segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A Tatuagem de Célio Passos.


Desde muito novo que Ângelo gostava de tatuagens. Era vê-lo maravilhado, principalmente no tempo de verão, quando nas praias via aqueles corpos brilhantes, tatuados, com imagens, desenhos, traços e cores, preenchendo, por vezes, grandes partes do corpo dos jovens. Foram diversas as vezes que Ângelo pediu aos pais que o deixassem fazer uma pequena, mesmo muito pequena, tatuagem num dos braços. Os pais, principalmente o pai, indivíduo de outros tempos, não aceitava, de modo algum, aquelas modernices.
Contudo, quando Ângelo fez 18 anos, sentiu-se emancipado para fazer da vida aquilo que entendia, e, ao arrepio das ordens paternais, foi a uma casa de tatuagens fazer a sua primeira tatuagem. No momento, a tatuagem desejada era a de um corvo de asas abertas e olho amarelo atento, que abrangia quase as duas omoplatas. O tatuador nunca tinha feito tal obra, mas aplicou o melhor do seu saber e técnica e fez uma obra que satisfez Ângelo. Em casa, reduziu-se ao silêncio, sabendo quais as reações que adivinhava por este gesto irreverente. Foi para o quarto e, utilizando dois espelhos, admirou a obra do seu tatuador. Mas, “não há bela sem senão”, e Ângelo começou a sentir que algo de estranho se passava com o “seu corvo”. O animal não se acomodava quando espartilhado entre a roupa do seu dono. Ângelo sentia que a tatuagem se queria desprender do seu corpo. Foi falar com o tatuador, que verificou que havia partes da tatuagem que estavam levantadas, parecia que se queria libertar. O artista nunca tinha visto tal coisa e fez umas reparações. Contudo, de regresso a casa, a situação piorou. Foi para o quarto e pôs-se em tronco nu. Já não aguentava com os movimentos do “seu corvo”, que parecia querer soltar-se daquele cativeiro corporal. Assim, e perante o espanto de Ângelo, o “seu corvo” saiu das suas costas, e, crocitando, vivo, pousou no cimo do guarda-roupa. Ângelo nem queria acreditar no que via. O corvo agitou as asas, voou pelo quarto e, aproveitando o facto de a janela estar aberta, saiu num voo libertador. Ângelo fechou-se num silêncio conventual. Esperava, todos os dias ao crepúsculo, pela volta do animal. Este obrigava o dono a deitar-se de dorso nu sobre a cama e plasmava-se numa tatuagem perfeita e, deste modo, o dia findava. Durante o dia não lhe punha olho em cima. O que ele fazia e por onde andava era um mistério que aos poucos se foi desvendando. Todos os dias, em cima da mesinha-de-cabeceira, apareciam peças de ouro, cuja proveniência Ângelo desconhecia. Um dia, num dos seus regressos, o corvo trazia no bico uma pulseira de ouro, que depositou no local do costume. É conhecida a atração dos corvos pelo ouro. Ângelo ficou em pânico, como iria justificar a posse do ouro. Não o podia entregar à polícia, seria muito complicado. Lembrou-se de deitar as peças nas caixas do correio do prédio, os condóminos não iriam ficar com o ouro e o mais certo seria entregarem-no ao seu legítimo dono, por um processo que ele nem queria saber. A verdade é que, semeadas as peças pelas caixas, curiosamente, ninguém fez referência ao insólito acontecimento, cada um guardou a sua peça como se de uma oferta se tratasse. Mas no bairro começou a constar que umas “mãos leves” amigas do alheio andavam a visitar os prédios do bairro, e procuravam exclusivamente ouro, nada mais. Ângelo tinha que resolver o problema urgentemente antes que o incriminassem como coautor dos roubos, se um dia vissem o corvo a entrar no seu quarto portador de uma peça de ouro no bico. Combinou com o tatuador ir ao seu atelier, pela calada da noite, efetuar uma alteração na tatuagem original. Pensada a estratégia, Ângelo levantou-se de noite, lentamente, para não acordar o “corvo”, vestiu uma simples camisa e saiu de casa no maior dos silêncios. O tatuador já o aguardava. Ângelo explicou o que pretendia fazer. Queria que lhe retirasse o corvo e lhe tatuasse um Cristo pregado na cruz, aproveitando o máximo possível os traços do desenho anterior. Antes de começar as operações, pediu ao tatuador que lhe injetasse nas costas uma anestesia que trazia consigo. Argumentou que a tatuagem da última vez foi dolorosa. A razão, porém, era para não acordar o “corvo”. A tatuagem foi muito demorada, mas resultou em pleno. Um Cristo, um pouco estilizado, numa cruz onde outrora estava pousado um corvo. O tatuador, curioso, perguntou-lhe a razão de tal atitude, de gostos muito diferentes. Ângelo riu-se e justificou, enigmaticamente:

- É que se “Este” sair da cruz das minhas costas, o que não era a primeira vez, eu sei que “Ele” nunca mais voltará, e se fizer coisas, decerto que serão boas ações.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A Reunião de António Alvarez.


A estação do metropolitano no Campo Grande encontrava-se apinhada de gente. Aquela hora matinal era normal ter um afluxo grande, mas com o atraso motivado “por problemas na Linha Amarela”, que aparecia no placard, o cais já começava a ter falta de espaço.
Álvaro olhou para o seu relógio Seiko e verificou que faltavam 20 minutos para a hora de entrada ao serviço.
- Merda para isto! – falou com os seus botões. – Logo hoje, car..., em que precisava de chegar a horas para a “bodega” da reunião com a chefia.
- Senhores passageiros, o tempo de espera poder ser mais prolongado que o habitual. Pedimos desculpa pela situação – soou uma voz feminina nos altifalantes da estação.
- É sempre a mesma coisa nestes últimos tempos – falou o seu vizinho do lado para o “ar”.
- Tem razão! – respondeu-lhe. – Isto agora tornou-se quase ritual. Quando não é na amarela, é na verde ou na vermelha... ou o “raio que os parta”.
Tornou a olhar para o relógio e verificou que tinham passado quase 5 minutos.
- Agora já não vale a pena sair – pensou. – As filas para o autocarro já devem estar “estilo repartição de finanças”.
Tirou o jornal debaixo do braço e tentou fixar a sua atenção num artigo qualquer que lhe pudesse não o fazer pensar no tempo.
- Esses “filhos da p...” é que deviam andar de metro para saber como é – tornou o vizinho do lado ao olhar para a página do jornal onde aparecia o primeiro-ministro e alguns outros membros do governo. – Os gajos andam de “cu tremido” pago pelo “Zé Povinho”, querem lá saber da “malta”...
- É – respondeu Álvaro. – Mas alguém lá os pôs...  
Tornou a olhar para o relógio. – Fod...! Já não vou chegar a tempo – falou interiormente. – Porque é que eu fui beber a “bica”. Perdi o autocarro e mais tempo perdi...
- “Foi retomada a circulação na Linha Amarela” – tornou a voz feminina dos altifalantes.
- Bom, vou ter que entrar dê lá por onde der! – pensou e foi colocar-se estrategicamente na beira do cais a pisar já a linha amarela.
Todas as pessoas começaram a mover-se e a tomar as suas posições. O barulho do metro no túnel fazia-se anunciar.
De repente um corpo de uma jovem adolescente tombou à linha. Gritos fizeram-se ecoar por toda a estação.
- Façam sinais para o condutor parar – gritavam muitos.
Todos esbracejavam e tentavam ver o que se estava a passar. Outros viravam costas e dirigiram-se no sentido da saída. Algumas mulheres entraram em histeria. O cenário era quase “apocalíptico”.
Álvaro ouviu o chiar estridente das carruagens, sinal que o condutor tinha acionado os travões de emergência.
- Meus Deus! Não!.. – pensou  e fechou os olhos.

Um “pi” forte soou-lhe aos ouvidos. Abriu os olhos e verificou que se encontrava na cama. O tal “pi” era o “cabrão” do despertador...