quarta-feira, 29 de abril de 2009

Rodolfo

A vila de Marvão é um dos mais belos e preservados povoados medievais, cercada pelo seu castelo e muralhas a 862 m de altitude, em plena serra de São Mamede, a norte do distrito de Portalegre, da qual se desfruta uma bela vista sobre a planície alentejana, as serras da Estrela e da Gardunha e terras de Espanha.

Rodolfo era um homem de 49 anos e de aspecto um pouco taciturno. Talvez fruto de uma vida madrasta e que lhe dera aquele ar tão carregado.
Tinha nascido e crescera na pequena vila alentejana de Marvão junto à raia espanhola. A sua vida não fora propriamente um mar de rosas. O pai morrera ainda ele era um cachopo. Mal fizera a 4.ª classe e viu-se no meio de homens com uma foice nas mãos entre as searas de trigo. A vida roubara-lhe a adolescência que alguns dos seus companheiros tinham vivido.
Por força das circunstâncias passou a ser o suporte financeiro daquela família de cinco irmãos. A mãe trabalhava em casa de uns senhores ricos a fazer o serviço de lavadeira. Sobravam-lhe os domingos para folgar o corpo e o espírito. Ainda namoriscou algumas das moças da vila, mas aquele seu ar tímido e de «cara-fechada» acabou por não fazer sucesso junto do sexo oposto.
O tempo livre começou-o a passar mais nas tabernas a jogar à bisca ou ao dominó. Aí, sim, tinha sucesso. A sorte bafejava-o no jogo e como tal haviam sempre amigos para quererem ser o seu par.
O estar perto da raia espanhola fê-lo conviver com os negócios escondidos do contrabando. Ouvia-se «à boca calada» de pessoas que iam, de noite, passar a fronteira para comprar e vender produtos. Dos dois lados da fronteira haviam acordos tácitos sobre os negócios. A própria Guarda Civil espanhola e a GNR portuguesa fechavam os olhos. No fundo, também, alguns deles ganhavam com esse negócio transfronteiriço. No entanto ele nunca se metera “nessas confusões”.
Com a Guerra Civil espanhola veio gente fugida com medo e fome. Alguns foram ajudados por gente da terra. Ainda que a medo, escondiam-nos em suas casas e davam-lhes de comer. Tempos difíceis aqueles…
Depois de cumprido o serviço militar viera à aventura para Lisboa. Conseguira arranjar emprego num pequeno restaurante. Pontualmente enviava para a terra o dinheiro que conseguia juntar no fim de cada mês. Ficava com as «gorjas» que os fregueses mais simpáticos lhe deixavam nas mesas, o que lhe ia dando para os gastos com o tabaco e, uma vez por outra, uma ida ao cinema. Certo dia recebeu uma carta da mãe a dizer que a polícia tinha ido lá à aldeia, e, sem se saber porquê, tinham levado o Etelvino numa carrinha. O Etelvino era filho da “Tia Joana da Arnica” e tinha sido dos poucos amigos “a sério” que tivera. “Amigo do seu amigo” – era assim que pensava dele. Nunca chegou a saber o porquê dessa prisão. “Corria” na terra que tinha sido deportado para “fora”. Após “isto”, Rodolfo nunca mais foi o mesmo. Um dia, pensou: haver-se-ia de vingar, iria para um outro lugar e retornaria para resolver a questão.
Agora estava num país distante, longe dos seus, e sentia saudades dos tempos de menino de aldeia. Parecia que tinha na sua frente o campo coberto de searas, o cantar das cigarras, o sol, esse sol tão português estava agora bem longe. Vieram-lhe servir o prato que encomendara. Tinha resolvido que, pelo menos uma vez na vida, iria comer como um príncipe e agora deparava-se-lhe essa oportunidade. Queria lá bem saber do que viria depois: – É aproveitar agora!… – pensava de si para si. Desde que chegara era a primeira vez que tinha aquela sensação. Pareceu-lhe que, de repente, toda a gente o olhava de outra forma. Ainda se lembrava que ao desembarcar tinha dado de “trombas” com um agente que lhe pedira, mas que ele não entendera nada, “pelos documentos”. Os dias que se seguiram foram um martírio, não fosse a sua vontade de “levantar” cabeça e teria regressado de imediato. Bebeu um cálice de conhaque Napoleon e fumou uma “charutada”.
– Óh “garçon”, chegue aqui por favor – e riu-se dessa forma de dizer “garçon”.
– V. Ex.ª deseja mais alguma coisa? – perguntou solícito.
– Agora “prà acabar” quero a conta – iria regressar a Portugal! Olhava o bilhete do comboio… «23-Avril-1974 – 17.00 heures – Gare du Nord».
Por entre toda aquela “massa humana” em delírio, Rodolfo, com os olhos marejados de lágrimas, olhava os tanques, os cravos nas mãos dos soldados, as vozes que gritava: “Viva a liberdade!”
Na rádio ouvia os apelos que o MFA fazia para todos se manterem em suas casas. Mas naquele momento ninguém acatava os pedidos de quem quer que fosse. Havia uma alegria que atravessava a cidade de lés-a-lés. Lisboa “vestia-se” do verde da esperança e do vermelho de revolução. Finalmente chegara o dia da “vingança”… num Abril em Portugal!

Gravura de: José Bandeira

2 comentários:

BatRitinha disse...

Um genuíno, e emocionante, sabor a terra e a cravo.
Beijinhos, Bat

Anónimo disse...

Felizmente porque as coisas correram bem,por outro lado, infelizmente porque as coisas não correram tão bem, situações idênticas as descritas no conto, assisti com pessoas mais ou menos próximas de mim. Um conto do passado com valores que devem estar sempre presentes.