sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O decifrador

Pousara a mala e pendurara o casaco.
Estes gestos, passados tantos anos, eram quase mecânicos. Nem sequer pensava muito nisso. A sua mente andava absorvida com a tentativa de decifrar aqueles caracteres.
Durante muito tempo sempre fora demasiado fácil conseguir reunir todas as “peças” e decifrar qualquer enigma que se lhe deparasse, mas agora…
— Deve ser da idade! — pensava para consigo enquanto olhava e tornava a olhar.
No início, sempre que encontrava uma destas charadas, era uma obsessão enquanto não chegava rapidamente ao fim. Com a idade tornara-se um “perito” reconhecido por todos os colegas.
As “celulazinhas cinzentas”, como dizia Poirot, precisavam de ser treinadas diariamente.
Tornara a trazer os mesmos sapatos que usava em dias mais primaveris, mas hoje o dia era de sol e a temperatura aumentara bastante.
— Bodega para isto! Porque é que não vi hoje a televisão. Assim teria sabido e não teria trazido estes sapatos — continuava a “ruminar” pensamentos. No entanto, não era isso o que mais o “chateava” agora. Isso era um pretexto para não continuar a pensar nos “malditos caracteres”.
Já estava a ver a cara dos colegas a cumprimentarem-no e depois a perguntarem-lhe:
— Então Magalhães, já conseguiste resolver o “problema”?
Sabia que nas suas costas se iriam rir e achar que estava na “hora” de “arrumar as botas”.
— Ah não! Isso queriam vocês, mas eu vou conseguir!
Mais uns dias e resolveria definitivamente mais aquele problema. E depois seria ele a rir-se “entre dentes” e a gozar interiormente.
Metia-lhe raiva também a proibição que o Governo lançara, em forma de lei, de não se poder fumar em recintos fechados. Se pudesse puxar dum cigarrinho, como outrora fazia, conseguiria mais facilmente.
-Raios os partam! Se se preocupassem com “coisas” mais importantes fariam bem melhor — pensava.
Olhou novamente. Parecia-lhe um c… um o e, a partir daí, as letras eram “gatafunhos” autênticos. Os números percebiam-se bem. Um “2”, um “1”, e o resto já os sabia de cor.
Puxou da agenda e da caneta e “um a um” foi-os escrevendo, intervalando com espaços os que não conseguira ainda “decifrar”.
O telemóvel tocou.
— Sim, Sofia, sou eu! Quem é que querias que fosse?
— Não… não. Resolve tu isso!
— Pois sim… já sei! Mas agora não posso. Estou ocupado!
— Mas que raio é que te deu agora para me ligares? Não podíamos falar disso mais logo?
— Já te disse que não, porra! A gente logo fala.
— Mas para é que tu queres saber disso… agora e já?
— Desculpa mas não posso estar aqui a perder mais tempo com conversas da “treta”.
Irritado, desligou o telemóvel.
— Agora chamam-lhe “télélé”… que nome mais ridículo…
Entretanto continuou a sua ocupação.
Olhou para o relógio. Marcava 17,30h.
— Bom, está na hora! — pensou. — Que se lixe!
— Até amanhã, Senhor Magalhães!
— Até amanhã, Raimundo. Resto de dia bom!
A avenida começava a “fervilhar” de carros aquela hora.
— E ainda dizem que a gasolina está cara! — comentou de si para si. — Andem de transportes como eu!…
No entanto, antes de apanhar o “metro”, entrou na cervejaria do costume.
— Então o que é que vai ser hoje, “Sô” Magalhães? A “imperialzinha” do costume?
Fez que sim com a cabeça. Embirrava solenemente com aqueles diminutivos parvos que punham a tudo. Um “cafezinho”, uma “bolachinha”, um “pastelinho” e por aí fora.
Sentou-se no lugar do costume. Recostou-se bem na cadeira e, meticulosamente, foi retirando a agenda, a caneta e os óculos.
— Sô Magalhães, hoje não há “tremoçecos”! Quer uns amendoins prá acompanhar?
— Pois sim! Traga lá os amendoins. Mas não me dê desses que estão torrados demais. Gosto de amendoins brancos e não de pretos…
— Ora vamos lá com calma — falava mentalmente.
Aquilo dava-lhe “gozo”. Ficar a pensar e a “pouco e pouco” ir desatando “o fio à meada” era, sem dúvida, mais forte do que ele. Tinha pensado em só pegar “naquilo” no outro dia, mas o “desconforto mental” era pesado demais.
Foi ficando por ali sem dar conta do tempo. Quando tornou a olhar para o relógio já passava das 8 horas da noite.
— Ena pá, grande “bronca”! — pensou. — Quando chegar a casa vou ouvir “das boas”.
Arrumou tudo meticulosamente, pagou e saiu dali rapidamente.
Ao atravessar a rua nem se deu conta da mota que ia a passar. Sentiu uma pancada e a partir daí nada mais.
Acordou “assarapantado”. Estava num hospital mas não conseguia reconhecer qual. Olhou em frente e viu a sua perna suspensa e toda engessada.
— Senhora enfermeira! — chamou. — O que é que me aconteceu?
— Bom dia, Senhor Magalhães. Sente-se melhor?
— Sim, ou melhor, penso que sim! — respondeu. — Mas o que é que me aconteceu?
— Então não se lembra de nada? — perguntou a delicadamente a jovem enfermeira.
— Não, não me lembro de nada! Se me lembrasse, não estaria a perguntar.
— Faça um esforço. Vá lá… qual é a última coisa que se lembra de ter feito naquele dia?
— Naquele dia?! Mas eu estou aqui há muitos dias?
— Sim, há mais de sete dias, precisamente. Esteve em coma e é quase um milagre estar vivo…
— A sua esposa deve estar a chegar. Ela depois fala consigo!
Ficou pensativo a olhar a enfermeira que se afastava em direcção a outra cama.
— Mas porque é que não me consigo lembrar? — meditava baixinho.
Olhou para a mesa-de-cabeceira e viu os óculos e a agenda. Era isso… a agenda!
De repente “fez-se luz”… o enigma.
— Olá, meu querido! Sentes-te bem?
Nem tinha dado conta da entrada da sua mulher na enfermaria.
— Olá, Sofia! Sim estou bem. Bom… bem, bem não estou! Mas já acordei.
— Parece milagre não teres morrido. Tenho estado aqui todos os dias a ver se “acordavas”.
— Mas como é que tu, um homem tão prudente e minucioso, és atropelado por não teres reparado na moto?
Fez uma cara de “rapazinho arrependido”.
— Já sei, não digas mais! Andavas com aquela tua “mania” da decifração! Não foi?
Ele nem se atrevia a responder. Ouvia mas não tinha “argumentos” para ripostar.
— Acabou-se duma vez por todas! Nunca mais entras em sanitários públicos para copiares as “malditas” mensagens escritas nas portas.
Baixou os olhos e, resignado, anuiu com a cabeça.

Gravura de: José Bandeira

Paredes brancas

O fumo do cigarro ondulava no ar enquanto ele jazia nu sobre a cama.
Não.
Ele caminhava até mim com a graça da poesia nos seus movimentos lentos, e tudo o que eu podia fazer era suspirar.
Não, não.
Sentado na varanda, as faces coradas de lágrimas, e a lenta progressão do tempo marcada apenas pelo chilrear dos pássaros nas árvores.
Ainda não.
Ele saiu pela porta, eu parei e olhei para ele a correr na semiescuridão.
Não
Ele beijou-me suavemente, afundando-me na maciez da cama.
Quando me beijou, pensei: «Sim.» Guardar este momento, eternizar este segundo.
Quando ele me beijou eu sabia que era o fim.

Então, escrevi isto para não me esquecer. Escrevi isto para ti. É assim que eu me lembro. Esta é a forma como aconteceu.
Estou a vê-lo agora e vejo a sua maçã-de-adão, saliente do seu pescoço, cada vez mais perto à medida que o relógio se eterniza até ao próximo segundo. Então seus lábios encontram os meus. Os seus lábios estão cheios, redondos, uma quente sensualidade moldada numa fria cara de pedra. Em seguida, os lábios estão nos meus, pressionando levemente contra a minha boca e eu quero puxá-lo para mim até já não saber onde termina um e começa o outro.
Eu estava ser beijado, eu já não estava lá. Eu ouvia a pressa da chuva leve na árvore lá fora. Mas eu já não sentia o meu coração bater, o meu sangue pulsar ou as minhas lágrimas correr. Eu já não sentia o incómodo calor dos cobertores cobrindo o meu corpo. Naquele momento, eu não existia.

Podia dizer-te que apesar de não sentir tudo isso, apesar de não sentir o vento ou o toque da roupa no meu corpo, sabia que tudo existia. Que existia um mundo para além do que aqui te conto. Podia descrever-te o vácuo em que se transformou a minha mente no momento em que aqueles lábios se juntaram aos meus. Mas não o farei. Sei que não irias acreditar. Vou apenas contar-te o depois, quando regressei ao mundo dos vivos.
Os meus olhos estavam fechados. Quando ele saiu eu não vi, mas senti. Ouvi o lento ranger da porta e o som seco da madeira a embater no aro ao fechar.
Lentamente deixe de sentir o toque dos meus pés. Uma membrana impermeável cobria todo o meu corpo e eu estava consciente de não ser capaz de chegar a mim mesmo. As minhas mãos deslizaram por mim sentindo os braços, o tecido dos lençóis e o calor entre as pernas. As minhas mãos procuraram a familiar sensação de prazer, a corrida do sangue aos corpos cavernosos. Mas só senti novamente a estranha membrana que me separava de mim mesmo. Tentei novamente em desespero, violentamente. Belisquei-me como um médico faz a alguém vítima de paralisia. Nada.

Foi o beijo, Vês? Foi o beijo que me permitiu viajar para lá do desconhecido. Foi o beijo que me permitiu não sentir as teclas com que ritmadamente escrevo este texto. Sei que não estou louco. Sei que ainda vou beijar mais. Sei que ainda vou estar com muitos outros homens. Sei que nunca mais vou ter este desejo que me consome. Estou calmo. Estranhamente calmo, sentado na minha cama, os cobertores enrolados em mim, incapaz de parar o fluxo de palavras que jorram da minha mente para os meus dedos. Como, perguntas-me, foi ele capaz de provocar essa mudança? Imaginas com certeza um Apolo. Imaginas um Deus e também tu o desejas. Não. Ele não é um homem perfeito, não é o homem com quem vou envelhecer. Ele é um homem, não muito bonito, mas perfeito para mim. Ele é um homem. E isso é tudo. Quando partiu percebi que ele era perfeito para mim.
Mas e agora?, perguntas-me tu, verbalizando os teus próprios desgostos, os teus homens perfeitos, o que vais fazer agora?
Vou ficar aqui, de olhos fechados. A sonhar com o último beijo, com o homem perfeito.

Na minha cama de solteiro, no meu quarto de paredes brancas.

O Túnel


A multidão estava ao rubro.
Embriagada pelo som forte, grave, pleno de distorção e emoções melódicas, salpicado pelo sibilar acutilante de um feed¬ back que teimava em fustigar impiedosamente todo aquele cenário grotesco, uma massa humana pulava e gritava, tentando cantar um refrão recheado de mensagens obscuras e apocalípticas.
No palco, num emaranhado de luzes e fumo, vislumbravam¬ se cinco vultos que pulavam energicamente enquanto cantavam e tocavam, como que possuídos por uma força exterior.
Naquele espaço fechado, naquele momento, tudo era vivido a um ritmo frenético, exagerado e louco; era uma cúpula vibrante, onde muitos aproveitavam para exorcizar todas as suas paranóias e despejar revoltas acumuladas.
Dir¬ se¬ ia tratar¬ se de uma banda de culto.
Os músicos, todos rapazes na casa dos 20 anos, de aspecto rebelde e trato descuidado, deixavam adivinhar uma vida dura, de drogas, repleta de fantasmas e monstros que habitavam a sua imaginação e pesadelos.
— Então people… está tudo bem? — gritava o vocalista para os seus fãs.
— Agora quero¬ vos ouvir a todos e não quero ver ninguém parado — berrava com todas as suas forças. — Esta noite é mesmo para partir.
A multidão, extasiada, vibrava entoando refrões cinzentos, enquanto se acotovelavam entre ritmadas ondas humanas impregnadas de fumo que as enlouquecia.
— Alex! És o maior! — tentava fazer¬ se ouvir uma fã junto ao palco, admirando cambaleante o seu ídolo.
Alex era o vocalista desta banda. Era um rapaz alto e magro, com um longo cabelo negro, comprido e liso, que teimava em marcar o ritmo como se de um metrónomo se tratasse. O seu aspecto geral era de algum desleixo, mas havia algo nele que indiciava um carácter nobre e melhores dias vividos outrora.
Naquele dia, Alex apresentava¬ se como um verdadeiro animal do palco. Cantava, puxava pelo público e corria, rodopiando o tripé do microfone por cima da cabeça.
O concerto estava já perto do seu final, mas toda a gente parecia possuir energias para continuar naquele ritmo horas seguidas, comungando daquela onda que os fazia sentir mais vivos e partilhando de todos aqueles rituais que só eles entendiam.
Alex anuncia o final do concerto:
— Adeus pessoal, até à próxima — disse ele gritando.
E os músicos desaparecem rapidamente do palco, que ficou nesse momento completamente às escuras.
— Só mais uma! Só mais uma! — gritavam os fãs aplaudindo, com vontade de assistirem a um pouco mais do espectáculo. Durante alguns segundos o barulho foi infernal.
Finalmente, no palco, para gáudio da multidão, as luzes reacenderam¬ se e os músicos apareceram envoltos por um cenário confuso e psicadélico para tocarem mais uma música.
Após uma sequência de vários encore, a banda preparava¬ se finalmente para terminar o concerto. Com auxílio dos técnicos de luz e som, o palco era iluminado por um emaranhado de luzes que se cruzavam a um ritmo alucinante, culminando com o aparecimento de um enorme arco em chamas. Alex correu na direcção do fogo e atirou¬ se em voo para o meio do círculo flamejante; simultaneamente apagaram¬ se as luzes.
Estava terminado o espectáculo. A multidão foi dispersando, saindo do recinto.
— Mas afinal onde estou eu? — interrogava¬ se Alex. — Como é que vim cá parar? Não reconheço este sítio de lado algum. — Alguém me ouve? — gritou.
Alex estava intrigado com aquele lugar onde se encontrava. Era um enorme túnel, maravilhoso, envolto numa espécie de névoa muito branca e cintilante, que se movimentava muito lentamente num ritmo de grande serenidade e paz. Parecia um túnel de algodão. No seu início o contraste absoluto de uma barreira negra e assustadora.
De repente ouviu vozes…
— Alguém viu o Alex? — perguntava o Tó P.
Tó P era o baterista da banda; andava à procura do amigo.
— Tó P, estou aqui — gritava assustado Alex. — Venham¬ me cá buscar.
Mas, para seu desespero, apercebeu¬ se que o seu companheiro tinha desistido de o encontrar, e que se ia embora.
— Vamos embora pessoal — disse Tó P para os amigos. — Ele já se foi; devia estar muito pedrado como aliás estamos todos, amanhã tratamos do material — concluiu.
Alex nem queria acreditar; conseguia ouvir os amigos, mas eles não o escutavam. Assustado, foi caminhando ao longo do túnel do qual não conseguia ver o final e, para seu espanto, verificou que, à medida que avançava, conseguia visualizar imagens de cenas passadas, através de toda aquela intensa névoa.
— Mas o que é isto!? — pensou. — Consigo ver o concerto, o público, o palco, os meus amigos e até eu próprio… e lá no fundo da multidão, eu não acredito, o meu irmão João?
João era o único irmão de Alex, três anos mais velho. As suas relações não eram as melhores, embora já tivessem sido inseparáveis em tempos. A partir de determinada altura as suas vidas seguiram rumos diferentes e incompatíveis. João formou¬ se em Arquitectura enquanto Alex deixou de estudar para se dedicar à música. João nunca concordou com esta opção, até porque na sequência do seu projecto musical veio uma vida complicada e marginal dependente de drogas e de grande sofrimento para os seus pais.
Alex continuava incrédulo a observar o irmão, discreto como sempre, observador, calmo, boa figura e imperturbável. Ele era a antítese de todo aquele cenário louco.
— Gostaria imenso de lhe dar um abraço — pensou Alex, fragilizado e vulnerável com toda aquela situação. — Ele certamente não veio ver o espectáculo, estava preocupado comigo, claro, éramos grandes amigos, fizemos muita coisa juntos e passámos momentos muito felizes; como foi possível chegarmos a esta situação? A vida é matreira — continuou. — Não, a vida não é matreira, matreira é a raposa, matreira é a raça humana.
Pensamentos de tristeza e de alguma revolta foram¬ lhe invadindo a alma enquanto ia avançando pelo túnel de onde emergiam, de quando em vez, algumas argolas de fumo, inócuo, que exalavam um ligeiro mas agradável odor.
— Será que estou a ir em direcção ao céu? — perguntou em voz alta. — Mas como posso eu admitir o céu se sempre cantei o inferno e idolatrei satã, se sempre combati todos os dogmas instituídos e seus representantes, se sempre admiti a escumalha como a verdadeira essência da vida e paradigma do ser humano não alinhado e não cooperante, nesta sociedade recheada de pragmatismos e hipocrisia.
— Bem… sempre, não — pensou. — Na verdade fui invadido por estes ideais depois de ter entrado na banda, influenciado talvez pelos amigos e também por algumas coisas que fui tomando. É uma realidade completamente distorcida.
E enquanto reflectia sobre o que tinha sido a sua vida nos últimos anos, Alex ia sentindo uma clareza de raciocínio como já não sentia há muito tempo. Era um raciocínio que se articulava e ordenava à medida que avançava ao longo daquele fantástico túnel, que lhe continuava a proporcionar imagens da sua vida como se de um filme se tratasse, mas cuja história progredia em negativos.
Alex não compreendia. Lembrava¬ se de se ter atirado para o arco em chamas e depois aparecer naquele lugar. No entanto, curioso, foi observando todas aquelas imagens que avançavam ao ritmo dos seus passos. De repente parou.
— Como é que é possível? Foi a isto que eu cheguei? — interrogava¬ se ele incrédulo. — Como é que nunca me apercebi que fazia parte deste filme de miséria humana e humilhação?
Alex assistia agora a uma imagem desoladora, feita de pedaços de caos e auto-destruição. Ali estava ele, juntamente com dezenas de companheiros de infortúnio, naquele sítio, uma antiga sucata onde ainda restavam alguns velhos carros. Era um lugar infecto, situado nos arredores da sua pequena cidade. Aqui e ali, pequenas fogueiras iluminavam timidamente aquele amontoado de ferro-velho e lixo, onde se vislumbravam pequenos grupos dispersos, desesperados, que comungavam de uma rotina que se repetia todas as noites, na tentativa de calar o sofrimento de uma ressaca de desespero e necessidade. Era uma batalha maldita, sempre perdida, mas que lhes dava uma falsa e efémera sensação de vitória. A fome e a doença estampavam¬ se no rosto de muitos que por ali deambulavam; as seringas partilhadas, os comprimidos e o fumo que passava de boca em boca eram ameaças constantes às suas vidas.
Ao fundo, numa velha carrinha, uma rapariga prostituía¬ se na esperança de conseguir a sua dose.
Era realmente uma imagem desoladora. Um verdadeiro desfile de miséria humana.
Lembrou¬ se do seu amigo Humberto, também ele em tempos frequentador daquele lugar, até ao dia em que apareceu morto na casa de banho do cemitério por excesso de comprimidos.
— Foi ele quem me iniciou nesta vida — lembrava¬ se Alex. — Naquela altura era o meu ídolo. Ele foi o primeiro líder da banda. Teve uma infância difícil e solitária no seio de uma família muito problemática. Cresceu nas ruas da cidade e precocemente frequentou as suas esquinas mais obscuras; era, no entanto, dono de uma personalidade forte e respeitado no seu meio. Lembro¬ me do dia em que fomos apresentados e ele me disse que precisavam de um vocalista. Fiquei radiante, pois o meu sonho era cantar num palco. Fui fazer um teste e acabei por ser aceite, embora a minha figura destoasse por completo com a dos outros músicos e com toda a atmosfera criada naquele lugar de ensaios. Era um barracão velho que ficava nas traseiras da casa do Tó P e que não podíamos frequentar à noite por causa do barulho. No início senti¬ me um pouco intimidado com aquele ambiente de gente diferente que fumava droga e cuja música evocava o diabo e o inferno, eu não percebia, mas a vontade de cantar era mais forte e acabei por aderir e ser enrolado naquele turbilhão de novidades. Alguns dias mais tarde, Humberto elogiou¬ me imenso, dizendo que já não imaginava as músicas cantadas por outra pessoa, mas que se quisesse experimentar uma coisa que ele tinha, eu iria sentir a música de forma diferente e cantar como nunca. Acedi. Já lá vão três anos.
Eu era apenas um jovem normal, que perseguia um sonho, o destino mostrou¬ me uma porta, uma porta errada que eu abri, para percorrer um caminho que nunca ninguém deveria percorrer. É fácil encontrar a porta de entrada mas quase impossível encontrar a da saída; julgamos ter a situação controlada, mas rapidamente somos nós completamente controlados.
Alex via a sua vida passar diante dos seus olhos e sentia¬ se triste.
— Será que é castigo? — balbuciava.
— Será que termina assim? — interrogava¬ se apreensivo. — Entreguei a minha vida ao inferno a troco de quê? Como eu gostaria de respirar o mundo, voltar a viver a vida que eu esbanjei, libertar¬ me das correntes que me oprimem e me tolhem os movimentos, retirar a mordaça que me sufoca as palavras e pensamentos, destruir esta máscara de horrores e deixar fluir um sorriso, resgatar o amor e a felicidade e gritar bem alto… sou feliz, voltei a ser feliz, não mais deixarei de ser feliz.
E, enquanto se embrenhava nestes pensamentos de libertação, Alex foi avançando no seu solitário percurso, um pouco melancólico e perdido.
Observava agora a sua cidade, que ele percorria devagar, alheando¬ se de tudo o que se passava em seu redor. Parecia caminhar sozinho no mundo, passeando o olhar num horizonte muito longínquo.
De repente parou. Alguém o chamava.
— É o Zé «Coto» — reconheceu Alex. — Chama¬ me para me pedir ajuda. Está aflito, a ressacar, implora¬ me para que lhe arranje alguma coisa; ele arruma carros para conseguir algum dinheiro mas o «negócio» naquele dia estava mau.
— Coitado do Zé — pensou. — Eu não o ajudei, disse¬ lhe que não tinha nada, menti¬ lhe.
Nesta vida dificilmente conseguimos distinguir o bem do mal, tornamo¬ nos egoístas, preocupados apenas com a nossa própria sobrevivência.
O Zé já foi em tempos um bom serralheiro, até ao dia em que ficou sem uma mão num estúpido acidente de trabalho. Ficou completamente de rastos e refugiou¬ se no álcool e nas drogas. Ele era mais um entre tantos outros que frequentavam o ferro-velho, era mais um companheiro de infortúnio que passava os dias sobrevivendo. Gostava imenso de o poder ajudar neste momento, não da forma que ele pretendia, mas tentando encontrar um caminho alternativo, menos penoso, com mais vida e esperança. Eu próprio gostaria de voltar a esse caminho se tivesse outra oportunidade.
Alex continuava a caminhar pelo túnel, agora num passo mais rápido, impelido por uma espécie de esperança apressada e ansiosa; talvez aquela situação não fosse já o seu fim, embora não encontrasse outra explicação para aquela situação e aquele lugar de aspecto magnífico, mas de contornos pouco terrenos.
Quanto mais depressa ele andava, mais rapidamente passavam as imagens; Alex continuava a percorrer as ruas, passando pelos bares que frequentava e onde por vezes tocava, pelo velho cine¬ teatro onde tinha dado o último concerto, pela sua velha escola primária, pela igreja, pelo jardim…
No jardim Alex encontrou um amigo. Falaram um bocado e encaminharam¬ se para uma mercearia.
No túnel Alex parou de repente. Estava estarrecido. Lembrou¬ se do que tinha acontecido a seguir.
— Este foi um dos dias mais tristes da minha vida — lamentou¬ se. — Como eu gostaria de poder passar uma borracha neste dia, poder voltar ao passado e corrigir esta mancha mais negra que a minha escura vida.
Em geral tinha mais facilidade em arranjar dinheiro do que os outros, ganhava algum quando tocava, mas nunca era suficiente para as necessidades. Naquele dia estava completamente perdido, fora de si. Coitada da velha senhora.
Alex observava atento a cena; ele e o amigo entraram na mercearia, um negócio antigo cuja dona era uma senhora de idade, que os atendeu com um sorriso, perguntando¬ lhes o que queriam. O plano já tinha sido previamente alinhavado no jardim e, passando à prática, o amigo de Alex disse que queria ver algumas frutas que se encontravam em caixotes no exterior do estabelecimento. A senhora dirigiu¬ se ao local para o atender enquanto Alex ficava sozinho no interior da loja. Então, conforme combinado, aproximou¬ se rapidamente da caixa registadora e retirou todo o dinheiro que pôde. Saiu, fez sinal ao seu amigo e puseram¬ se os dois em fuga, ouvindo os gritos e o choro da comerciante, que finalmente compreendeu o que se estava a passar.
A polícia apanhou¬ os pouco tempo depois, passaram uma noite na cela e foram soltos pela manhã.
— Como se não bastasse a baixeza da atitude, fomos contemplados também com a burrice — pensou Alex. — Como é que pudemos imaginar ter êxito num plano destes, nós que éramos tão conhecidos nesta pequena cidade de província? Idiotas.
Alex estava mais triste do que nunca. Sentou¬ se, fechou os olhos e meditou, mas curiosamente não se sentia sentado, era uma espécie de levitação. Isso assustou¬ o um pouco, era uma sensação que nunca tinha experimentado, resolveu então levantar¬ se e prosseguir caminho.
Várias imagens se passaram, várias cenas revividas por Alex, o desprezo por esta sua vida era cada vez maior, crescia com a indignação, crescia com a relutância de se encontrar naquelas imagens terríveis pertencentes a um mundo com janelas feitas de grades, por onde se viam as inexpugnáveis muralhas de uma outra vida que também já fora sua.
Alex não pôde deixar de parar noutra cena.
Estava ele a ensaiar no barracão com os amigos, quando de repente entra uma bela mulher. Queria¬ lhe falar. Interromperam o ensaio e Alex saiu com ela. Era a namorada dele.
— Já quase me tinha esquecido de como era bonita — exclamou Alex emocionado. — Passámos momentos espectaculares, só damos valor às coisas boas da vida quando as perdemos. A Raquel era a namorada perfeita e durante dois anos tivemos uma relação impecável. Quando entrei para a banda tudo se complicou, ela não gostava da minha nova onda. Comecei a tornar¬ me agressivo, a faltar a encontros com ela e a mentir¬ lhe, mas mesmo assim ainda me conseguiu aguentar meio ano, numa tentativa desesperada de me fazer voltar à realidade.
Naquele dia ela foi ao barracão para acabarmos a relação, dizendo que já não me reconhecia, que eu me tinha transformado num estranho e já não me aguentava mais.
Estranhamente não valorizei muito essa situação na altura e regressei de imediato ao ensaio. Estava completamente cego, perdido. Adoro¬ te Raquel.
Alex foi caminhando cabisbaixo, como ele gostaria de recuperar tudo aquilo que perdeu.
Estou aqui neste lugar… — pensou Alex. — Não sei onde estou, para onde vou, se morri, se estou noutra dimensão; quem será que controla tudo isto? Alguém me estará a ver?
— Está aí alguém? — gritou. — Quero sair daqui — berrou com todas as suas forças.
Começou a correr, por entre suaves sopros de fumo, rasgando os delicados mantos de névoa plantados ao longo do túnel, e correu, correu, até chocar de frente com outra imagem.
— É a minha mãe — disse ele ofegante. — Mãe, que saudades, onde estás? Tira¬ me daqui — implorou Alex.
Alex deparava¬ se neste momento com uma imagem particularmente triste. Os seus pais tinham percebido que o estavam a perder, que o seu filho querido se estava a afundar nas areias movediças de um mundo que eles não compreendiam nem aceitavam. Falavam com Alex. A mãe chorava e seu pai, desesperado, tentava chamᬠlo à razão. Tinha abandonado os estudos, renegado os amigos, desprezado a família… Alex respondia¬ lhes que não tinham nada a ver com isso porque a vida era dele. Bateu com a porta e desapareceu.
— Como foi possível não lhes ter dado ouvidos — pensou Alex. — Desprezei os melhores pais do mundo, éramos uma família muito unida. Sou um imbecil.
De repente Alex ouviu uma voz:
— Estás a ficar piegas ou é impressão minha? Sempre foste um rei no ferro¬ velho e agora estás armado em menino certinho?
— Quem está aí? — perguntou Alex.
— Não sabes quem sou? Sou teu amigo, tenho¬ te acompanhado nos últimos anos, tens seguido os meus conselhos e agora não sabes quem eu sou? Muitas vezes tive que lutar por ti, o teu anjo teimava em não te deixar viver a vida à vontade e muitas vezes tive que o amarrar para não te incomodar.
— Acho que estou a perceber quem tu és — disse Alex. — Vai¬ te embora, deixa¬ me, não quero mais nada contigo.
— Então isso são maneiras de tratar um velho amigo? Mas eu não me ofendo, aliás vou¬ te ajudar novamente. Já pensaste que estás a andar neste túnel há imenso tempo sempre na mesma direcção, sempre no mesmo rumo, e nem sequer sabes onde estás nem para onde vais? E que tal se fosses agora na direcção oposta? Pode ser que te surpreendas…
— Mas tu sabes o que tem do outro lado? — perguntou Alex.
— Claro que sei, mas é surpresa, não te posso dizer.
Alex estava naquele momento disposto a tudo, ele só queria sair dali e resolveu experimentar então o caminho inverso enquanto ouvia sonoras gargalhadas do seu pseudo amigo invisível.
Surpreendentemente o caminho tornava¬ se agora mais difícil. Os calmos mantos brancos transformavam¬ se em tempestuosas e frias névoas e Alex só a muito custo conseguia avançar. De vez em quando ouvia¬ se aquela voz:
— Força Alex, não desistas, estás quase lá.
Durante bastante tempo Alex foi lutando para conseguir avançar ao longo do túnel que soprava rajadas cada vez mais fortes e geladas. Parecia que algo não queria que ele fosse naquela direcção. O odor agradável que antes sentia deu lugar a um cheiro estranho e pouco agradável. Finalmente avistou um grande buraco negro.
— Reconheço este lugar — disse Alex. — Foi aqui que eu vim parar a primeira vez. Era para aqui que tu querias que eu viesse? — perguntou.
Não obteve resposta. Estava um silêncio absoluto.
— Quero sair daqui — gritou Alex.
Ouve¬ se então uma voz gélida:
— Alex…
— Não é a mesma voz… quem me chama?
— Sou eu… o teu amigo…
— Qual amigo, onde estás? — perguntou ansioso.
— O Humberto, o teu amigo Humberto.
— Humberto? Não pode ser, tu estás… morto.
— Estou aqui, Alex, olha para mim.
Alex olhou para o grande buraco negro e viu uma silhueta que se aproximava deslizando, fazendo¬ lhe sinal para se aproximar.
— Alex, anda, vem ter comigo.
— Não vou nada, vem cá tu, estou farto de escuridão.
Ouve¬ se então a outra voz:
— Vai, Alex, vai ter com o teu amigo, vais finalmente ver a surpresa.
— Anda — dizia Humberto. — Vais experimentar uma coisa que vais gostar.
Alex lembrou¬ se de como tudo tinha começado há alguns anos atrás, tinha sido exactamente o seu amigo Humberto que o tinha levado para aquela vida.
— Não — disse Alex. — Não volto a cair no mesmo erro, nem volto a experimentar nada que tenhas para me oferecer.
De repente um vento começou a soprar muito forte arrastando¬ o na direcção do buraco. Alex estava aflito e a ficar sem forças para resistir.
— Socorro, quem me ajuda, tirem¬ me daqui — gritava Alex.
— Não ouviste nada?
— Pareceu¬ me ouvir qualquer coisa, acho que é ali na zona do palco.
— Vamos lá ver.
Duas senhoras da limpeza tinham acabado de entrar no velho cine-teatro onde Alex tinha tocado para começarem o seu dia de trabalho.
— Socorro!
— Está mesmo alguém a pedir ajuda. Acho que é ali no fosso da orquestra.
— Vamos lá ver.
Aproximaram¬ se e, espantadas, verificaram que havia alguém caído entre um amontoado de móveis e cadeiras velhas que se encontravam depositados no velho fosso de orquestra.
— Quem está aí? — perguntaram.
Sem resposta.
Desceram ao fosso e constataram que havia realmente ali uma pessoa, mas que naquele momento já não dava conta de si, parecia estar com ferimentos e inconsciente.
Rapidamente chamaram a ambulância para socorrê¬ la.
Era Alex quem ali estava, prostrado, coberto de velhas madeiras, apanhado numa teia de cadeiras, móveis antigos e sujidade.
Quando deu o salto através do fogo, no final do espectáculo, acabou por cair directamente no fosso sem que ninguém se apercebesse. As luzes apagaram¬ se e toda a gente pensou que Alex se tinha retirado do palco. Mas não, ali ficou ele caído, sozinho, uma noite. A queda e o excesso de droga deixaram¬ no semi¬ inconsciente, no limiar da morte, preso no amontoado de lixo, mas quase livre da prisão que era a sua vida. Quantos companheiros de Alex frequentadores do ferro¬ velho poderão vir a ter um fim semelhante, caídos num qualquer canto, mas finalmente livres daquilo que há muito tempo os tinha agarrado. Para muitos será infelizmente a única forma de libertação.
Qualquer deles argumentaria, com certeza, uma justificação para terem começado esta vida de sofrimento, mas não existe qualquer razão, problema ou curiosidade que justifiquem a experiência. A primeira vez pode ser fatal e de certeza que todos os Alex, Humbertos ou Zé «Coto» espalhados por este mundo, se soubessem aquilo que ia ser a suas vidas, nunca teriam sequer experimentado.
No caso de Alex, tudo acabou por correr bem. Lutou toda a noite no seu estado de adormecimento. Entrou no hospital a tempo de ser salvo, embora estivesse já preso à vida por um fio. Quando recuperou a consciência, encontrou junto da cabeceira da cama o seu irmão João. Ficou muito feliz e prometeu a si próprio que aquele dia iria ser o primeiro de uma nova vida. Adeus banda, adeus ferro-velho, adeus vida cruel.
Será que vai conseguir?
A recordação daquele túnel fantástico e das imagens que tanto o fizeram sofrer de certeza que no futuro o vão ajudar nas suas opções de vida.
Aquele túnel era apenas fruto do seu inconsciente. Eram apenas imagens recalcadas, escondidas bem lá no fundo da sua consciência que aproveitaram aquele momento de fragilidade para se manifestarem.
Afinal tudo não passou de um delírio quase moribundo.
Ou talvez não…

FIM

Alexander


I

Príncipe Alexander entrou na nossa vida era eu um pueril menino que completara o ensino primário há pouco mais de uma semana. Surgiu como se de um capricho da imaginação se tratasse. A sua voz melodiosa e tranquila apoderou¬ se de nós, qual encantamento que nos elevou até o mundo da utopia, embalados por histórias que pareciam ser reais e nos faziam acreditar no impossível. A expressão serena, o olhar distante, transmitiam uma aura de sabedoria que nos cativava e fazia desejar estar junto de si.
Era tempo de férias, do início do Verão efluíam aromas pintalgados de árvores, rio e mar, que nos incitavam a alma para a euforia e impeliam o corpo infrene a correr apaixonadamente de braços abertos para a vida. Dava vontade de guardar o ar em garrafões de 5 l e armazenᬠlo para os dias tristes do Inverno. Apetecia cortar a relva molhada dos jardins em pequenas tartes, pulverizᬠla com a areia húmida da praia e depois trincar, saborear, polir os dentes nos pequenos grãos salgados, mastigar a natureza e digeri¬ la placidamente até que os olhos cansados se fechem para mais uma noite de sonhos.
Vivia uma época da minha vida em que realmente fui feliz; a consciência não tinha peso — ou antes, apenas me sugeria ditames tão leves e insignificantes como não mentir ou respeitar os mais velhos — e o meu corpo, leve como uma pluma, pisava a terra em bicos de pés e pairava isento de gravidade. Sentia¬ me o Homem¬ Aranha! Capaz de correr veloz sobre os muros caiados do meu bairro, pinchar e pular telhados de vidro, que, como o aço, a tudo resistiam, rebolar nos paralelos gastos e, de vez em quando, sentir um tímido fio de sangue manchar¬ me a pele, ver que feridas e arranhões se curavam num instante, quase por magia, em segundos ficava pronto para mais uma correria, saltar mais um prédio, vencer mais um obstáculo e, no meio de tudo isto, ainda tinha tempo para lançar a teia à doce Maria João, que morava duas casas ao lado da minha. Adorava jogar futebol, e, também aí, os meus ídolos em nada eram inferiores ao Homem¬ Aranha; por vezes, era o Deco, o Mágico, outras, o Quaresma, o Harry Potter, outras até os dois juntos, num drible fantástico, numa felicidade incontida de quem acaba os dias com mais um golo marcado. No final da tarde refugiava¬ me em casa — o meu ninho — e de Playstation em riste galgava fantasias a golpes de karaté, rasgava o espaço com o sabre de luz, derrubava castelos enfeitiçados brandindo a nobre Excalibur, e sempre, no cimo de todas as torres, de todos os tempos e de todos os lugares, a princesa que me aguardava tinha o belo rosto e o meigo olhar da minha querida Maria João.
A minha mãe, que trabalhava no escritório de um armazém de utilidades domésticas localizado na vila onde vivíamos, todos os dias chegava a casa por volta das 19 horas e o seu primeiro gesto era o de me fazer um carinho e me beijar a face. Em seguida, beijava a minha avó — sua mãe — e perguntava:
— Então mãe, aqui o nosso terrorista portou¬ se bem? — enquanto trocava a roupa de escriturária pela de dona de casa. — Fez muitas asneiras?
— Não filha, não fez asneiras, mas também não fez nenhum dos deveres que a professora marcou para as férias. Ainda o chamei mais de uma vez, mas a tourada do futebol e os olhos azuis da loirinha que nós sabemos — um sorriso matreiro perpassou¬ lhe os lábios — não lhe deixam tempo para pensar nessas coisas.
A minha avó tinha um enorme carinho pela João e não perdia uma oportunidade para nos aproximar. Acreditava no amor eterno, que há casais que nascem predestinados um para o outro. Confiava no casamento e em ser feliz para sempre. Tinha sido assim com o meu avô, que nunca conheci. Ainda hoje, doze anos depois da sua morte, fala dele com uma ternura e enlevo que chega a comover, descreve¬ o com tantos atributos e perfeição, fica de tal forma embevecida, que quem a houve chega a ter ciúmes. Ciúmes de um amor, de um companheirismo, de uma cumplicidade e comunhão de espíritos que quase ninguém tem, mas que todos almejam. Bem me lembro de ver a saudade brilhar nos seus olhos, de como os lábios lhe tremiam quando exclamava: «O meu José! Como era íntegro o meu José! Como era lindo o meu José! Era um homem a sério o meu José!»
O meu avô sempre foi o José dela e foi¬ o com tanto ênfase e carinho, que ainda hoje, passados tantos anos, tenho uma pontinha de inveja, porque nunca consegui ser assim: o José de alguém!
— Não faz mal. Em Agosto, quando vier de férias, vamos fazer esses deveres todos e aproveitar para fazer umas revisões do ano que passou. Por agora, deixe¬ o brincar, ele precisa de gastar toda essa energia. O raio do rapaz parece que tem pilhas — disse a minha mãe num tom de voz tão meigo que as palavras vertiam amor. — Mãe, eu vou à oficina avisar o Mário que dentro de meia hora o jantar está pronto.
O meu pai trabalhava por conta própria numa pequena oficina de entalhador que tínhamos no fundo do quintal. Adorava a sua profissão, mas havia alturas em que laborava até altas horas da madrugada só para acabar as encomendas dentro do prazo prometido aos clientes.
Depois do jantar o meu pai descansava alguns minutos e voltava ao trabalho.
Sempre que fazia serão, mais ou menos à hora de eu ir para a cama, vinha ter comigo, dava¬ me um beijo de boas noites e dizia:
— Dorme bem, campeão. Que Deus te proteja.
Depois, piscava¬ me o olho, dava um beijo à minha mãe e alegremente soltava um:
— Tenho que ir e aproveitar. Hoje a madeira está apaixonada por mim.
O meu pai, embora tivesse uma profissão que normalmente era exercida por gente simples e sem grandes habilitações literárias, era um indivíduo com um razoável nível cultural e com princípios morais inabaláveis. Havia abandonado a Faculdade de Economia quando estava já no 3.º ano. Nessa altura, a empresa — fábrica de metalurgia e injecção de plásticos que trabalhava fundamentalmente para a Rover —, que era pertença do seu pai, atravessava uma crise tremenda, resultante da falência do seu principal cliente. O clima económico e social era terrível; o meu avô tentou de tudo para evitar a falência da empresa, mas quantos mais empréstimos fazia, quantos mais meses passavam, mais o fim parecia inevitável. Sempre pautara a sua vida por princípios de honestidade e integridade, já não aguentava ver e ouvir o sofrimento dos seus trabalhadores devido aos salários em atraso e às justas exigências dos fornecedores a quem tinha dívidas. Não suportava mais sofrimento! Um dia, exausto e coberto de vergonha, apontou uma pistola à cabeça e suicidou¬ se.
Nesse dia, o meu pai abandonou a Faculdade e, imbuído de nobres ideais, decidiu reunir com todos os trabalhadores e credores, com o propósito de obter o seu acordo para a apresentação em tribunal da insolvência da empresa acompanhada de um plano de recuperação económica que visava a sua viabilização e, fundamentalmente, a reabilitação do bom nome da sua família. Infelizmente, não conseguiu o acordo da maior parte dos credores e a falência foi decretada.
A paixão pela madeira — que o possuía desde pequenino — associada ao trágico acontecimento que culminou na morte do pai fez com que impusesse a si próprio que jamais teria empregados e que a sua profissão seria a que mais gostasse. Contactou um conceituado entalhador da sua zona e depois de lhe confessar que o seu objectivo para futuro era o de vir a estabelecer¬ se sozinho, fez¬ lhe uma proposta bastante peculiar: durante o tempo necessário trabalharia gratuitamente e em pagamento ser¬ lhe¬ ia ensinada a nobre arte de esculpir a madeira.
Agora, embora não obtenha rendimentos muito elevados, consegue o suficiente para viver modestamente, em plena paz — como é importante a paz! — e harmonia com a família e o trabalho.

II

Estávamos nós a jogar futebol no parque, quando, surgido do nada, ouvimos um apito e uma voz grave que, articulando as palavras com sublimado requinte, exclamou:
— Falta. É falta meus caros. É uma falta terrível que meninos tão alegres e bonitos desperdicem o tempo a dar pontapés numa bola enquanto belas princesinhas os observam entediadas.
Parámos, olhámos em redor a tentar descobrir quem falou, mas nada vimos. Repentinamente, por detrás do enorme tronco de um ancestral carvalho que existia lá no parque, apareceu um velho e elegante cavalheiro que trazia pendurado ao pescoço um apito prateado e nos braços um belo molho de rosas branco-pérola.
— Jovens, parem por favor e prestem atenção àquelas magníficas meninas que ali estão a olhar para vós. Tratem¬ nas bem. Ofereçam¬ lhes rosas. Rosas-pérola para as mais belas flores deste jardim. Bah, andem lá! Façam o favor de ser felizes. Quem sabe, vão envelhecer juntos? Quem sabe? — corri até ele, peguei numa rosa e numa correria só fui entregᬠla à Maria João. Inconscientemente, estava a dar os primeiros passos para vir a ser o José de alguém.
Depois, agarrei a João por uma mão e levei¬ a até junto do misterioso senhor. Acercámo¬ nos dele e quando me preparava para abrir a boca e lhe fazer uma pergunta, interrompeu¬ me e com alguma malícia na voz perguntou:
— Diz¬ me, meu rapaz, por acaso queres dar outra rosa a mais alguém? Tens mais alguma princesa a quem a oferecer? — sorriu e, ao sorrir, passou o polegar nos lábios e depois na sobrancelha direita. Fê¬ lo com carradas de estilo, destilando charme, assim como se fosse um misto de Martini Men e 007 Sean Connery.
— Não. Não quero mais nenhuma rosa — respondi. — Como se chama o senhor?
— O meu nome é Alexander. Príncipe Alexander, que, sem ser o Grande, tenho a grandeza suficiente para vos amar e vos fazer felizes. Um criado ao vosso dispor, nobres cavaleiros e puras donzelas.
Por essa altura, já todos os nossos amigos nos rodeavam e recolhiam flores do regaço de Alexander, que ria entusiasmado e as distribuía com um contentamento genuíno. Uma ou outra vez, como que impelido por um pequeno choque eléctrico, esticava a mão e afagava os cabelos de um de nós, passava a ponta dos dedos na nossa face, depois olhava para o céu e murmurava qualquer coisa como se estivesse a agradecer a alguém.
Alexander era um homem já na terceira idade que tinha o porte de um nobre inglês. Magro, erecto, cabelo grisalho, farto, impecavelmente penteado para trás, olhos azuis e um semblante que denotava uma mistura de vasta experiência com infantilidade latente. O seu rosto não apresentava rugas, parecia que Deus lhe tinha concedido o privilégio de não envelhecer. A sua expressão triste era a de alguém que urgentemente precisava de dar e receber, de amar e ser amado, e, por isso, quando nos juntámos à sua volta ele estava tão feliz e agradecido.
Vestia um fato azul¬ escuro de tecido tropical inglês, uma camisa branca e uma gravata em tons de azul¬ claro, ambas de seda natural. Curiosamente, não trazia calçado. Caminhava sublime e garboso dentro do seu elegante fato, mas descalço! Porquê? Porque é que um senhor tão bem vestido está descalço?
Um pouco a medo, envergonhado, perguntei:
— Príncipe Alexander, porque é que está descalço? E porque é Príncipe? — pronto. Estava dito. Custou, mas saiu.
— Meu jovem cavaleiro, não tenhais medo, colocai todas as questões que vos aprouver. Eu, Alexander, minúsculo e insignificante, não sou mais que um criado que veio até vós para vos servir. Vós, meu belo e jovem cavaleiro do presente e do futuro, sereis o meu amo e a minha salvação. É no nobre acto de vos servir que deposito toda a esperança de me salvar. Não temeis nem vos assusteis com os devaneios deste velho, porém acreditai em mim. Juro solenemente que estou aqui para vos servir — as palavras saíam¬ lhe da boca impregnadas de um sentimento tal que, apesar de não as entender e de pensar que era um pouco louco, acreditei na sua convicção.
— Eu não tenho medo de si, Alexander, e não quero que seja meu criado. O meu pai ensinou¬ me que os homens são todos iguais e que ninguém deve ser criado de ninguém. Mas diga¬ me porque está descalço?
— O teu pai deve ser um grande homem, mas isso também já imaginava. Estou descalço porque antes de vir para aqui tirei os sapatos e fui refrescar os pés na água fresca do mar. Quando voltei, já os sapatos não estavam no sítio que os deixei, pois não faz mal, assim sinto¬ me mais leve e solto, por isso, pelo menos enquanto durar o Verão, andarei sempre descalço.
Entretanto, já todos os meus colegas se tinham afastado e ido jogar futebol, apenas eu e a Maria João nos mantínhamos junto de Alexander ouvindo um pouco da sua loucura.
— Há muito tempo atrás, era eu um impetuoso e belo moçoilo, quando decidi emigrar para Inglaterra em busca de fortuna e de aventura. Alguns meses se passaram sem que encontrasse a aventura e muito menos a fortuna. Vivia do expediente, e dias houveram em que cheguei a pedir para comer. Num belo dia, em que o sol brilhava um pouco mais do que era habitual para aqueles lados, vi a rapariga mais linda de toda a minha vida. Estava acompanhada por dois cavalheiros e entrou num escritório — Rover, Ltd., assim se designava. Meti as mãos nos bolsos sujos e esfarrapados e procurei a única libra que tinha. Fui até a florista mais próxima e comprei o mais belo ramo que lá havia. Eram umas inigualáveis rosas em tom de pérola, parecidas com estas que vos dei agora. Esperei algumas horas até que ela saísse. Logo que o seu vulto se abeirou da porta, corri até ela e ofereci¬ lhe as flores dizendo que eram para a mais bela mulher que jamais vira. Ela sorriu para mim mais cintilante que o sol, porém, os seus acompanhantes não acharam graça ao meu gesto e derrubaram¬ me, estatelando¬ me no chão — Príncipe Alexander parou por uns segundos e cerrou os olhos saboreando as recordações, depois continuou:
— Levantei¬ me, baixei a cabeça e o olhar, humilhado, virei costas e ia afastar¬ me quando ouvi a voz dela: «Espera. Não te afastes já. Obrigado pelas rosas e desculpa a grosseria dos meus companheiros. Como te chamas?» Respondi que me chamava Alexandre. Ela continuou, maravilhosa: «Levanta a cabeça. És um príncipe e os príncipes andam sempre de cabeça levantada. Serás o meu príncipe Alexander.» Aproximou¬ se de mim e sussurrou¬ me ao ouvido: «Também és muito bonito.» Deixei¬ os afastarem¬ se o suficiente para os poder ver sem ser visto e…
Nesse momento, surgiu a minha avó, que, de semblante carregado, disse com severidade:
— Quem é este senhor que está aqui convosco? Que é que ele vos quer? Já vos disse que não vos quero a conversar com estranhos. Não ouvem as notícias na televisão, não! Agora, todos os dias são raptadas crianças.
— Calma, minha senhora, eu não lhes quero fazer mal. Deixe que me apresente: o meu nome é Alexander. Príncipe Alexander. Estou aqui apenas para os servir. Compreendo que a senhora zele pela sua segurança, mas creia que se for preciso darei a minha vida para os salvar. Queira por favor aceitar esta rosa. Diz bem com os seus olhos amendoados e o seu perfume terá o condão de a acalmar.
— Mas qual acalmar qual quê! O homem está maluco. Darei a vida para os salvar! Você é mas é doido. Vá embora já a correr à minha frente e não vos quero ver mais à conversa com estranhos — seguimos apressados à frente da minha avó. — Deixe que me apresente! Palerma! Olhos amendoados. Eu digo¬ lhe os olhos amendoados! — resmungava furiosa.
Estático, Alexander olhou para nós com saudade e despediu¬ se acenando melancolicamente com a mão.
A minha avó encarregou¬ se de informar os meus pais e os da João do sucedido. Nessa noite ouvimos um valente sermão e fomos proibidos de voltar a falar com Alexander. Apesar de insistentemente termos dito que ele era muito educado e que não nos quis fazer mal, que só nos quis dar flores e contar histórias, não conseguimos demover os nossos pais da proibição.
Custou¬ me imenso a adormecer. Não parei de pensar na figura de Alexander, nas suas palavras, na sua história de amor. Como terminaria? Ele era tão meigo e carinhoso, porque é que os pais nos proibiam de o ver? Não era justo. Acabei por adormecer cansado e angustiado, sem saber se algum dia voltaria a ver aquela amorável e estranha pessoa.
No dia seguinte, não fui jogar a bola com os amigos. Estive a conversar com a João junto ao velho carvalho donde surgira Príncipe Alexander. Ambos tínhamos o desejo de o voltar a ver e, por isso, ficámos por ali conversando e brincando, esperançados que a qualquer momento ele aparecesse. Mas ele não apareceu! Não apareceu nesse dia, nem nos sete seguintes.
Depois de mais um jogo de futebol, sentei¬ me cansado à sombra do carvalho. A João sentou¬ se à minha beira e perguntou¬ me:
— Achas que alguma vez ele vai voltar? — referia¬ se a Alexander.
— Esquece¬ o João. A minha avó pregou¬ lhe um susto tão grande que ele nunca mais volta.
Por detrás da árvore, uma voz familiar disse baixinho:
— Meu amo, tendes¬ me em muito fraca consideração. Alexander é um Príncipe e anda sempre de cabeça levantada. Não é um covarde que foge com medo. Quero mostrar¬ vos um sítio muito importante para mim. Só mostrarei a vós e a mais ninguém. Quereis vir?
— Sim, queremos — respondemos os dois em uníssono.
— Vinde então atrás de mim, tenho ali à frente o meu carro que nos levará até lá.
Fomos atrás dele, conforme havia dito, continuava descalço, mas também superiormente vestido.
O carro era um Rover antiquíssimo, distinto, verde¬ escuro, quase cinza, com os estofos em pele bordeaux e o tablier revestido por uma folha de madeira impecavelmente polida e brilhante.
— Entrai, meus queridos, entrai. Este carro, meus jovens amigos, é o meu passado, o sítio onde vamos é o meu presente e vós que me honrais com a vossa amizade sois, sem dúvida, o meu futuro. O que eu pretendo para o meu futuro não é mais do que morrer em paz.
Eu e a João olhámos um para o outro um pouco preocupados e amedrontados. Mais uma vez não estávamos a perceber nada do que ele dizia e agora falava em morte.
— O que quer dizer com isso, Alexander? Estamos a ficar assustados. Se calhar é melhor sairmos aqui. Os nossos pais proibiram¬ nos de estar consigo e nós estamos a desobedecer — disse eu com convicção.
— Não. Não vos assusteis. Não é essa a minha intenção. Eu sou incapaz de vos fazer mal. Vamos conhecer um local mágico: «o Esconderijo de Alexander».
Depois de cerca de vinte minutos a andar de carro, parámos junto a um farol que se erguia no cimo de uma encosta íngreme, bem colada ao mar.
— Vejam. Apresento¬ vos o Esconderijo de Alexander — apontou para o velho farol que mais parecia um granítico ancião a observar o horizonte.
Meteu a chave na porta, rodou para a esquerda e, finalmente, após um estridente ranger, entrámos.
— Venham, só um pouco mais de esforço e vão observar uma das mais belas imagens da vossa vida — disse Alexander eufórico.
Subimos até o topo do farol e boquiabertos observámos a magnificente paisagem que daquele ponto a natureza nos proporcionava. O sol pousava no horizonte, banhado por uma luz prateada pincelada aqui e ali por tons de vermelho e amarelo, o mar parecia pairar, quedo, azul-escurecido na meia¬ luz do entardecer, como se de um quadro se tratasse. Em baixo, o som das ondas a bater contra a encosta resultava num suave murmurejar que nos embalava os sentidos.
Alexander, primeiro, pegou na João ao colo e, depois, em mim, queria que nos deleitássemos com a paisagem ainda de mais alto, e, concerteza também, sentir no nosso afecto um pouco de carinho e calor humano. Mais do que nunca senti uma ternura especial por aquele extravagante homem que sem eu saber porquê fazia o favor de se dedicar a mim e à minha querida Maria João. Coloquei os braços à volta do seu pescoço e quase por instinto beijei¬ lhe a testa. Ficámos assim, alguns segundos, em silêncio observando o horizonte e, enquanto o fazíamos, encostei o meu rosto ao seu e partilhei uma pequena lágrima salgada que lhe deslizava pelo canto do olho.
— Porque está a chorar, Alexander — perguntou a João comovida.
— Porque estou feliz — respondeu.
— Não quer acabar de nos contar a história daquela rapariga que conheceu em Londres — perguntei.
— Claro que quero. Vou contar¬ vos o resto da história, lá em baixo, na minha gruta.
Descemos as escadas até a entrada. Debaixo de um velho baú havia um alçapão. Príncipe Alexander levantou¬ o e começou a descer umas escadas que estavam pregadas à parede das rochas.
— Não tenham medo. Agarrem¬ se com as duas mãos e desçam. Não são muitos degraus, nem é muito alto. Vão ver como é lindo!
Primeiro, a João e, depois, eu descemos para a gruta de Alexander.
Era um local de forma oval, com cerca de 30 m2, que tinha no centro um pequeno lago de água salgada. No lago, uma grande e florida cadeira insuflável boiava de um lado para o outro. Em cima da cadeira descansava um distinto livro que tinha o título Crime e Castigo, acompanhado de um negro MP3 da Creative. As paredes escuras da gruta estavam forradas, em redor, com quadros, fotografias, recortes de jornais, etc. Quatro candeeiros a petróleo, harmoniosamente colocados em forma de cruz, difundiam uma luminosidade que atribuía à gruta uma quietude digna do paraíso.
— É aqui, meu nobre cavaleiro e minha nobre princesa, que eu leio os meus livros, que ouço a minha música e que revejo as minhas memórias. Se colocarem as mãos na água, vêem que ela está morna. Se quiserem, podem banhar¬ se no lago, que ele tem pouca profundidade. Depois podem subir para a cadeira, que eu conto o resto da história.
Nem pensámos duas vezes, libertámo¬ nos das roupas e fomos brincar para dentro de água. Era límpida, quentinha e tranquila. Depois de algum tempo de brincadeira, já cansados, subimos para a cadeira e pedimos a Alexander que continuasse a sua história.
— Deixei¬ os afastarem¬ se o suficiente para os poder ver sem ser visto e segui¬ os até uma casa que julguei ser a sua. Era um enorme casarão situado na rua mais chique da cidade. Tomei nota da morada e nesse mesmo dia à noite deixei na caixa do correio e um pequeno bilhete escrito que dizia assim:
«Por muito erguida que esteja a minha cabeça, os meus olhos quedar¬ se¬ ão tristes se não te voltar a ver. Por favor, espero¬ te amanhã na mesma rua e á mesma hora.»
— No dia seguinte, ela apareceu, linda e altiva como sempre. Começámos a conversar e sentimo¬ nos bem um com o outro. Contou¬ me que era filha de um famoso empresário da indústria automóvel e que tudo faria para me ajudar.
— Passado um ano, já eu trabalhava no departamento de exportação da empresa do seu pai, e daí até o casamento foi um pulinho de galo. Eu sempre fui o seu príncipe e ela o anjo da guarda que salvou a minha vida — os olhos de Alexander brilhavam como uma safira, resplandecentes de amor.
— Viemos viver para Portugal. Aqui implementei uma das melhores fábricas do grupo. Vivi dois anos de felicidade intensa, infelizmente, um ano depois, a minha princesa morreu vítima de uma doença incurável.
Eu e a João olhamos um para o outro e trocamos um sorriso cúmplice. Como o entendíamos!
— Quem são aqueles dois jovens que estão naquela fotografia abraçados um ao outro junto ao carro — perguntei. Eram dois esbeltos rapazes que não deviam ter mais de 25 anos.
— Não reconheces. O carro é aquele que nos trouxe até aqui, o da esquerda sou eu e o da direita é o meu amigo de sempre. O melhor amigo que alguém poderia ter. Chamava¬ se Eduardo, como tu.

III

Anoitecera sem que nos apercebêssemos disso. As horas junto de Alexander pareciam minutos e o encantamento daquele local raptava¬ nos à realidade, como se aquele farol, aquela gruta, pertencessem a um mundo só nosso.
Por aquela altura, os nossos pais, aflitos, já se tinham dirigido à polícia e procuravam por nós em tudo quanto era sítio. Todo o bairro estava envolvido na busca; alguém dissera que nos vira entrar para um carro antigo, com um velho senhor, alto, magro e de cabelos grisalhos. A minha avó, angustiada, repetia incessantemente:
— Foi ele, foi ele. Aquele velho porco, que anda a seduzir criancinhas com flores e histórias de encantar. Ai meu Deus! Meu Deus ajuda¬ nos. Não sei o que ele lhes prometeu para os levar com ele, mas tenho a certeza que foi aquele velho tarado.
— Calma, a polícia vai encontrᬠlos rapidamente e também não resolvemos nada se entrarmos em pânico e histerismos inconsequentes — dizia o meu pai.
— Não sei como consegues manter a calma e o sangue-frio, quando o teu filho desapareceu e se calhar foi raptado — dizia a minha mãe, enervada. — Tens sangue de barata ou quê? Se apanho aquele velho indecente, desfaço¬ o à ferradela.
O clima estava, sem dúvida, descontrolado. As pessoas temiam por nós e ansiavam por vingança.
Um agente veio ter com o meu pai e disse¬ lhe que um jovem casal que passou junto ao farol viu um carro antigo lá estacionado. Que iam agora para lá e em breve lhes trariam os filhos. Os meus pais, a minha avó, os pais da João e alguns vizinhos, cada um no seu carro, dirigiram¬ se a toda a velocidade para o farol. Chegaram lá primeiro que a polícia.
Saímos do farol de mão dada com Alexander, no exacto momento que os nossos pais chegaram. Intempestivo e visivelmente transtornado, o pai da João correu na nossa direcção e desferiu um violento murro na cara de Alexander, que o estendeu no chão sangrando do nariz. O meu pai segurou o pai da João e acalmou¬ o:
— Calma, calma, é apenas um velho.
— Velho tarado é o que ele é. Bandido! — retorquiu o pai da João.
— Tarado, deitem¬ no ao mar! — gritava a minha avó.
Enquanto o meu pai tentava acalmar os ânimos, alguns vizinhos gritavam:
— Dêem¬ lhe uma coça, ele merece é uma carga de porrada.
Nós estávamos estupefactos e paralisados perante tanta violência. Alexander, no chão, sangrando, baixou os olhos, triste e humilhado. Corri para ele, abracei¬ o e disse¬ lhe ao ouvido:
— Levante¬ se, Alexander, o senhor é um príncipe. O Príncipe Alexander.
Nesse momento, chegou a polícia. Alexander ergueu¬ se muito acima do seu
1,90 m e, de cabeça erguida, piscou¬ nos o olho e seguiu em silêncio, algemado.
Corremos para os nossos pais e pedimos¬ lhes a chorar que não deixassem prender Alexander. Que ele era bom e nosso amigo. Que não nos tinha feito mal. Que o adorávamos. Mas ninguém nos ouvia. Apenas o meu pai me dizia:
— Estás bem, filho? Ele não vos fez mal?
— Não, pai, não nos fez mal nenhum. Ele é nosso amigo. Eu gosto muito dele, pai, não deixes que lhe façam mal. Por favor, pai! Não o abandones.
— Está bem filho. Em casa vais contar¬ me o que se passou e depois verei o que posso fazer por ele.
Quando cheguei a casa, sentei¬ me no sofá e contei à minha família exactamente tudo o que se passou, desde que conhecemos o Príncipe Alexander até o momento em que eles chegaram tresloucados e o maltrataram e prenderam.
Depois de me ouvir, o meu pai dirigiu¬ se apressado para o posto da polícia:
— Quero que soltem esse homem, quero retirar a queixa contra ele — disse ofegando.
— Lamento muito, Sr. Eduardo, mas o pobre homem já seguiu para o Hospital Psiquiátrico de Aveiro. Parece que não bate bem da cabeça. Desde que ele de lá fugiu que o procuram. Está dado como desaparecido desde Maio.
— Pobre homem. Obrigado — respondeu o meu pai.
Voltou a casa e contou¬ nos o sucedido. Eu, com as lágrimas nos olhos, saí de casa a correr — com o meu pai atrás de mim — e fui contar à Maria João. Os dois abraçámo¬ nos às pernas do meu pai e, a chorar, pedimos¬ lhe que nos levasse ao hospital para ver o nosso querido amigo.
A enfermeira aconselhou¬ nos a que o tratássemos com calma, que não estranhássemos a sua inércia e melancolia porque ele se encontrava sob o efeito de sedativos.
Alexander repousava de olhos fechados na cama do hospital. Aproximámo¬ nos dele e eu, de um lado, e a João, do outro, beijámo¬ lo na testa e na face. Semicerrou os olhos e sorriu feliz.
— Meu nobre cavaleiro, minha nobre princesa, como vos adoro! — olhou para o meu pai e enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto sussurrou quase sem forças:
— Peço¬ lhe desculpa por tudo. Tem um filho fascinante — apontou com o olhar para a mesinha ao lado da cabeceira. — Pegue na chave e tome conta do farol. É seu. Agora posso morrer em paz — apertou as nossas mãos pela última vez e faleceu.
Duas horas depois de muito chorar e já com muita saudade, ouvi a psiquiatra que tratava Alexander contar ao meu pai que ele morreu porque o quis. Estava convencida que morreu feliz, porque escolheu o momento da sua morte e este é um privilégio que nem todos têm. Dizia que o Sr. Alexandre foi um grande empresário, representante de uma famosa marca de automóveis que existia no nosso país e que faliu. Um dia apareceu aqui completamente fora de si gritando que tinha assassinado o seu melhor amigo. Ainda hoje não percebemos o porquê dessa fantasia, mas concerteza fora isso que o enlouquecera.
No dia seguinte à mesma hora, em mais um belo entardecer, eu, o meu pai e a João entrámos no farol, subimos ao topo, usufruímos da paisagem em silêncio e depois descemos até a gruta. O meu pai estava maravilhado com tudo o que via.
— Vem, pai, quero mostrar¬ te um quadro com uma fotografia do Príncipe Alexander quando era novo. Vem. Olha é este o quadro. Este aqui é Alexander, este é o carro dele e este era o melhor amigo dele. Chamava¬ se Eduardo como nós.
O meu pai, enternecido, mal conseguindo articular as palavras, disse:
— Esse aí, ao lado de Príncipe Alexander, é o teu Avô.

José Leandro

Ambiente rústico, acolhedor e bastante popular entre os locais existe neste café, snack-bar e restaurante.
Apresenta uma cozinha para todos os gostos e feitios. Espaço ideal para a realização de todo tipo de eventos e inventos, comandado pelo chefe Arlindo, sportinguista de gema, mas com um coração grande de leão. Tudo e todos vêm parar aqui. Pouso de muitos cenários e figuras caricatas, como o rei do karaoke, artista de invulgar craveira, Hélio Rodrigues, grande cantador e fã dos Queen e da música I want to break free, que bebe vinho do Porto por causa da voz. Também um grande ciclista, com uma bicicleta BMW de alta cilindrada e alta-fidelidade Pionner, recentemente proibido pelo médico de andar de bicicleta por causas ainda desconhecidas. Assim como os tocadores de cavaquinho Benícios e Ricardo, que tocam e cantam música popular, sempre envolvidos em canecas de vinho e garrafas de cerveja.
Mas a principal figura de destaque é o nosso presidente, que alterna os períodos de presença assídua com os de completa evasão.
José Leandro é o seu nome, mais conhecido pelo presidente, rapaz de 28 anos, português, honesto, magro, tem como transporte preferido e único a bicicleta, gosta de descansar, exagera na comida, não bebe álcool, mora num quarto alugado, porque não gosta de viver com os pais, gosta da liberdade e da justiça e quer ser presidente da câmara, da junta de freguesia, deputado ou outro cargo político qualquer daqui a quatro anos.
Já tem o seu mandatário político, sede para a campanha, a tipografia e um saco azul porque é adepto do glorioso FCP e apoiantes são aos milhares.
Diz ser neto do Salazar e é contra todas as minorias: ucranianos, açorianos, velhinhos e afins.
Depois do apoio a diversos candidatos e de ver frustradas as diversas vitórias, desde o presidente da câmara até ao Mário Soares, vê-se na iminência de ser o candidato do povo, donde surgiu o slogan «Zé Leandro, o candidato do Povo».
Militante convicto do Partido Socialista, ou Nacional-Socialista, anda neste momento a tirar o curso para político, já tem dois cartões, um da juventude, com fotografia e tudo, e outro do partido; paga anualmente 20 euros e já pode ser político.
Figura caricata, mas com carisma, era vê-lo na festa popular de São Gonçalo, que se realiza no penúltimo domingo de Janeiro, de peito erguido, nariz empinado, metido no seu fato e gravata, e a sua comitiva saudando todos que por eles passam e que o reconhecem dizendo: «Olha o presidente!»

Rapaz dos sete ofícios, tudo em part-time, quer dizer, duas horas por dia. Empregado de mesa, se lhe derem o jantar; aprendiz de padeiro, vendedor de automóveis (que se saiba nunca vendeu nenhum), mas lá vai de café em café tentar vender um Peugeot 205 da última geração, porque ainda andava.
Visto possuir um grande sentimento de grandeza, imagina que é especial ou possui habilidades especiais, é um escolhido, um líder político, capaz de se considerar uma grande personalidade. É hiperactivo, os pensamentos correm de forma incontrolável, quem olha para ele repara na grande confusão de ideias. A velocidade dos pensamentos é superior à da expressão verbal, o que origina uma interrupção constante de temas e sucessiva fuga de ideias.
Mesmo quando está alegre, explosões de raiva acontecem, geralmente provocadas por alguma provocação. Entoa bem alto a sua voz e responde à letra:
«É preciso uma câmara, um tribunal, um hospital e ninguém faz, é só gastar dinheiro nos passeios e levar os velhinhos a andar de camioneta; a culpa é do presidente, que é um borrachão!»
É contra estas e outras injustiças que o Zé luta. Animal político, dá expressão aos anseios ainda informes da comunidade e é contra as actividades ligadas ao trabalho, aos ofícios e aos negócios, considerando-as como inferiores.
Defende o Sócrates: «o doutor», diz ele, «tem sempre razão, ele é o meu patrão, dá-me o rendimento mínimo».
Não se pode cansar, tem que estudar, principalmente inglês, porque português é bem mais difícil e não é para todos. Estuda à noite e já é repetente, mas esforça-se e já vai no bom caminho, este ano é que vai conseguir!
É contra as «cunhas», só devem passar aqueles que têm mérito, «não é como a princesa que deu flores à professora e acabou o curso, sem sequer o nome saber escrever, sendo notícia no jornal regional».
— A Dr.ª Joana é que tinha dado uma boa presidenta, mas deixou-nos, foi para deputada, lá em Lisboa.
— Mas Zé, é ainda muito nova, tem muito tempo para ser presidente. E como é se ela concorrer às próximas eleições, tu ficas sem tacho?!
Encolhe os ombros e diz: «Vocês querem é pôr-me tolo para eu desistir e o Bernardino voltar a ganhar, tem que se acabar é com os senhorios, esses ladrões.»
Rapaz de sentido único, namoradas são aos montes, já esteve para casar diversas vezes, chega mesmo a comprar alianças de comprometido, coisas sempre sérias. Idealiza a casa, os móveis, mas no fim tudo desaparece e a desculpa surge sempre: «Tivemos uma zanga!»
Já esteve para ser pai, a Catarina Furtado estava grávida! É vê-lo em fotografia com a sua dama lado a lado e a quem não acredita ele mostra o poster com a sua rainha. Montagem fotográfica efectuada por um dos seus apoiantes, claro!
Quem o quer encontrar é procurar pela noite dentro, esteja bom tempo ou temporal, um passeio de bicicleta faz sempre bem e percorre lentamente as artérias desta cidade, falando consigo mesmo e elaborando mais um projecto de vida, um sonho por realizar, desabafos de uma vida sem destino entre sonhos e realidades.
Tanto aparece como desaparece, um prato de comida o faz regressar, mas não assenta, desaparece meses a fio como um vagabundo, está vivo, está morto, é impressionante com a capacidade de se deslumbrar.
A última profissão conhecida foi a de distribuidor de pastéis na sua magnífica bicicleta de cor amarela. Nessa altura alimentava-se exclusivamente de pastéis.
O único senão é que é diabético!
Nestes dias entrou no café de tacho na mão com calda feita. Ficou sem fogão, avariou-se e o esparguete ficou a meio, veio pedir ao chefe Arlindo se podia usar o fogão: «se vens para comer não há nada e se queres alguma coisa pede à D. Fátima».
Ainda teve tempo de contar a última novidade, «aceitei de volta a Sandra, ela quer voltar a namorar comigo».
Quando será a sua próxima aparição? Ninguém sabe, mas trará com ele um mundo repleto de ideias e sonhos mirabolantes, que até a nós nos fazem parar para pensar.

SONOS PARADOXAIS

O futuro pertence àqueles que acreditam na beleza dos seus sonhos.
Elleanor Roosevelt


I

Poucas são as pessoas que gostam da sua profissão. Por razões de sobrevivência, familiares ou culturais, a maioria das pessoas são, por vezes, empurradas para trabalhos que não gostam e que não idealizaram como futuro. Alguns têm coragem e arriscam a mudança, mas eu não sou excepção.
Apesar de ser licenciado em Gestão de Empresas e ter relativo sucesso na minha carreira profissional, a grande frustração foi não ter enveredado por uma profissão ligada às coisas da mente, talvez psicólogo, psicanalista ou psiquiatra. Talvez não tivesse tido tanto sucesso como na área em que me encontro, mas provavelmente sentir­‑me­‑ia mais realizado, não profissionalmente, mas em termos pessoais.
Quando andava no secundário a disciplina que mais me atraiu foi Psicologia, seduzido talvez pelo professor, um apaixonado incondicional de Freud e de Jung. Interessei­‑me particularmente pelos estudos acerca dos sonhos, a sua interpretação e as experiências que realizaram, pelo que este assunto passou a ser um hobby que veio ocupar muito das minhas horas de ócio.
Aproveitei um seminário sobre Gestão de Empresas, em Campinas, no Brasil, para me encontrar com uns amigos brasileiros, com os quais tenho mantido contacto já há alguns anos, e participei, a convite desses amigos, em reuniões de especialistas nesta matéria, conhecida pela sigla ATAS — Agrupamento dos Técnicos de Alquimia Simbólica. Aprofundei conhecimentos, troquei experiências, desenvolvi técnicas e estabeleci novos contactos, de tal modo que o assunto deixou de ser um simples hobby para fazer parte da minha vida.
De uns tempos a esta parte, um sonho tem povoado as minhas noites. Nunca fui muito solidário, os problemas dos outros, mesmo das pessoas mais próximas, nunca me preocuparam em demasia. Solidariedade era uma palavra vã, quase sem significado, até que este sonho surgiu.
Alguém pedia a minha ajuda, clamava pela minha presença, a sua voz soava do fundo desse sonho, por vezes intenso, outras vezes inconsequente, mas sempre que se ia proporcionar o que seria um encontro, algo o interrompia, e o sonho desvanecia­‑se e eu acordava. Este facto andava a perturbar­‑me.
Saí de casa mais uma vez frustrado, desci as escadas do prédio porque o elevador continuava teimosamente avariado, quando encontrei a minha vizinha, a D. Amélia, cujo marido, o Pinto, a tinha a deixado, ou ela o tinha posto fora de casa, por causa das suas bebedeiras e agressões diárias. Estava a conversar, em voz alta, com a velha surda do andar em frente. Contava maravilhas do filho Miguel, que andava a acabar um curso qualquer e na época de exames que atravessávamos passava as noites a estudar na casa de um colega e chegava de madrugada a casa com um ar que dava pena, dizia ela. Sempre desconfiei do rapaz, não parecia que aquilo fosse tudo estudo, mas como não estava interessado no assunto cumprimentei­‑as e segui o meu caminho.
Entrei no quiosque da esquina, para registar o boletim do Euromilhões, mas como estava muita gente desisti, deixando a entrega para quando regressasse do trabalho.


II

O dia foi demasiado longo. Estava ansioso por retornar a casa e voltar ao meu sonho, entrar e procurar encontrar a pessoa que me chamava.
Quando comecei a interessar­‑me por este assunto, estudei várias técnicas de activar e de enriquecer os sonhos.
O ser humano é composto por dimensões energéticas que, conjugadas, ajudam a activar os sonhos. Os recursos que se utilizam para se conseguir um maior equilíbrio energético são vários, mas o que eu mais utilizo é o recurso às ervas, mais propriamente a um banho composto de alguns ramos de arruda e alecrim, em 5 l de água, que deito sobre o corpo, excluindo a cabeça, depois do banho higiénico antes de me deitar.
Outros são as essências florais, a Star Tulip é a que mais utilizo. Foi­‑me oferecida por um dos tais amigos brasileiros de Campinas e que ajuda as pessoas a aperfeiçoar a captar os sentimentos mais sensíveis do inconsciente e promove uma clarificação interior, criando a necessária sintonia para contactar os sonhos.
Recorro, por vezes, também à automassagem, que dissolve as tensões e diminui o stress e promove uma estimulação e uma reorganização da memória corporal, o que influencia positivamente e enriquece os sonhos. Por sua vez, as técnicas de relaxamento são óptimas para aumentar a sensibilização interior e desenvolver a concentração.
Antes de me deitar, efectuei alguns exercícios de relaxamento, rememorei, dentro do possível, os acontecimentos ocorridos no sono anterior e deitei­‑me, sem antes colocar debaixo do travesseiro absinto para ajudar ao aparecimento de sonhos, e fiquei à espera.


III

Era uma enorme caverna, diria infinita, com uma abóbada situada a uns bons 50 m de altura, de cor azul, como se do céu se tratasse. A largura da caverna também era enorme, como nunca tinha visto, assemelhava­‑se a uma avenida ou um enorme boulevard parisiense.
Entre as frondosas árvores, donde saía música muito suave de grandes compositores clássicos, alguns meus preferidos, como Mozart, Bach e Beethoven, havia quadros enormes pendurados em paredes maiores dos que se podem ver nos museus, alguns com cenas de índole religiosa, outros com cenas de batalhas, onde se viam corpos dilacerados de homens e cavalos, e outros, pelo menos naquela zona da avenida, continham imagens impregnadas de simbolismo, enigmático e mágico. Por ser um apreciador da arte wicca, em particular, reconheci­‑os porque apresentavam os símbolos de Ankh, o olho de Hórus, o Pentagrama, o Selo de Salomão, a Suástica, o Tridente, o Pentalfa e outros da simbologia mágica, conhecida também como a «Arte dos Sábios» ou simplesmente «A Arte», utilizada pela feitiçaria moderna.
Os quadros percorriam as paredes desta caverna na qual não conseguia prever qual era o princípio ou o fim. Naquele momento não havia automóveis, só pessoas, uma multidão preenchia as várias faixas da avenida. Estavam vestidas com trajos multicoloridos e com as caras tapadas com máscaras de carnaval, venezianas, de teatro japonês, de heróis, negras, índias, de todas as espécies e feitios.
Percorri aquela avenida maravilhado. A certa altura reparei que havia uma ruela, mais propriamente uma quelha mal iluminada, onde se vislumbravam uns vultos. Aquele lugar atraiu­‑me. Penetrei naquele lugar esconso onde o lixo era rei. Uns quantos sem abrigo, andrajosamente vestidos, faziam camas de cartões para dormir. Ninguém mostrou curiosidade pela minha presença, a não ser um sujeito de meia­‑idade que se aproximou e agarrou­‑me o braço.
— Desculpe, não tenho dinheiro para lhe dar — disse.
— Eu não quero dinheiro — respondeu o sem-abrigo.
— Mas eu não tenho nada para lhe dar — disse de novo e tentei soltar o braço um pouco incomodado.
— Mas eu não quero nada — replicou de novo. — Só quero que você me ouça.
Estranhamente, e sem saber porquê, parei e ouvi­‑o.
— Chamo­‑me Afonso Maria Melo de Albuquerque Lencastre, sou descendente de boas famílias e já tive uma vida boa, talvez melhor que a sua. Mas o álcool apoderou­‑se de mim, não consegui resistir­‑lhe e ele atirou­‑me para esta desgraça. Aliás, quem verdadeiramente me atirou para este beco infecto foi a minha própria família, a minha mulher e a minha filha, que não suportaram mais as minhas bebedeiras. Um dia quando regressava a casa a cair de bêbado, a minha mulher e a minha filha não me deixaram entrar e puseram­‑me uma mala com algumas roupas à porta.
Por vergonha não reclamei os meus direitos e refugiei­‑me nesta vida, juntando­‑me a estes desventurados, para quem a vida também foi madrasta. Ainda tentei, mais tarde, falar com elas para regressar, mas soube que ambas tinham sofrido um desastre de automóvel e que tinham morrido.
— Não tem mais família? — perguntei.
— Sim. Um filho, que na altura estava no estrangeiro a trabalhar.
— E ele nunca o procurou?
— Não sei, talvez ! Mas como não soube o que se passou não sabia onde me procurar. Se calhar pensou que eu tivesse morrido
— O que posso fazer por si?
— Não sei. Mas sinto que você me vai ajudar.
O sem-abrigo afastou­‑se, abriu uns cartões, junto de um relógio de caixa alta, absurdamente alto, deitou­‑se, puxou uns trapos para cima de si e ignorou a minha presença, que parado fiquei a olhar para aquela estranha cena.
Voltei à avenida, a multidão continuava a desfilar. Umas crianças muito bonitas e que respiravam saúde brincavam com uns dados enormes, com estrelas desenhadas nas faces e com números no centro. Parei por alguns momentos a observá­‑las porque me chamou à atenção o facto de sempre que jogavam saíam sempre os mesmos valores ou o 2 ou o 7.
Um homem com um casaco de xadrez apareceu esbaforido e gritou­‑me:
— Aponte os números! Aponte os números! Entregou­‑me um lápis e um caderno enormes.
Não percebi o que ele queria. Entretanto a multidão agitou­‑se, foram abrindo uma clareira e vislumbrei ao longe uns ciclistas que se preparavam para um sprint final. Encontrei­‑me só, no meio da avenida, sobre uma linha traçada no solo que dizia «Meta». Os ciclistas aproximavam­‑se a alta velocidade, e num instante estavam à minha beira, e, instintivamente, apontei os números 32, 5, 17, 28, 40 e não consegui apontar mais nada.


IV

Acordei com o buzinar dos automóveis na rua. Um acontecimento inesperado e insólito tinha ocorrido. Um burro puxando uma carroça atravessou­‑a na rua, provocando um enorme engarrafamento. Teimosamente, e apesar dos esforços do dono, um velhote de cerca de 80 anos, o burro, para além defecar em plena via pública, cismou que dali não saía.
Perante os risos de um grupo de jovens, deliciados com a cena, da indiferença da maior parte dos peões mais preocupados com a sua vida e da impaciência demonstrada pelos automobilistas presos nesta situação, um taxista, de avantajada barriga, saiu resolutamente do carro, chegou­‑se à beira do burro, pousou delicadamente a mão na cabeça do animal e disse­‑lhe algo a que este acenou com a cabeça numa atitude de ter compreendido a mensagem. O burro começou então a movimentar­‑se, endireitou a carroça e prosseguiu viagem. O dono, o velhote, até teve dificuldade de subir para a carroça perante a inesperada atitude da besta. Um transeunte pasmado com o acontecimento interpelou o taxista.
— Amigo, o que disse ao burro para ele começar a andar?
— O mesmo que digo aos meus clientes quando têm atitudes de burro.
— Como assim?
— Ó amigo, se você não sabe para onde quer ir, o melhor é pôr­‑se a andar. Isto resulta tanto para as pessoas como para os burros. São todas umas bestas — disse o taxista, puxando as calças para o lugar onde a barriga permitia e entrou no carro com um sorriso vitorioso.
Assisti a este pitoresco evento da janela do meu quarto. Como já não conseguia dormir mais, decidi tomar banho e começar um novo dia.


V

Ao entrar na empresa tinha na minha secretária um cartão-de-visita de um vendedor de uma empresa de material de escritório, situação que seria vulgar, não fosse o facto do nome do referido vendedor, Rui Lencastre.
Perguntei por telefone para a portaria se se encontrava alguém com o nome de Rui Lencastre para falar comigo. Confirmaram­‑me que sim. Mandei­‑o subir de imediato.
— Rui Lencastre, da empresa Office Service Séc. XXI — apresentou­‑se mal entrou.
Era um indivíduo aparentando cerca de 35 anos, agradavelmente vestido. Começou a apresentar a empresa, sobre a qual eu não estava minimamente interessado.
— O senhor é filho do Sr. Afonso Albuquerque Lencastre? — perguntei.
— Sou. Por acaso conheceu o meu pai?
— Sim.
— Como? Foi há bastante tempo! O meu pai morreu já lá vai dez anos — disse.
Fiquei sem palavras, não sabia o que dizer, inventei algo que fosse plausível.
— Conheci­‑o por intermédio de um amigo comum — disse.
Ficou na expectativa que eu dissesse quem era o amigo comum, mas não me surgiu o nome de ninguém. Claro que não lhe podia dizer que o tinha conhecido num sonho, pois a conversa passaria para o absurdo e teria ficado por ali e eu estava interessado em saber mais.
— O seu pai era um indivíduo extraordinário mas teve pouca sorte na vida — arrisquei.
— Sim. Era descendente de uma família aristocrata mas o vício deu­‑lhe cabo da vida. A minha mãe também não foi a companheira ideal e pouco o ajudou.
— Mas a sua mãe e a sua irmã morreram num desastre de automóvel.
— Como sabe?
— Recordo­‑me ter lido num jornal — menti.
Já com ar desconfiado, Rui Lencastre continuou a falar da família. O afastamento para o estrangeiro foi a solução que, egoisticamente, encontrou para os graves problemas que se passavam no seio familiar.
Terminou com o verdadeiro motivo que ali o trouxe, o profissional. Eu é que não estava interessado minimamente no assunto, disse que ia pensar e que depois o contactava.
Voltei para casa logo que pude. Desmarquei um jantar com uns amigos, não comi nada e fui sentar­‑me no sofá do quarto, estava demasiado excitado e, desoladamente, não tinha sono.
Não resisti, fui a uma gaveta da cómoda e retirei de uma caixa um cigarro de cannabis e fumei, na tentativa quase certa que aquele psicotrópico me transportaria rapidamente para o meu sonho.


VI

Atravessei a avenida com as árvores e os quadros já meus conhecidos. Procurei o beco onde anteriormente tinha estado com o Afonso. O beco não parecia o mesmo. Os sem-abrigo tinham aumentado, levantei papelões, destapei mendigos que dormiam para não acordarem a barriga vazia, mas não encontrei o Afonso. No local onde estava o relógio absurdamente alto, que já lá não se encontrava, estavam encostados dois jovens que se injectavam. Um dos jovens reconheci­‑o, e ele também me reconheceu; era Miguel Pinto, filho da vizinha do 1.º andar.
— Viste o Afonso?
— Foi­‑se embora.
— Para onde?
— Não sei.
— E o relógio que estava aqui?
— Levou­‑o consigo. Disse que era o farol da sua vida.
— E tu que fazes aqui? — perguntei.
— Não diga nada à minha mãe, por favor. Ajude­‑me!
— Vou ver o que eu posso fazer. Voltaremos a falar — respondi.
Voltei à avenida, a multidão continuava a desfilar. De novo o homem com o casaco de xadrez apareceu e gritou­‑me de novo:
— Aponte os números, aponte os números!
A multidão agitou­‑se e de novo a cena repetiu­‑se da mesma forma e eu, como na cena anterior, apontei os números 32, 5, 17, 28, 40 e de novo não consegui apontar mais nada. O homem com casaco de xadrez não voltou a aparecer.
Tudo de repente se transformou. A avenida desapareceu, agora novas imagens apareciam e desapareciam, como flashes, distorcidas, repentinas, de difícil fixação. Tudo apontava para um novo local, onde algo dizia que eu podia encontrar o Afonso.
Uma sequência frenética de imagens sucederam­‑se, como um filme, filmado em fast motion: o busto de um poeta que não identifiquei, a estátua de um bispo que eu conheci mas não me lembrei do nome, a estatueta de uma mulher encostada a uma árvore, um lago artificial sem patos, uma torre de uma igreja cujo topo estava encoberto por uma neblina e que tinha gravado numa das suas seculares pedras «Salutat, Mariam, Qua e Multum, Laboravit, in Nobis, S. Paul AD…», tudo isto num cenário entre muitas pombas que esvoaçavam.
Deparei a certa altura com o relógio de caixa alta do Afonso junto a um banco do jardim. Senti que ele andava por ali. Dirigi­‑me a uns homens que se encontravam sentados numa escada de ferro que se riam de um modo desbragado. Perguntei­‑lhes se conheciam o Afonso, disseram que sim, onde é que o podia encontrar, disseram­‑me que ele estava ao fundo junto ao lago. Continuaram a rir­‑se e de repente transformaram­‑se em estátuas de ferro, talvez de tanto rir.
Vislumbrei ao longe o vulto da pessoa que deveria ser o Afonso. Corri na sua direcção para ver se o apanhava. Ventava, as folhas de Outono, caídas, redemoinhavam à minha volta, de repente a chuva começou a cair impiedosamente, impedindo de me aproximar dele.
A noite caiu repentinamente. Mas tão depressa caiu como clareou, mas a fisionomia daquele local, apesar de ser o mesmo, tinha­‑se alterado como por magia. Sentia que tinha recuado no tempo. Aproximei­‑me de uma mulher que entretanto apareceu como do nada, estranhamente vestida com vestes medievais, vendendo flores, a quem perguntei como se chamava aquele local.
— É o Campo do Olival, meu senhor!


VII

Acordei já o sol ia alto. Ainda bem que era domingo, dava para descansar e tentar resolver este enigma. A solução para encontrar o Afonso estava, talvez, prestes a ser resolvida. Aquela mulher tinha­‑me dado a resposta, só faltava saber onde era o sítio que ela identificou.
Fui ao roteiro do Porto e não encontrei nenhum local com aquele nome. O local podia ser fora do Porto, o que tornava mais difícil. Não! Estava convencido que era na cidade do Porto, tudo indicava que assim fosse. A família do Afonso sempre vivera nesta cidade, o Afonso não tinha dinheiro nem motivação para ir para outro local, penso que ele manteve sempre a esperança de um dia encontrar o filho.
Lembrei­‑me de passar pela polícia e perguntar, podia ser um local novo que ainda não estivesse no roteiro. Não tive sorte, a polícia em nada me ajudou por ignorância ou má vontade. Fiz alguns telefonemas a amigos meus e nenhum deles conhecia aquele local. Perguntei a pessoas conhecidas mais velhas, talvez fosse um local que tivesse mudado de nome e a antiga toponímia fosse deles conhecida, mas não tive igualmente sorte.
Deambulei de carro pela cidade, horas sem fim, na estúpida tentativa de que o local caísse do céu. Já era lusco­‑fusco quando passei junto ao Hospital de Santo António, virei para o Jardim João Chagas, mais conhecido como Jardim da Cordoaria, e vi sentado num banco o Afonso. Estava na conversa com outro colega de desventura. Parei o carro bruscamente, o condutor do carro que me precedia apitou e começou a gesticular, protestando pela minha paragem intempestiva, e tive que arrancar.
Fui estacionar o carro no parque dos Clérigos e subi a correr a rua até ao jardim. Só encontrei o colega, o Afonso tinha­‑se ido embora. Disse­‑me que ele à noite voltava, porque passava por volta das 11 horas uma carrinha de uma associação de solidariedade que distribuía refeições aos sem-abrigo, e ele estaria ali para receber a dádiva solidária, disso tinha ele a certeza. Apesar de não ter tido a possibilidade de falar com ele, não tive dúvidas que se tratava do mesmo Afonso.
Regressei a casa entusiasmado com a resolução do problema. Afundei­‑me no sofá da sala e revi os acontecimentos. Não me contive, como tinha o cartão-de-visita na carteira, liguei para o Rui Lencastre. A conversa foi breve, relatei em traços largos o que se tinha passado e que afinal o pai dele não tinha morrido e disse­‑lhe o local onde o poderia encontrar. Como seria de esperar, pairou a dúvida se eu não estaria a brincar, mas perante a natureza de tal acontecimento, óbvio seria pensar também que o assunto não era para brincadeira. Assim, e depois de um período natural de incredulidade, o filho do Afonso agradeceu e desligou. Apercebi­‑me que algo se ia passar, o quê, eu não sabia bem, mas calculava.
Já era um pouco tarde quando cheguei a casa. Ao subir as escadas, e porque o elevador continuava silencioso, encontrei a minha vizinha, a D. Amélia, chorosa, a contar à vizinha surda que o seu filho há já alguns dias que não regressava a casa, e o amigo onde passava os dias e as noites a estudar não sabia dele. Afinal, aquilo do estudo até altas horas da manhã era mentira, e o rapaz talvez até estivesse metido numa embrulhada qualquer, que ela nem calculava o que fosse, mas que às tantas até podia ser caso de polícia e podiam­‑no prender.
Perante o estado desesperado da senhora, acalmei­‑a e disse:
— D. Amélia, eu penso que a posso ajudar. Vá descansar e amanhã falamos com mais calma, não se preocupe que tudo se vai arranjar.
— Mas o senhor sabe onde pára o Miguel? Diga­‑me por favor!
— Não sei. Mas amanhã eu vou falar com umas pessoas e talvez seja mais fácil saber onde ele se encontra — disse.
Contrariada, mas com o auxílio da vizinha surda, lá consegui que a D. Amélia entrasse em casa e fosse descansar, o que eu duvidava. Na verdade, eu sabia onde procurar o Miguel, mas faltava saber se seria fácil voltar e se chegaria a tempo.
Subi o lanço de escadas que faltava para o meu andar e entrei em casa. Só foi o tempo de me despir, deitei­‑me e adormeci de imediato.


VIII

Agora na avenida onde não havia trânsito e só pessoas tudo era diferente. Em vez de uma avenida cheia de pessoas, era uma avenida cheia de automóveis, num trânsito frenético. Em vez de passadeiras para peões, haviam pontes onde circulavam pessoas e também automóveis. Ao atravessar uma dessas pontes, na tentativa de encontrar o Miguel, no beco esconso, deparei com o taxista, o da cena do burro. A cena repetiu­‑se exactamente, tal e qual como presenciei da janela do meu quarto. A realidade e o sonho cruzavam­‑se.
O beco onde pensava encontrar o Miguel deixara de existir. As imagens tinham­‑se gravado na minha mente ao mínimo pormenor, por isso, pensei que esta interacção sonho-realidade tinha o seu significado.


IX

Quando cheguei ao emprego tinha um recado na telefonista. O Sr. Rui Lencastre pedia que lhe ligasse porque queria falar comigo. Quase que não tinha dúvidas do tema da conversa.
Cheguei ao gabinete e tentei ligar para o telemóvel. Estava desligado. Como tinha o número do telefone da empresa, liguei, não estava mas tinha um recado no caso de eu telefonar: «O Sr. Rui Lencastre convida­‑o para jantar, hoje à noite, no D. Tonho, na Ribeira, em que uma pessoa muito especial vai estar presente. Aguarda­‑o pelas 20.30 horas.» Confirmei a minha presença.
Estava extremamente excitado com este acontecimento. Apesar de ser um apaixonado por estas matérias, não tinha tido uma experiência tão reveladora e ao mesmo tão inquietante como esta.
Antes de ir para o restaurante passei por casa para mudar de fato e desfazer a barba, porque um tal jantar exigia uma presença apresentável.
Como ainda faltava bastante tempo para o jantar, fui para a sala de estar e liguei a televisão, num vulgar ritual de uma pessoa que vive sozinha.
Como habitualmente a televisão tem para mim um poder, pelo menos ao fim de um dia de trabalho, de soporífero, e, passado que foram alguns minutos, Morfeu, deus mitológico grego, filho do sono e da noite, fazia­‑me companhia.


X

Zipei durante alguns momentos entre os vários canais, até que num canal algo atraiu a minha atenção. Era um programa de ajuda aos desventurados, para os quais a vida foi madrasta, aos viciados, aos abandonados, aos sem-família, aos sem-abrigo, aos que rejeitaram a sociedade ou que a sociedade rejeitou, tudo nesse programa era possível, assim dizia o apresentador.
Como o programa me estava a interessar não mudei de canal. O apresentador introduziu um novo entrevistado e pediu que se identificasse. A princípio não estava a ver quem era, mas logo que ele disse chamar­‑se Miguel Pinto, vi que se tratava do filho da D. Amélia. Eu tinha­‑lhe prometido que ia encontrá­‑lo, na altura pensei no beco onde tinha estado com o Miguel, mas esse beco já não existia. Agora uma existia nova solução. Fiquei surpreendido, ou talvez não, com tanta coincidência.
Miguel contou que tinha fugido de casa porque não conseguia dizer à mãe que era um drogado e que não passava as noites a estudar. Não tinha coragem e vinha pedir ajuda. Alguém que o ajudasse a deixar a maldita droga, para depois de recuperado procurar de novo mãe. Recebeu muita simpatia, muita gente disse que o queria ajudar, inclusive instituições prometeram ajuda. Apesar de todas estas boas intenções, fiquei preocupado, Miguel para mim não era um estranho.


XI

Acordei assarapantado. Estava ainda com as últimas imagens do sonho na mente. Seria fácil encontrar o Miguel, bastava saber qual era aquele estúdio de televisão. E na volta ao sonho a produção do programa televisivo dar­‑me­‑ia, com certeza, todas as indicações.
Olhei para o relógio, já eram 20.30 horas. Estava na hora que me tinham marcado para o jantar no D. Tonho.
Saí de casa com o propósito de não prolongar, para além do necessário, o jantar com o Rui Lencastre, porque tinha uma nova missão a desempenhar, assim intitulei a minha intenção de ajudar o Miguel.
Ao virar a esquina chamou­‑me à atenção o facto de no quiosque onde costumo registar o Euromilhões estarem afixados, em grandes parangonas, os números sorteados.
Meti a mão ao bolso e verifiquei que me tinha esquecido de entregar o boletim. Foi com espanto que comparei os números, 5, 17, 28, 32 e 40, e as estrelas, 2 e 7. Eram os números que eu tinha intenção de jogar, com excepção das estrelas, que eu não tinha, por esquecimento, colocado no boletim mas eram os mesmos números que saíam, repetitivamente, no jogo dos dados das crianças que brincavam na avenida.
Fiquei arreliadíssimo com o acontecimento porque eu sabia que estes sinais eram importantes, mas distraí­‑me demasiado com o caso do Afonso. Não valia a pena lamentar, tinha que encarar a realidade. Ainda pensei se estaria no sonho, mas uma topada numas pedras esquecidas na reparação do passeio pelos os trabalhadores da Câmara chamou­‑me à realidade.
Subi as escadas de acesso ao restaurante e lentamente meti a cabeça para ver se o Rui e o Afonso estavam. No fundo da sala vislumbrei os dois, que falavam animadamente. Escudei­‑me num grupo de clientes, que esperavam que os atendessem, para os observar. O Afonso estava diferente, parecia que tinha rejuvenescido, bem arranjado e barbeado, parecia que a sua descendência aristocrata tinha voltado.
O empregado perguntou­‑me se tinha mesa marcada. Disse que não, que estava a aguardar a chegada de uns amigos. Confesso que estava com medo, não sabia como lidar com esta inesperada realidade, tudo era demasiado novo.
Recuei para o patamar que dava para as escadas e encostei­‑me à parede. Umas gotas de suor apareceram nas minhas têmporas.
Tirei a carteira do bolso e retirei um cartão-de-visita no qual escrevi uma mensagem: «Há momentos da vida que devem ser saboreados na maior das intimidades e com um bom jantar. Desejo­‑lhes as maiores felicidades. Um amigo.» Pedi a um empregado para entregar o cartão.
Saí do restaurante com uma sensação esquisita. Aquele acontecimento talvez pudesse ter sido o mais extraordinário que podia ter vivido na minha vida, contudo, entendi que não devia intrometer­‑me naquele reencontro. Não sei se esta era a verdadeira razão, não sei se estava a ser sincero ou se estava com dificuldade em encarar a situação.
O sonho e a realidade ter­‑se­‑iam encontrado? Eu tenho a certeza que o Rui Lencastre amanhã vai telefonar­‑me para saber da verdadeira razão da minha atitude e será também, talvez, o desvendar das minhas dúvidas.
Regressei a casa com o sentimento da solidariedade mais desperto e que esteve esquecido dentro de mim e que agora se revelava com uma força inesperada. Miguel era agora o centro das minhas atenções. As dúvidas iam com certeza voltar com outro sonho, mas, segundo dizem os poetas, a vida é feita de sonhos e realidades que por vezes se encontram.
De uns tempos a esta parte um novo sonho tem povoado as minhas noites. Uma criança de 9 anos desaparecida da casa dos pais, acontecimento a que a comunicação social deu relevo, apareceu­‑me num sonho, por detrás de uma janela, algures num prédio de vários andares, numa cidade que eu não identifiquei. Apesar de…

FIM