuros e mesmo isso não seria razão para quebrar tais regras. E não se enganou: numa correria e algazarra perturbantes, perseguiam-na seis seus velhos conhecidos – os cabeças rapadas que o tinham sovado e que travaram de imediato assim que o viram. Em pouco tempo dividiram-se em dois grupos. Dois foram em direcção da jovem e os restantes quatro trataram de encurtar cautelosamente a distância que os afastava de Omar, enquanto este recuava rosnando entre dentes palavras impercetíveis em árabe. Lançou a mão ao bolso traseiro das calças e de forma subtil alcançou a ponta e mola que tinha adquirido após a sova aplicada pelos skins. Conseguiu desviar-se do primeiro bastão e investiu de navalha reluzente na mão, deixando um dos agressores dobrado sobre o abdómen. Lançou-se ainda em fúria sobre o segundo agressor, que se esquivou, sendo apenas golpeado de raspão junto à boca.

Omar dividia a sua atenção entre a luta e a rapariga assustada e ameaçada pelos outros skins. Num golpe de cintura, fugiu aos murros desajeitados dos dois skins que restavam intocados e precipitou-se sobre os que amedrontavam a rapariga. Nessa altura sai de trás do balcão, de barra de ferro em punho, o barman, provavelmente o próprio dono do estabelecimento, que aos berros se dirigiu rapidamente aos skins. Omar ficou a saber que também para este homem os cabeças rapadas eram velhos conhecidos, que, à força da destruição que tinham causado em visitas anteriores, o punham completamente fora dele. E foi com a cegueira da fúria que conseguiu correr com eles para fora do estabelecimento, ajudado por Omar e dois outros clientes já turvados pelo álcool que anulava o medo e a consciência. Quando por fim tudo tinha acalmado, Omar reparou que a jovem árabe já não se encontrava entre eles, mas por mero acaso também reparou num pequeno bilhete esquecido numa mesa que dizia apenas “obrigada”. Pagou o chá e saiu a correr desconhecendo que direcção deveria seguir para tentar interceptar a jovem. Andou sem rumo até se cansar e, por fim, decidiu rumar a casa utilizando o metro para o fazer. Assim que entrou na carruagem e as portas se fecharam, viu passar na direcção contrária a jovem que tanto interesse lhe tinha causado.

Cabisbaixo, subiu as escadas do prédio em que morava e, metendo a chave à porta, dirigiu-se ao seu quarto com o intuito de fazer uma breve leitura do seu livro religioso. Mas o seu pensamento não parava sossegado e deambulava pelas lembranças breves que mantinha dos acontecimentos daquela tarde, acabando por se encostar e adormecer.

Eram já cinco da manhã quando acordou esfomeado e, saltando da cama, enquanto preparava algo para comer, deparou-se novamente com as insistentes lembranças. Aquela que se cruzara com ele naquela tarde era com certeza muito especial. Aquela obsessão nova tinha feito adormecer a anterior. Já não queria morrer. Já não pensava sequer na sua condição de futuro mártire já nem sequer lhe apetecia perder mais tempo a engendrar vinganças religiosas. Não sabia como poderia encontrá-la, mas iria tentar.

Daí em diante todos os seus minutos livres eram dedicados de forma obstinada à procura da rapariga árabe. Palmilhava quilómetros pelas ruas de Madrid na esperança vã de a voltar a encontrar e… voltou... Meses mais tarde, enquanto distraidamente atravessava uma rua fora da passadeira, só teve tempo de olhar o condutor e cravar a sua atenção no rosto sublime da sua obsessão antes de ser mortalmente atropelado. Tal como o amigo que lhe deixara em herança os explosivos que guardava em casa, também ele via a sua vida a esquivar-se pelos dedos da mão da mesma forma. E foi a mesma visão que os acompanhou no derradeiro adeus – uma mulher árabe que ocupara todos os seus pensamentos nos últimos meses de vida.

Outros herdaram os explosivos e todos esses outros morreram com a mesma visão.