quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Quando o afecto cai em desuso… de Cristina Barbosa.


Pedia-lhe, ali mesmo, calma. Um pouco mais de calma. Que parasse, que não queria ouvi-lo mais. Ele fingia não a escutar, continuava a reclamar, queria todas as atenções voltadas para si.
– Quem põe a comida na mesa? – perguntou-lhe, baixo. Respirava rancor, sentiu ela.
Ela, empurrada para o desemprego há meses, soluçava. Suportava filas e filas no centro de emprego, mas de nada lhe adiantava.
– Quem é? – repetiu ele, exaltado.
Ali perto, as pessoas, absortas em conversas mais ou menos tontas, mergulhadas nas notícias que o jornal trazia, não pareciam ouvir o que quer que fosse. Só um homem, Rogério, ali mesmo ao lado, se apercebia de tudo. Pediu um segundo café. Depois, olhou o outro homem, que se aproximava ainda mais da mulher, para lhe perguntar pela terceira vez, enquanto lhe agarrava o pulso com força:
– Quem é?
A mulher, contida, não tinha deixado ainda de soluçar. Desejava que os outros à sua volta não ouvissem o que ela ouvia diariamente. Horrores repetidos, medo. Uma vida que a sufocava. Não queria que houvesse testemunhas de nada.
O café de Rogério, sobre a mesa, arrefecia. O terceiro da manhã, quarto talvez. Não faltava quem lhe sugerisse que bebesse menos: “Tem cuidado, faz-te mal beber tantos cafés por dia.” De nada adiantava, porém. Era um verdadeiro dependente da bebida. Imaginava-se até numa qualquer reunião de dependentes de café anónimos. “Olá, o meu nome é Rogério e, desde que me conheço, sou dependente do café.” A vaga ideia daquela situação fê-lo sorrir discretamente. Mas nem por isso prestou menos atenção ao que se passava na mesa ao lado da sua. Queria ajudar, contudo, sentia-se um verdadeiro cobarde, sem coragem para enfrentar o outro homem. Era um problema alheio, bem o sabia, mas cruzava-se assim na sua vida, metera-se pela sua leitura dentro, sem que o pudesse impedir.
O homem, entretanto, saiu, sem sequer se despedir. A mulher soluçava ainda. Baixinho, não queria que as pessoas reparassem. Rogério tomou coragem, embora não quisesse invadir assim a intimidade daquela mulher. Não lhe pediu calma, disse-lhe para agir:
É jovem, bonita, tem uma vida pela frente.
Ela, tímida, sorriu. Há já muito tempo que nada nem ninguém a fazia sorrir, pouco que fosse.
Rogério olhou depois a chávena de café frio sobre a mesa. Como havia dependências bem piores que a sua, pensou. A mulher da mesa ao lado era dependente daquele homem. Era-lhe, aliás, submissa. Ou, pelo menos, parecia e isso já não era bom.
– Há amores que matam – disse-lhe Rogério, mesmo antes de sair. Queria fazê-la reflectir. Ela nada respondeu.
Na rua, o vento uivava. Como semanas antes, numa manhã sem luz. Tentara ir às compras, mas o empurrão do vento depressa o fez desistir, não havia dado ainda meia dúzia de passos. Viu árvores caídas, carros acidentados. Passadas algumas semanas, era a vida daquela mulher que lhe parecia acidentada. E ela, prestes a cair, a baixar os braços, a deixar-se desistir. Quem lhe dera a si poder não o permitir. Mas quem era ele para sugerir o que quer que fosse, para interferir na vida de alguém que nem sequer conhecia?

Já a mulher, pede tempo ao tempo, mas o tempo parece fugir-lhe.