quarta-feira, 1 de abril de 2009

A INSULA FRATINA

O dia estava simplesmente esplendoroso. André Calisto estacionou o seu jipe Terrano no parque de estacionamento junto à praia.
Decidiu passar o sábado sozinho, longe de tudo e de todos, depois de uma semana de trabalho para esquecer. A sua promoção a chefe do departamento de informática da empresa onde trabalha há dez anos, por nomeação da administração, tinha caído como uma bomba. Das felicitações sinceras de alguns colegas até aos sorrisos amarelos de outros, teve de tudo. Sabia que tinha uma longa tarefa pela frente – conseguir o apoio dos colegas para os projectos que a administração lhe propôs não ia ser fácil. Mas sobre isso pensaria na segunda-feira, hoje, o mar seria o único desafio a enfrentar. O windsurf era a sua paixão desde muito jovem e, apesar de já ter ultrapassado os 35 anos, continuava a ser a única coisa que verdadeiramente o descontraía. Estendeu a toalha na areia, longe das pessoas, e colocou a prancha de windsurf ao lado; ainda não estava na altura de entrar na água, o mar ainda não reunia as condições mínimas para a prática.
O vento batia na vela, afastando a prancha do areal. Com grande perícia e aproveitando a direcção do vento, conduzia-a ao longo da praia, passando por alguns colegas que denunciavam falta de experiência. Rumou em direcção a uns penedos, que a espaços eram lambidos pelas ondas, fazendo levantar em pequenos voos umas gaivotas que os povoavam. Passou-os a uma velocidade apreciável, dirigindo-se para o mar alto. Quando desejou fazer uma volta de retorno, a prancha incompreensivelmente não obedeceu. Fez uma nova tentativa que não resultou, largou as mãos da retranca, a vela caiu e a prancha parou, assim como o vento. O silêncio era a única coisa que se ouvia.
André Calisto olhou para o céu e uma névoa caía sobre o oceano. Num ápice foi absorvido por ela como se fosse um manto atirado do espaço infinito. Não conseguia ver um palmo à frente do nariz. De repente o vento voltou, tornando-se cada vez mais forte. André levantou a vela e a prancha disparou a alta velocidade em direcção desconhecida. No meio da névoa sentiu-se perdido. Não sabe quanto tempo permaneceu envolto nela. Lentamente ela foi desaparecendo e o sol reapareceu.
A paisagem que agora tinha diante dos olhos era diferente da praia de onde saíra. Era uma praia de areia branca de águas límpidas, via-se o fundo do mar recheado de corais e peixes coloridos de uma beleza indescritível. Várias modalidades aquáticas polvilhavam as águas junto à praia. No areal alguns corpos seminus bronzeavam-se e os bares de apoio impecavelmente bem arranjados tinham alguns clientes. As pessoas, distraídas no gozo daquele sensacional dia, não deram pela chegada dele. O local era paradisíaco. André estava estupefacto, nunca tinha ouvido falar da existência daquele local. Dirigiu-se para a praia, pegou na prancha e arrastou-a para a areia seca. Olhou à sua volta e apercebeu-se que falavam uma língua estranha. Falava fluentemente inglês e francês, arranhava o alemão e tinha conhecimentos, apesar de limitados, de italiano e, claro, de castelhano, mas não era nenhuma destas línguas. Nos locais que frequentava à beira-mar havia sempre muitos estrangeiros, mas existiam sempre portugueses, mas ali mesmo os empregados dos bares falavam aquela estranha língua.
Aproximou-se de um grupo de jovens e perguntou:
– You speak english?
Olharam para ele espantados e não responderam.
– Vous parlez français? – insistiu.
– Alilanda? – perguntaram num misto de curiosidade e medo.
– Sei lá! Falem numa língua que eu entenda – expressou-se em português, na esperança remota de uma resposta.
Mas a resposta foi um virar de costas e uns sorrisos pouco simpáticos.
André Calisto aproximou-se de uma avenida marginal que bordejava a praia e onde morria o areal.
– Can I help you? – perguntou um senhor, de boa aparência, elegantemente vestido e que aparentava ter uns 80 anos.
– Where am I? – perguntou André.
– What language do you speak? – respondeu o velho com uma pergunta.
– Português!
– Português? – disse numa correcta pronúncia da língua de Camões.
– Ainda bem que encontro alguém que me compreende. Mas onde é que eu estou?
– Na Insula Fratina, ou melhor, em português, a Ilha Fraternal.
– Nunca ouvi falar de tal sítio – respondeu admirado.
– Não duvido.
– Mas onde fica esta ilha? Que língua se fala aqui?
– Esta ilha fica algures num oceano, a latitude e longitude, não me lembro, se é que algum dia soube. A língua oficial é o esperanto, já ouviu falar dela?
– Sim, mas não como língua oficial. E como se chama este local? Esta praia? E esta avenida onde vai dar?
– Você está na capital, Prosperi. Esta praia é a plago Hundo, e esta avenida é a Aleo Apudamara, que vai dar ao centro da cidade – respondeu o velho prontamente.
– Desculpe, o senhor quem é?… Como se chama?
– Chamo-me Petro. Sou um zorgisto.
– Zorgisto?
– Traduzindo para português, zelador. É natural que tenha curiosidade de conhecer algo sobre este local extraordinário, ímpar no mundo, onde toda a gente gostaria de viver, mas infelizmente essa felicidade só é privilégio de alguns.
– Não será exagero o que está a dizer? – perguntou sarcasticamente.
– Vou-lhe fornecer alguns dados sobre a ilha e depois dirá se de onde veio se lhe compara.
– Estou mesmo curioso.
Petro convidou André a sentar-se num dos bancos existentes na praia. André ficou admirado pelo facto de o velho não lhe ter feito perguntas acerca de como é que ele foi ali parar, talvez já o soubesse ou não era ainda o momento oportuno, isso preocupou-o.
– Esta ilha tem mais ou menos as dimensões e a população da Irlanda, mas com características completamente diferentes. No norte temos montanhas, que são o nosso reservatório natural de água. No sul temos belas praias e nas suas águas reservas de peixe suficientes para alimentar a população da ilha. Rebanhos de gado bovino, ovino e caprino pastam nas belas planícies do centro. O sol brilha 300 dias por ano, com uma temperatura média de 25º. Politicamente somos uma república etocrática, os partioj politikoj, representados na Kunsido Nacia, assentam os seus programas políticos, essencial e quase exclusivamente, na fruição dos bens públicos e das melhores perspectivas do ócio. A economia e as finanças estão devidamente estabilizadas e programadas.
» De dez em dez anos, os partioj politikoj fazem uma plataforma de entendimento e escolhem um primo-ministro, que recruta dentro dos partidos as personalidades que entende serem as mais competentes para a formação de um regado de unidade nacional.
» Eu pertenço à Direktoro Eminentularo, ou seja, é uma entidade suprapartidária que preserva a integridade do país e zela para que a ordem e a segurança não sejam postas em causa por forças internas ou eventualmente externas; como lhe disse, eu sou um zorgisto.
» Os transportes são grátis, assim como a saúde, o ensino e os espectáculos. Temos 0% de desemprego, toda a gente tem habitação, não temos analfabetos, 50% da população tem curso superior e o crescimento económico é de 15%. Somos totalmente auto-suficientes, não necessitamos do mundo exterior. As energias são não poluentes, energias renováveis: eólica, solar, de marés, de hidrogénio e gás natural. Temos da melhor e da mais moderna tecnologia, estamos sempre actualizados com o melhor que se faz nos outros países, temos técnicos altamente qualificados.
» Na Insula Fratina não há roubos, não há droga, não há alcoolismo, o tabaco há muito que foi abolido e desconhece-se a palavra «sida». O trânsito automóvel é fluente, as transgressões de trânsito, quando existem, são denunciadas pelos próprios infractores, que pagam voluntariamente as coimas. Por tudo isto, os polícoj são funcionários que normalmente trabalham noutras funções na Komunumo. Curiosamente, este ano houve um caso em que a polico teve que intervir, por ordem do tribunalo, relativamente a um indivíduo que abusivamente se apossou de segredos de estado sabendo que colocava em causa a segurança dos seus concidadãos. Quando foi interceptado acusou que o Regado lhe estava a cercear a sua liberdade e direito ao conhecimento. O tribunalo verificou que não era disso que se tratava e o indivíduo, como estava a ser um caso problemático, foi, por ordem do mesmo, internado numa kliniko para ser submetido a um desmemoriamento, ou seja, estripar da memória o problema que o desestabilizava. Havia muito mais para lhe dizer, só que não o quero aborrecer, mas estou disponível para qualquer pergunta que queira fazer.

André ficou perplexo com o relato de Petro, não sabia se o relato fora pura publicidade ou era um aviso. Achou melhor não colocar qualquer questão. Não sabia qual era o seu estatuto: náufrago, espião, reaccionário ou um indivíduo predestinado a uma das tais kliniko.
– O senhor disse que eram uma república etocrática. Mas isso é uma forma de governação baseada nos usos, tradições e regras de conduta reconhecidos pela população, não passando de uma teoria académica.
– Que nós passámos à prática. O governo deste país rege-se por princípios definidos há muito tempo pelos nossos antepassados e que só podem ser alteradas pela Direktoro Eminentularo.
André pensou que estava a lidar com um louco. O velho leu-lhe o pensamento e disse:
– Não pense que sou louco. Vou demonstrar-lhe o que disse.
Dirigiram-se a uma tenda que vendia vestuário. Petro disse-lhe para escolher uma t-shirt, uns jeans e uns sapatos para se deslocarem até ao centro e pagou-lhe as compras com uma espécie de cartão de crédito. Entraram num moderno metro de superfície, que parara perto do sítio onde estavam; não pagaram bilhete. Foram até ao centro passando por diversos edifícios de um material semelhante ao vidro e que lhe pareceram públicos. Fixou os nomes de alguns deles: Malsanulejo, Kuriero, Pumpistejo, Benko Stata, Muzeo Nacia, Kinejo Mondo, podiam dar-lhe jeito no regresso.
A cidade era aberta, o centro situava-se na confluência de várias e bem delineadas avenidas, impecavelmente limpas. Vários gardenoj, baptizados com nomes curiosos como Felico, Harmonio e Paco, que Petro fez questão de ir traduzindo, estavam cheios de flores e de pessoas, especialmente crianças que brincavam vigiadas pelos pais ou avós. À volta destes jardins, proliferavam pequenas, mas várias, kafkruco, onde pessoas de todas as idades conversavam ou liam saboreando um café ou uma outra bebida. Encaminharam-se para um edifício de estilo avançado, que nunca tinha visto e que transbordava de gente. Na porta de entrada tinha uma placa com os dizeres: «Operejo». Um som melodioso anunciava que o espectáculo ia começar. Petro disse-me que o espectáculo era grátis. Do outro lado da Placo Zamenhof existia um outro edifício de linhas também muito avançadas com um formato que parecia indicar ser um pavilhão para prática desportiva; efectivamente era um Pavilono e decorria um jogo muito apreciado de piedpilko de salono, a entrada também era grátis. Depois percorreram uma avenida cheia de belas casas, com belos jardins e as portas, quando existiam, não tinham fechaduras. Durante este giro pela cidade, André não vislumbrou nenhuma autoridade.
Em seguida, foram a um edifício todo espelhado e com luzes de néon, que dizia tratar-se da Societo Filamentoro. Petro cumprimentou o porteiro e perguntou por alguém, e foi-lhe indicado o local onde o poderia encontrar. Numa sala esfuziante de beleza e bem-estar Petro encontrou a pessoa que pretendia. Era um jovem que lhe foi apresentado.
– Karlo, apresento-te o…
– André Calisto.
– Gostava que acompanhasses o André.
E, virando-se para o André, disse:
– Karlo também fala português.
O jovem Karlo sorriu e abanou a cabeça afirmativamente.
– Quando é que eu poderei regressar? – perguntou André.
– Não sei. Tenho que analisar com os meus superiores o seu caso. O André trabalha em quê? – perguntou Petro.
– Sou licenciado em Informática.
– Óptimo. É uma área que falta no país. Não quer ficar cá a trabalhar?
– Não sei se estou interessado – atreveu-se a responder.
– Com certeza. Eu vou tratar do seu assunto – disse Petro sorrindo.
A saída do velho da sala prendia-se com a solução a dar ao seu caso.
Karlo convidou André a sentar-se num sofá. Perguntou-lhe se queria beber alguma coisa, André disse que tomava um café. Foram servidos por um robot.
Sentiu-se mais à vontade com Karlo e dispôs-se a encetar uma conversa para saber algo mais da ilha.
– Para além da língua oficial, o esperanto, a população fala outra língua?
– Não. Alguns de nós falamos outras línguas mas estamos autorizados pela Direktoro Eminentularo.
– Qual a razão de vocês falarem esperanto? – perguntou.
– Os primeiros habitantes da ilha eram de várias nacionalidades que entraram em conflito por causa da língua, foi por isso que a Direktoro Eminentularo decidiu adoptar o esperanto como língua oficial por ser uma língua da fraternidade.
– Falando somente esperanto e não tendo acesso a outras línguas, a população não tem acesso a outros conhecimentos a não ser aqueles que vocês entenderem fornecer. O povo está nas vossas mãos. Não será assim? – questionou André.
– De modo algum. O povo é livre – disse Karlo, denunciando uma certa irritação.
André tinha um conhecimento muito elementar do esperanto, mas não tinha dúvidas que a língua inventada por Zamenhof fora construída com um objectivo de unir os povos e ali, naquela ilha, tinha sido pervertida ao ponto de ser um instrumento de opressão, ao serviço de uma cognominada «elite etocrática», disso já não lhe restavam dúvidas. Zamenhof fora traído nos seus propósitos.
André Calisto olhou à sua volta e apercebeu-se quanto aquele lugar era agradável. Karlo explicou que aquele edifício era inteligente. A climatização, a iluminação, a música ambiente, as persianas, os próprios sofás, eram geridos por computadores de modo a criarem um bem-estar aos seus utilizadores. Como estes edifícios há centenas espalhados pela ilha, explicou Karlo.
– O Karlo em que trabalha?
– Sou licenciado em Literatura. Dedico-me a traduzir para esperanto obras clássicas. A Ilíada e a Odisseia, de Homero, foram as minhas últimas traduções. Agora estou a traduzir…veja se reconhece?
Karlo passou a mão sobre o tampo da mesa que estava colocada à frente deles e um ecrã policromático acendeu. Apareceu um texto em esperanto e André começou a ler:

La farojn kaj la virojn multmeritajn,
El okcidenta plago luzitana,
La marojn ne ankorau navigitajn
Pasinte, transe ec de Trapobana;
En lukto kaj dangervenkintojn spitajn,
Kun forto superhoma kaj titana;
Kiuj Konstruis en la malproksimo
Reglandon, kondukitan al sublimo.

– Mas isto são Os Lusíadas, de Camões! – disse André admirado.
– Como vê, apesar de não saber esperanto, o André identificou o texto. Esta é a beleza da nossa língua. O escritor Tolstoi dizia que aprendeu a ler esperanto em duas horas. É uma língua que une as pessoas, como dizia o mestre Zamenhof.
– Mas como é possível a ilha não ser conhecida? – disse André.
– Efectivamente a ilha não é conhecida. A Direktoro Eminentularo decidiu que a ilha não devia ser conspurcada com os males do vosso mundo. Temos uma tecnologia de ponta que evita que satélites, meios áudios, aviões ou barcos se apercebam da sua existência; chamam-se «camufladores» e estão espalhados por toda a ilha.
– E quando alguém, como eu, casualmente, aporta à ilha? – perguntou André.
– Penso que o André foi o primeiro – disse Karlo.
André notou pela maneira que se referiu ao acontecimento que Karlo estava a fugir à verdade. André sentiu que algo ia correr menos bem, ou mesmo mal. Apesar das dúvidas que iam aumentando, André atreveu-se a perguntar:
– O Sr. Petro disse que era um zorgisto e que zelava pela segurança interna e externa da ilha, presumo que têm problemas.
– Alguns, mas muito poucos.
– E a contestação é política? – perguntou André.
– Não – disse categoricamente
– Não compreendo – reforçou André.
– Aqui na ilha, recebemos do exterior, via satélite, toda a comunicação do planeta. Há uma entidade, a Esteco Regulanta, que selecciona as notícias, e somente essas é que são divulgadas aos cidadãos, via rádio, imprensa ou televisão por cabo.
– E o Karlo diz que o povo é livre? Curioso! – atreveu-se a dizer.
Karlo ignorou a ironia e continuou:
– Contudo, há indivíduos ligados aos meios de recepção que, influenciados por notícias do exterior, contestam a entidade.
– E quando isso acontece? – afrontou André.
– Há males que têm de ser extirpados logo à nascença para o bem-estar do nosso povo. Esses indivíduos estão doentes, e, como tal, têm que ser tratados, por isso temos klinicoj para serem recuperados.
Mais uma vez a referência às clínicas de recuperação, pensou André.
– E você diz que há liberdade! Esta gente não é livre, está condicionada a um grupo bastante restrito que decide por eles o que é bom e o que é mau. Não tendo acesso ao mundo exterior, estão presos na ilha, que curiosamente se chama fraternal. Já conheci, num passado recente, sociedades semelhantes a esta e que o povo rejeitou. Não vos dou grande futuro, mais tarde ou mais cedo, vocês vão ter grandes problemas – disse André, consciente de que, com o que estava a dizer, a sua situação poderia piorar.
Karlo ficou pensativo por alguns momentos.
– A Direktoro Eminentularo prevê que o vosso mundo vai entrar numa guerra global e somente a Insula Fratina escapará ao morticínio – disse Karlo com uma voz já alterada, e em esperanto exprimiu o seu pensamento com uma frase plena de convicção: «La malbono faras doloron kaj ne la bono», que traduziu: «O mal faz a dor, e o bem não faz a dor».
Karlo convidou André a dar uma volta pela cidade. Utilizaram um pequeno veículo movido a energia solar de aspecto invulgar.
Na cabeça de André afloraram muitas questões, mas estava receoso de colocá-las a Karlo. A curiosidade sobrepôs-se irresistivelmente.
– Karlo, com o nível cultural que tem a população, é natural que sejam curiosos acerca do mundo exterior. Não acredito que pensem que estão sozinhos no planeta.
– Claro! Há uma quantidade de pessoas, mas é mínima, que questiona. Mas a vida que lhes é proporcionada ultrapassa de longe a curiosidade de conhecer esse mundo exterior.
– A curiosidade é inerente à raça humana, não acha?
– O André vive, de certeza, num local que lhe proporciona uma boa qualidade de vida e de que gosta?
– Sim.
– Se lhe mostrassem um local para onde o convidassem para ir viver em que a poluição, as guerras e a degradação humana fossem uma constante, o André que diria?
– Que não estava interessado, mas…
– É isso que fazemos ver aos poucos cidadãos quando levantam essas questões.
Karlo não deixou André replicar.
Karlo deixou André no Hotelo Karaktero no centro da cidade mesmo ao lado do rio Rivero Mildo. Disse-lhe que no dia seguinte voltaria de manhã cedo para o levar para a Societo.
No quarto que lhe foi destinado encontrou no armário roupa à sua medida. Enquanto esperava pela hora de jantar aproveitou para ver TV e percebeu, apesar de não saber esperanto, aquilo que lhe tinham dito: as notícias eram controladas, o mundo exterior pouco ou nada se falava, só se referiam ao que se passava na ilha. Desceu para jantar. Depois da refeição passou pela recepção e saiu para a rua. Um indivíduo estava sentado num banco do outro lado da rua a ler um jornal, numa situação típica de vigia. Pensou que se começasse a andar o indivíduo iria atrás dele; desistiu de criar mais problemas.
Regressou ao quarto e analisou a sua situação. Nunca se tinha interessado por política, considerava os políticos maquiavélicos, não olhavam a meios para atingir os fins, e curiosamente passou o dia a falar de política e a contestar o modelo político-social daquela ilha. Até falou de liberdade, e no seu pensamento desfilaram imagens dos seus ascendentes a falarem das perseguições políticas, das prisões e das torturas que alguns deles e amigos foram alvos no antigo regime, em defesa da liberdade. André nunca tinha pensado verdadeiramente nisso, mas agora, perante a situação que estava a viver, essa palavra tinha um significado que jamais pensara.
Por volta das 9 horas já Karlo o esperava no átrio do hotel; André não tinha dúvidas que estava a ser alvo de forte vigilância, a sua liberdade estava ameaçada. Tinha que tomar uma decisão, mas não sabia o quê. O reencontro com Petro previa-se de consequências imprevisíveis.
Perguntou a Karlo se era possível irem até à praia apanhar um pouco de sol. Karlo pegou num telemóvel e em esperanto perguntou a alguém se podia satisfazer pedido de André. A resposta foi positiva e Karlo levou-o até à praia no veículo que no dia anterior utilizaram.
O veículo parou no estacionamento, aproximaram-se da entrada da praia, a mesma que já conhecia, sentou-se no muro, despiu-se e ficou em calções, como quem tenciona deitar-se e apanhar um pouco de sol. Karlo não fez qualquer comentário e sentou-se num banco.
O areal não estava com muita gente, alguns surfistas exibiam as suas capacidades nas cristas das ondas, o mar estava brilhante e uma leve brisa percorria a praia. Um grupo de jovens falava animadamente junto à orla marítima com pranchas de windsurf repousadas na areia.
André olhou para um lado e para outro, levantou-se, dirigiu-se lentamente em direcção ao mar. Já relativamente perto da água começou a correr, dirigiu-se ao local onde estavam as pranchas, pegou numa e entrou no mar. Ultrapassou a rebentação, saltou para a prancha, levantou a vela e começou a velejar.
Perante o inesperado e o facto de não saberem o que era um roubo, os jovens não reagiram. Karlo percebeu, de imediato, que André ia tentar a fuga. Pegou no telemóvel e comunicou o sucedido. Gesticulou para uns indivíduos que se encontravam junto ao mar e devido à sinalética efectuada saltaram para umas motos de água, ali estacionadas, e saíram no seu encalço. Contudo, este espaço de tempo deu uma vantagem razoável a André.
André Calisto distanciou-se rapidamente da beira-mar em direcção ao mar alto. Passou por alguns barcos de recreio e procurava, desesperadamente, aquela névoa que o tinha atirado para aquelas paragens. Esta subitamente apareceu vinda do céu, como um manto caindo sobre ele com toda a sua espessura. André ouvia as motas de água aproximarem-se e continuou na sua fuga. A névoa espessou cada vez mais. O vento enchia a vela e a prancha a toda a brida dirigia-se com destino desconhecido. Só o barulho das motas chegava aos seus ouvidos, em sons entrecortados, o que significava que andavam aos ziguezagues à sua procura. Não sabe quanto tempo andou assim. André deixou de ouvir as motas de água, a névoa desapareceu quase instantaneamente e o sol ressurgiu com toda a sua pujança. André avistou uma embarcação e sentiu que era a sua salvação. Foi-se aproximando e cada vez melhor identificava a sua natureza; era uma traineira igual às muitas que enchem os portos piscatórios portugueses. Deus te Guie era o nome pintado toscamente a azul na proa.
– Ó da traineira! – gritou
– O amigo precisa de ajuda? – disse um homem vestido com uma camisa axadrezada.
– Sim, estou a fugir daquela ilha, estou a ser perseguido.
– Ilha? Mas que ilha? – perguntou o pescador.
– Aquela ali no horizonte – André apontou para o horizonte.
– Ilha? Ali o que você vê é Leça. O farol que vê à esquerda é o da Boa Nova e mais ao lado é a PETROGAL. Por aqui não existe ilha alguma, o amigo deve ter apanhado sol a mais. Mas suba que nós levamo-lo para terra. André subiu e os pescadores ajudaram a içar a prancha.
Encostado à cabina da traineira, observava o azul-escuro do mar e aquela costa recortada e foi identificando todos os locais. Mas como era possível ter saído de uma ilha que não existia? Falou com pessoas que se exprimiam em esperanto, participou da vida da ilha e, se não fosse as dúvidas sobre o que presenciou, até talvez tivesse ficado por lá. Agora, como por artes mágicas, a ilha desaparecera… ou nunca teria existido? Curioso é que a prancha de windsurf que roubou na praia era a sua prancha que tinha abandonado quando aportou à ilha.
Tudo isto teria sido fruto da sua imaginação de um sonho ou quiçá de uma experiência metafísica?
André Calisto voltou várias vezes à sua praia. Continuou a praticar o seu desporto favorito, mas nunca mais viu a tal névoa que um dia o levou para uma experiência inolvidável, assustadora?, maravilhosa?, no mínimo fantástica.


Glossário esperanto-português

Aleo – avenida.
Alilanda – estrangeiro.
Apudamara – marítima.
Benko Stata – Banco Nacional.
Direktoro Eminentularo – Suprema Elite.
Esteco Regulanta – Entidade Reguladora.
Felico – feliz.
Filamentoro – filantrópica.
Fratina – fraternal.
Gardenoj – jardins.
Harmonio – harmonia.
Hotelo – hotel.
Hundo – cão.
Insula – ilha.
Malsanulejo – hospital.
Mildo – manso.
Mondo – mundial.
Malsanulejo – hospital.
Mildo – manso.
Muzeo Nacia – Museu Nacional.
Operejo – ópera.
Paco – paz.
Partioj politikoj – partidos políticos.
Pavilono – pavilhão.
Piedpilko de salono – Futsal.
Placo – praça.
Plago – praia.
Polico – polícia.
Policoj
polícias.
Primo-ministro – Primeiro Ministro.
Prosperi – prosperidade.
Pumpistejo – bombeiros.
Regado – governo.
Rivero – rio.
Salono – salão.
Societo – sociedade.
Kafkruco – cafeteria.
Karaktero – natureza.
Klinico – clínica.
klinicoj - Clínicas.
Komunumo – Câmara Municipal.
Kinejo – cinema.
Kuriero – Correio.
Tribunalo – tribunal.
Kunsido Nacia – Assembleia Nacional.
Zorgisto– Zelador.

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