segunda-feira, 2 de maio de 2011

COMO É BELO O TEJO! - António Alvarez


"Gosto desta música do Patxi Andion!"comentou Luís para a colega que se encontrava em frente a si. Helena, que folheava uma revista, anuiu com a cabeça.

Tinha resolvido fazer a rota das “aldeias de xisto”. Durante alguns meses tinha planeado várias hipóteses de fazer umas “férias diferentes” do habitual. Como que por acaso, numa conversa banal com o amigo Dinis, falaram de lugares onde gostariam de viver e veio “à baila” umas férias que ele passara numa aldeia chamada Janeiro de Baixo. O amigo comentara com todos os pormenores e com grande exuberância a paisagem e a vida que ali descobrira. A praia fluvial do rio Zêzere, o silêncio da noite, as caminhadas por entre penedos e vales. Tudo era belo… Tudo era divinal. Dizia ele olhando para o céu:
- Parece o paraíso… Não gostarias de fazer umas férias diferentes? – perguntou à sua amiga. E sem a deixar responder acrescentou:
– Este ano vou de férias para Janeiro de Baixo.
– Mas que raio de sitio é esse? – perguntou Helena.
– É uma aldeia que fica junto ao rio Zêzere e cujas casas ainda são construídas em xisto. Paisagem maravilhosa, ar puro, sossego e praia fluvial. Que mais se pode pedir?
– Não… Não estou muito virada para aí. Gosto mais de praia de mar – respondeu. – E além disso já marquei férias em Armação de Pêra.
– Ah… Ok. Tudo bem! – respondeu algo desapontado.
Luís tinha um “fraquinho” pela aquela sua colega. Mas tímido como era nunca tivera coragem de se lhe declarar. Trabalhavam há vários anos naquela empresa de publicidade e tinham entrado ao mesmo tempo. Helena tinha 36 anos, menos dois que Luís, e possuía um caracter bem vincado. Não se poderia dizer propriamente que fosse uma “estampa de mulher” mas compensava com o “charme” que tinha no falar e no vestir. Nascera em Lisboa, na Maternidade do Dr. Alfredo da Costa, freguesia de São Sebastião da Pedreira, como uma grande parte dos “alfacinhas”. Oriunda de uma família da “meia-burguesia”, crescera sem problemas de maior. Luís, ao contrário, tinha nascido no Alentejo, na Aldeia de Casa Branca, concelho de Sousel. A sua infância fora passada naquela aldeia do interior do Alto Alentejo. Filho do barbeiro da aldeia, o “Ti” Joaquim, e da D. Maria Adelaide, que trabalhara na Adega do Mouchão. Estudara na escola da aldeia até que um primo um dia o levou para Lisboa com promessas de lhe dar “melhor vida”. Trabalhara de dia e estudara à noite. Custara-lhe bastante mas tinha conseguido formar-se.
Aquela leitaria lembrava-lhe tempos idos. Leitaria Académica era o nome que conservava desde que ele se lembrava. Ali bem no Largo do Carmo, bem pertinho da antiga Escola Comercial Veiga Beirão. Dali se partia para todo o lado. Para a Baixa, para o Chiado, para o Bairro Alto e para a Trindade. Belas amizades tinha feito naquela escola. Depois, algumas delas prolongaram-se pela faculdade e tinham chegado até hoje.
Bem ao contrário, tinha sido a sua entrada no mundo do trabalho. O primo Luís António, quando tinha falado com ele, ainda na terra, deixara-lhe uma imagem cor-de-rosa do que iria encontrar. Rapidamente essa imagem passou a miragem. O seu primeiro emprego tinha sido como ajudante de motorista numa empresa de distribuição de bebidas. Ajudante implicava ter de carregar e descarregar sozinho a carga. O Paulo, que era o nome do motorista, pouco o ajudava. Segundo ele, por duas razões. A primeira: “É que motorista é para conduzir e não para acartar” e a segunda é que ele era coxo. Todos os outros motoristas da firma eram normais mas só a ele lhe coubera em sorte um coxo…
Os armazéns ficavam perto da Estação de Santa Apolónia, o que amenizava um pouco os dias de trabalho mais duro. É que ele desde miúdo que gostava de comboios. Às vezes, ao fim do dia, ia ver chegar e partir os comboios. O que mais o impressionava era o Sud Express. Imaginava-se a viajar nele até Paris. Chegou até a pedir um horário de partidas e chegadas, bem como saber quanto custava a viagem em 1.ª classe. Sabia quase tudo acerca da história desse lendário comboio. Muitas vezes dava consigo a imaginar-se como um passageiro no final do século XIX. E assim muitas horas dentro daquela gare se passavam sem ele dar por isso.
Também em Casa Branca havia uma estação de comboios. Era ali que se iniciava o ramal de Évora. Aos domingos, quando o pai não tinha trabalho e ele era um gaiato, pedia-lhe para irem ver os comboios. De mão dada atravessavam a aldeia e, praticamente sem falarem, dirigiam-se para lá. À medida que se aproximavam daquele edifício o seu coração pulava de alegria dentro do peito. Na sua pequenez aquele apeadeiro era gigante. Destacava-se no meio do pequeno casario branco e azul alentejano. Ele entrava no cais e ficava especado a olhar o comboio. Que grande lhe parecia. Dava a ideia que cabia nele o que na aldeia havia.
Os anos entretanto foram passando e ele começara a estudar à noite. Com que sacrifício, muitas das vezes, ia ele para as aulas. O corpo cansado dos dias de trabalho, uma bucha comida à pressa e lá ia ele “fazer-se doutor”. O primo via-o de quando em vez. E com o tempo foram rareando os encontros.
Também ele no princípio escrevia com assiduidade aos pais mas, depois de alguns meses passados, a frequência com que o fazia foi diminuindo.
– Ouve Helena, não queres ir mesmo fazer umas férias comigo? – perguntou de supetão.
– Não! – respondeu-lhe quase sem olhar para ele.
– É que… – começou a ficar “vermelho” e quase a gaguejar – eu fazia muito gosto em que tu viesses… Sabes…
– O quê? – perguntou-lhe ela.
– Nada… Deixa estar! – a coragem faltara-lhe novamente.
– Bom, eu tenho de me ir embora – disse-lhe quase que a medo.
– Ok! Até amanhã.
Saiu de lá cabisbaixo e enraivecido consigo – Mas por que é que eu não consigo dizer que a amo? – ia-se questionado baixinho.
Seguiu a rua até ao fundo, com os olhos fixos no chão, como se quisesse esconder o seu olhar dos outros com quem se cruzava. Tinha 38 anos e imaginava-se a viver sozinho o resto dos seus dias. Até ser velhinho...
Ainda com a mala na mão, procurou nos bolsos e encontrou as chaves. Abriu a porta e entrou em casa. As luzes estavam apagadas.
- Hoje vou jantar sózinho! - pensou.
Despiu o casaco e atirou-se para cima do sofá. Pegou no comando da televisão e foi passando os canais sem prestar muita atenção no que estava a fazer. Não lhe apetecia ler e ficou a “olhar” o canal História. As imagens dum documentário sobre a II Guerra Mundial iam desfilando na sua frente. Mas a sua mente estava muito longe dali. Via-se com a Helena a passear, de mão dada, em Belém, junto ao Tejo. Via sorrir naquele sorriso que só ela tinha. E deixou-se assim ficar até adormecer lentamente.
Acordou algo estremunhado e olhou o relógio, que marcava 21,48 horas.
«Bom, vou preparar alguma coisa para comer», pensou para consigo.
Levantou-se e foi directo à cozinha. Acendeu a luz e o seu corpo tombou inanimado no chão.
Passados uns breves instantes abriu os olhos e sentiu dores na face e no braço esquerdo. Foi com a mão direita ao bolso das calças donde tirou o telemóvel. Marcou 112 e disse a morada…
– Bom dia amor!
Os olhos custavam a abrir e por mais esforço que fizesse só via “escuro”. Uma máscara de oxigénio encontava-se fixada na sua cara. Sentiu também uns tubos presos na mão e no braço.
– Como é que se sente hoje o meu “gatinho”?
Era a voz da Helena que lhe falava. Tudo lhe pareceu estranho, somente aquela voz doce lhe era familiar.
Fez um esforço para abrir os olhos e quando o fez tudo estava toldado à sua volta.
Sentiu um barulho de tacões de sapatos de mulher a afastar-se rapidamente. Tentou falar mas da sua boca nada saía.
Ouviu novamente o barulho dos tacões aproximar-se juntamente com outros sons de sapatos.
Sentiu umas mãos sobre as arcadas dos olhos e uma luz intensa sobre um olho e depois outro. Alguém disse: “Temos homem!”
Do outro lado via-se Cacilhas e o pequeno cais da Trafaria. Helena caminhava ao seu lado agarrada ao seu braço. Um pouco mais à frente uma pequena criança corria num vaivém sem descanso. «Como é belo o Tejo!», pensou em voz alta. Helena olhou para si e sorriu. A criança chamava-se Hugo e era o seu filho.
Tinham-se passado quase dois anos que estivera em coma. A sua Helena sempre estivera ali. Tudo não passara de recordações vividas em tempos idos.
E repetiu: “Como é belo o Tejo!”