segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Uma Visão de Fora para Dentro de Luis Fernandes

 
Era desespero o que sentia, abandono! Inventava palavras que não queria dizer. Gritava para o alto com as forças que lhe restavam, mas não se fazia ouvir — eram sons surdos o que lhe saía. Com a raiva que sempre o acompanhou, uivou de agonia e sofrimento. Sentiu-se desconfortável… estremeceu.

Encolheu-se, fechou-se em concha e cerrou os olhos. Estudava uma estratégia para abandonar aquele corpo. Corpo dorido, maltratado, destruído pela falta de senso, corroído pelas intempéries da vida que o perseguiam e pelos passos mal dados que reflectiam as suas escolhas.

Sentado na cama olhava para a sorte. Recordava o dia, lembrava os seus medos, «no entrave do sono vê-se mais negro», pensava e aguardava que as horas por ele passassem. Já com os olhos a gotejar, como tímidas nascentes, não fazia qualquer esforço para o esconder — chorava na esperança de afugentar os seus tormentos, aqueles seres ridículos, enfiados em pijamas às riscas…

Estava num manicómio… estaria? Duvidava da sentença. Tinha apenas morto dois seres ignóbeis que tinham aparecido no balcão do banco, onde trabalhava, para reclamarem acerca de umas transferências bancárias, para as quais não tinham dado autorização. Considerado psicopata? Inimputável? O que é isso? Doidos eram os outros, nas suas batas brancas com cheiro a desinfectante escondendo manchas de sangue. Mas o que era certo, era que se encontrava enclausurado, naquele quarto de paredes nuas e grades nas janelas, para conter de vez os efeitos de alguns pensamentos, menos próprios, de pôr termo à vida. Uma cama de um só corpo, assim como uma pequena mesa e uma cadeira de pau completavam o mobiliário dos seus aposentos. Não lhe era permitido ter acesso às suas roupas e haveres. Fazia a barba duas vezes por semana, sob a vigilância de enfermeiros com o corpo do tamanho de guarda-fatos, que controlavam com desconfiança o manejar da máquina de barbear.

As saídas eram cada vez mais reduzidas, confinadas ao pequeno jardim rodeado de muros com mais de três metros de altura, que lhe roubavam a liberdade da sua visão e o empurravam para as suas lembranças, já deturpadas pelo passar do tempo e pela realidade que tinha vindo a viver, completamente afastada da existência mundana que se adivinhava do lado de fora do hospital.

Não tinha amigos. Também não havia modo de desenvolver amizades num lugar como aquele, em que, apesar de a maioria lá permanecer há mais de cinco anos, todos viviam, cada um no seu mundo, em mundos desencontrados. Fala-se, barafusta-se, desenvolvem-se comportamentos de agressão e até de partilha, mas não se dá azo ao desenvolvimento de amizades. O silêncio e o vazio eram as suas companhias. Com o silêncio mantinha uma relação de conflito. Tentava apagá-lo à força de gritos, com diálogos surdos que encetava com a sua consciência, com canções desconhecidas que lhe pairavam numa memória estranhamente escondida… por trás dos seus pensamentos. Relativamente ao vazio era desprezo o que sentia. Desprezo por querer viver sem tropeçar no seu passado… oco.

Olhava para a parede e via a sua sombra crescer… crescer… crescer, como se fosse um espectro de consciência que de si emanava. Sabia que este mundo não era o dele, que aquele corpo retratado na parede já não lhe pertencia. Era de outro. De outro que ao contrário dele já não existia. De outro que dissera adeus à vida enquanto ainda vivia.

No entretanto, o som de um bater de asas envolveu o seu pensamento e desviou-o por momentos dos seus devaneios. Era um som forte, absorvente, um som de liberdade, um som de ar fresco da noite. Um bater de asas prolongado mas suave que lhe trazia ao ouvido uma lembrança longínqua de uma existência compassada e coerente. Houve tempos em que também ele voou noites dentro… dias fora. E quem batia as asas fez-se ouvir… e transmitiu-lhe calma. A calma perturbadora de uma visão desprovida de expressão. Um som desritmado, um idioma desconhecido, uma melodia de frente para trás. E, de repente, toda a sua insegurança era harmonia. A sua insónia reconfortava-o, descansava-o. Sentia-se omniausente. Desprendido da sua história sem cenário, sem argumento, sem princípio nem fim. Encontrava finalmente o seu equilíbrio, a sua sanidade e, ao sabor do acaso e do improviso, mergulhou a cabeça na almofada. Sorriu, desejou boa noite a si próprio e sonhou. E ao longe, fora daquela cela encontrou o seu destino, o desenho da sua missão. Finalmente aceitou estar ali. Estar ali… «por nada».

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O Mensageiro de Célio Passos

1)


«Quando Cipriano saiu do Centro de Emprego estava a chover. Uma chuva miudinha que o povo intitula de ‘molha tolos’ e que condizia às mil maravilhas com a nossa personagem. Mais uma vez vinha feliz, com as mãos a abanar, perspectiva de emprego nenhuma e ainda bem. Sentia-se muito bem no fundo de desemprego. Já ia para dois anos que a situação se mantinha. Tinha mais com que se entreter do que com um trabalho. Enquanto o ‘pau vai e vem, folgam as costas’, mais um adágio popular para acrescentar ao seu extenso reportório de uma vida plena de ócio com um final de contornos de difícil previsão.
  Mas quem é Cipriano? O seu aspecto é tosco - cabeça arredondada com algum cabelo, preto, aparecendo já algumas cãs à volta das orelhas grandes e deslocadas da cabeça. Ostenta umas soberbas patilhas. Cara sobre o comprido, com queixo quadrado, olhos grandes e sobrancelhas fartas. Maças do rosto algo salientes. Boca grande, lábios grossos, com bigode contornando os cantos da boca. Barba rala e mal cuidada. Pescoço forte e musculado.
        Veste, sempre, um blusão de couro do antigo namorado da namorada.
       Nasceu em Massarelos há 42 anos e vive com os progenitores. O pai, estivador, é a honestidade em pessoa. Dá-se mal com ele. Uma das razões, entre várias, é o facto de ter feito um desfalque numa empresa. Outra são as discussões constantes pelo facto de ele não se empenhar em procurar emprego.  Tem um filho já com 11 anos, fruto de uma relação com uma namorada. Não aceita que o filho não trate do neto e nem se preocupe minimamente com ele. O neto anda ao Deus-dará e vai lá casa, não para ver o pai ou os avós, mas para matar a fome.
  Para a mãe, o filho é o resultado do desgoverno dos governos que não arranjam empregos para os jovens e os desempregados. É um martírio e uma fonte de preocupações para aquela mãe que não vê futuro para o filho, ainda mais com uma criança.»

Valdemar Souto parou de escrever. Salvou informaticamente o texto.
Valdemar Souto é escritor. A entrada no mundo das letras foi difícil. As editoras não aceitavam os seus escritos, apesar de muitos dos seus colegas considerarem as suas obras passíveis de publicação e de sucesso junto do público.
Por fim, uma editora resolveu aceitar a sua primeira obra e a partir daí o mundo dos livros abriu-lhe as portas e alguns críticos literários fizeram-lhe boas referências.
Não dependia da literatura para sobreviver, tem outras fontes de rendimento, mas escrever foi sempre o seu sonho. Tinha publicado já um segundo livro, há seis meses, que foi um sucesso.
Tinha começado a moldar a sua nova personagem, apanhada num supermercado quando fazia umas compras, ao reparar num indivíduo digno de ser alvo de um tratamento literário. Tinha potencial a figura, o modo de trajar, a sua postura desleixada, com certeza daria uma bela personagem.
Preparava-se para encerrar o computador quando viu na barra inferior uma mensagem no «Messenger». Abriu-a.

«Caro escritor. Não sou muito pra as escritas. Tenho deficuldade em escreber, mas não poço deixar de me indgnar do modo como vocemesse me descrebe. Poço não ser um beleza, mas não sou como você diz. O relacionamento com o meu pai e com o puto é mais culpa deles que minha. Debia ter mais cuidado com o que escrebe. Cipriano-F

Valdemar ficou estupefacto, não queria acreditar no que os seus olhos viam. Devia ser uma brincadeira de algum amigo. O endereço electrónico não era conhecido, não fazia parte da sua lista, e era mais do que evidente que se tratava de alguém que se devia chamar Cipriano; mas não conhecia nenhum Cipriano, a não ser o do seu conto.
Decidiu não levar o caso muito á sério.

Valdemar gostava de escrever de manhã, por vezes começava pelas sete da manhã a sua faina literária.
Abriu o computador. Leu novamente a mensagem do “Messenger” sem deixar de sorrir com o texto. Recomeçou a escrever:

«Quando Jorge entrou em casa do irmão, por volta das 11 horas, Maurício só berrava, gesticulava com o filho, pouco faltava para lhe bater. Jorge nunca tinha visto o irmão naquela desenfreada berraria. Jorge viu que escolhera mal o dia para ir visitar o irmão. O dia era propício, porque era o feriado de 15 de Agosto e também aproveitava para almoçar com o irmão, com a cunhada e com o sobrinho. A cunhada gostava de presentear Jorge com uns almoços. Constava entre os familiares que ela tinha um fraquinho desde jovem por Jorge, mas Maurício foi mais arrojado e o irmão foi arredado do caminho do amor.
 - Mas o que se passa? - perguntou Maurício em voz sussurrante à cunhada.
 - Não precisas de falar baixo – disse Maurício exaltado.- Este energúmeno, este borra-botas, este pulha, este ‘sei-lá-o-quê’, deu um desfalque no emprego onde trabalhava. Vê lá Jorge como eu me sinto, eu, que sou uma pessoa honesta e que sempre viveu cumprindo com as suas obrigações, ter um filho que é um ladrão.
       - Mas, pai, eu...- gaguejava Cipriano.
      - Nem eu, nem meio eu. Vais primeiro devolver o dinheiro ao teu patrão e humildemente, que é como nós te ensinamos, pedir desculpa, ou melhor, perdão, pelo que fizeste e é já!- disse o pai.
      - Nem penses. É o que faltava, não vou nem nunca irei. Aquele ‘gajo’ passou a vida a explorar-me. Este dinheiro é meu por direito. Aquele ‘gajo’ não me vai pôr mais o olho em cima. Vou aproveitar o convite do meu amigo Bernardo e vou até ao Algarve. Talvez arranje lá emprego e se isso acontecer nunca mais me vão pôr olho em cima.»

         Já era uma da tarde quando a esposa de Valdemar o chamou para o almoço.
        Preparava-se para desligar o computador quando repara que tem uma nova mensagem no “Messenger”.     Abre-a.
   
    “Meu caro escritor. Paresse que continuamos na mesma. Vocemesse passa a bida a contar a istória à sua maneira, e não a berdade. Antes que nos xatemos veja se não inventa, e eu não sou para vrincadeiras. Cipriano-F

        Valdemar ficou vermelho de raiva. Isto não poderia estar a acontecer. Era ele o escritor. Era ele que dava o  rumo a história, inventando, dentro de uma lógica por ele concebida, os acontecimentos que a sua personagem iria viver. Não podia permitir intromissões no seu trabalho por parte de ninguém. Mas quem era este «alguém»? Um amigo brincalhão, um internauta que entrou no seu computador e está a tentar a estragar o trabalho. O Cipriano, inventado, esse é que não podia ser, era no mínimo surreal e para mais só escrevia as mensagens com erros de ortografia.
      Mas sempre que fazia um capítulo da vida deste homem, havia sempre uma mensagem que aparecia. Em todos os capítulos que foi escrevendo: do AVC da mãe do Cipriano; da tatuagem que Cipriano fez no braço; o reencontro com o seu ex-patrão; a zanga com a namorada em que o filho levou um “enxerto de porrada”; quando foi trabalhador por conta de uma “máfia do leste” no estrangeiro; a fuga do cativeiro com um companheiro; o jantar na casa de uma condutora que teve um acidente e que Cipriano foi testemunha e tirou-a de apuros; a viagem ao Algarve em que foi preso por suspeita de um assalto a uma caixa multibanco, mas foi solto por se ter demonstrado que não tinha nada a ver com o acontecimento.
       Valdemar Souto andava desesperado, já não conseguia dormir em condições. Em sonhos aparecia-lhe a cara do Cipriano, com os olhos arregalados e a fazer ameaças. Acordava encharcado em suor, com vómitos, uma coisa horrorosa. O problema é que não sabia como dar a volta ao assunto. Desistir do conto? Satisfazer as pretensões do Cipriano? Não. Isso era violar o direito ao livre pensamento. E fazer a vontade ao Cipriano, quem quer que ele fosse, era uma derrota e ele não gostava de perder.
        De repente, uma luz iluminou a sua mente: sabia como resolver o problema e tinha a certeza que ia ser eficaz. Sentou-se na cadeira frente ao computador e começou a urdir a trama.
 
     “Bernardo, o condutor do TIR, ia regressar no dia seguinte ao Porto e avisou o Cipriano do facto.   Perguntou-lhe a que hora ia, porque já estava farto do Algarve, de tudo o que lhe tinha acontecido e aquelas terras não eram para ele, trabalhava-se muito, preferia o Alentejo, ou melhor, a casa de sua mãe; aí, sim, é que era vida.
    Na hora e sítio combinados, lá estava Cipriano com os seus parcos haveres pronto a seguir viagem.
          - Bom dia Cipriano. Tudo bem? - perguntou Bernardo.
         - Melhor que bem, óptimo. Já eram horas de voltar a casa – respondeu Cipriano.
       - Por acaso hoje não estou assim muito feliz. Ontem à noite meti-me nos copos e dormi mal ‘pra carago’.   
        - Tou com um sono!
        - Comigo não podes contar. Não sei guiar esta ‘choldra’ - esclareceu Cipriano 
        - Não há problema. Se tiver sono, paramos e durmo um pouco. A chatice é que amanhã
          tenho de voltar para baixo e por isso não posso parar muito tempo.
        E a viagem começou na melhor harmonia, com bom tempo, com Cipriano a contar as suas      desventuras, enquanto Bernardo, já farto de o ouvir, cabeceava com sono.
        - Bernardo, não será melhor parares, estás com sono? – disse  Cipriano.
        - Isto passa. Em Alcácer do Sal fazemos uma paragem - respondeu Bernardo.
        Atravessavam o Alentejo e o calor apertava. Cipriano não resistiu e adormeceu.
       Bernardo fazia um esforço tremendo para chegar a Alcácer sem adormecer. Mas bastou uma fracção  de segundo e Bernardo adormeceu, bateu com a cabeça no volante e o TIR, que rolava a uma velocidade razoável, descontrolou-se e bateu no separador central;  entretanto Bernardo acorda,  tenta endireitar o TIR, mas o “bicho” não correspondeu aos seus desejos, bateu novamente no separador central e capotou sobre a via contrária.
        Os bombeiros, a polícia e o 112 apareceram com a rapidez que tais momentos justificam.
 Foi preciso desencarcerar o Bernardo, que já se encontrava sem vida. O Cipriano tinha sido cuspido   da viatura e encontrava-se na berma maltratado, inconsciente. Os socorristas, com extremas cautelas  e habilidade, colocaram Cipriano na maca. O médico disse que estava vivo, mas num estado que  inspirava muitas reservas. Tinha fracturas múltiplas e provavelmente hemorragias internas, só no hospital e é que podiam diagnosticar o seu estado real.”

   Valdemar Souto parou de escrever. Iria terminar o seu conto deste modo? Não. Ia aguardar.
        Com os olhos pregados no monitor, aguardava a cada momento que aparecesse uma mensagem. 
       Mas nada. Uma hora, duas horas..., adormeceu... Acordou passado cinco horas e de mensagens nada. Riu-se  interiormente, afinal o Cipriano tinha sido derrotado neste jogo “mensageiro”.
      A esposa veio ter com Valdemar ao escritório, preocupada, porque o marido não tinha ido à cama. Valdemar disse que não se preocupasse porque estava óptimo e tinha vencido uma batalha. Dá-me o pequeno-almoço que estou com uma fome que comia que nem um Cipriano.
 Sentou-se à mesa, não era muito usual, mas nesse dia o Jornal de Notícias estava pousado à sua frente. Despertou-lhe a curiosidade esse facto. Abriu o jornal e na primeira página, não como notícia principal, havia a referência a um desastre de um TIR na A2 perto de Alcácer do Sal. A notícia, circunstanciada, vinha na página 12. Não esperou nem um segundo, folheou o jornal e reteve-se na página referida.

     «Na A2, perto do desvio para Alcácer do Sal, um TIR, carregado, despistou-se, embateu no separador central e capotou. Para além do condutor, de uma firma transportadora do Porto, um homem de 37 anos, que foi identificado como sendo Bernardo de Sousa, teve que ser desencarcerado e foi retirado sem vida. Deixa mulher e dois filhos pequenos. Para além do condutor, vinha também um outro indivíduo, que aparentava ter 40 anos, que foi cuspido da viatura e retirado da vala onde foi parar em estado muito grave, sendo transportado de helicóptero para o Hospital de São José, em Lisboa. Não tinha qualquer identificação e aguarda-se a qualquer momento que seja identificado. O trânsito esteve interdito na faixa de rodagem na direcção norte-sul durante mais de três horas.»
 
        Valdemar Souto pousou o jornal e nem queria acreditar no que tinha acabado de ler.
    
        PS – Foto-robot de Cipriano F.    

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Mudar de Vida de António Alvarez


Deitado na cama olhava a janela onde surgiam os primeiros raios matinais. Não dormira quase nada e sentia o corpo todo dorido. Por isso deixava-se estar naquela serena madorna. Além disso o barulho também chegara cedo com a azáfama de mais um dia.
...
- Hoje não irei trabalhar!... – Pensou relaxadamente. Ao fim de tantos anos de trabalho naquele escritório a ver as mesmas caras diariamente sentia um prazer quase “arrepiante” de não ter que ver aquele cenário uma vez mais. Repuxou a manta e afagou a cabeça na almofada…
...
Depois dum pequeno-almoço que lhe soubera maravilhosamente bem saboreava agora o primeiro cigarro do dia. Caminhava placidamente, ao ar livre, olhando os outros à sua volta. Gostava de o fazer e não ser interrompido por alguém conhecido. Muitas vezes dera consigo a imaginar-se a viver numa ilha deserta. Como naquele filme do Tom Hanks… Não conseguia lembrar-se do nome. – Ah! – Recordou-se de repente - CastAway. Tinha sido um filme que o fascinara bastante. Chegara até a imaginar-se de barba grande, todo esfarrapado e a olhar aquele mar azul transparente à sua frente. Comeria, como ele fizera, frutos que conseguira apanhar e pescar com um artefacto como ele criara. Nada de computadores, telemóveis, trânsito, contas por pagar enfim… só ele ali na ilha deserta. E mulheres? – Lembrou-se – Que se lixe!… Já tenho a minha conta.
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Tinha pegado num livro que há muito tempo andara para ler. Olhou a capa e fixou a imagem reproduzida. Lembrava-lhe a imagem do filme com o Henry Fonda que vira uma vez num cartaz de cinema. Comprara aquele livro num alfarrabista por € 3,00 – “As Vinhas da Ira”. Impressionara-se com a imagem. Achava-a parecida com um dos desenhos do Álvaro Cunhal - Na certeza também ele lera aquele livro - Pensou. Sentou-se no banco corrido onde já se encontrava um outro individuo, mais ou menos da sua idade, entretido a ler um jornal. Se calhar também ele não lhe apetecera ir trabalhar. Abriu o livro e foi lendo serenamente. Não tinha pressa alguma em terminá-lo. Queria-o “compreender” na sua plenitude. Já ouvira falar do seu autor – John Steinbeck – um americano. Na capa em baixo dizia que aquele obra fora galardoada com o “Prémio Pulitzer”. Parou um bocado de ler e deu consigo a pensar quem seria Pulitzer – Deveria ser americano por certo… ou se calhar não!... -  
...
Olhou para o relógio e vendo as horas sentiu, quase de imediato, “um ratito” na barriga. Estava na hora do almoço. Levantou-se, colocou o livro debaixo do braço e caminhou vagarosamente. Queria ainda fumar uma “cigarrada” antes do almoço…
...
Em frente à televisão assistia, com uma atenção especial, à reportagem que o telejornal da TVI transmitia. O assunto abordado tinha a ver com a “recessão da económica mundial” – assim dissera o jornalista – e com a actual conjuntura do país.Os entrevistados eram de vários extractos sociais e a repórter aparecia a entrevistar pessoas tanto do campo como das grandes cidades.Curiosamente achava que as mulheres expunham as suas opiniões mais abertamente. Achara que os homens tinham tido mais cuidado com o que diziam… sobretudo os das grandes cidades. Nos do campo essa diferença não era tão notória assim…
...
- O que é que achas disto? – Perguntou-lhe uma voz vinda detrás. Voltou a cabeça e viu que o seu interlocutor não era alguém que conhecesse. Tratava-se de um individuo vestido algo modestamente e com uma cara de “poucos amigos”. Parecia igualmente já estar um pouco embriagado.
- Sei lá!... – Respondeu-lhe secamente para não lhe dar aso a grandes conversas. Chateava-o estar concentrado numa coisa e que alguém o interrompesse. Geralmente, aquela hora, poucos eram os frequentadores daquele espaço e por isso tinha resolvido ir até lá. Não tornaria lá de novo… levantou-se e saiu de mãos nos bolsos. Cá fora a chuva miudinha caia. Subiu as abas do casaco e seguiu em passo apressado… com receio que o outro ainda viesse atrás dele aborrecê-lo com perguntas “chatas”…
...
A água morna tombava sobre a cabeça. Abrira a torneira do duche com pouca pressão. Apenas queria estar ali debaixo e lavar-se exteriormente e… interiormente. Sobretudo interiormente. Lavar e limpar a mente de uma vez por todas. Esquecer… isso mesmo esquecer!...
...
Escovou os dentes com a precisão de um autómato. Tinha um cuidado especial com a sua higiene oral. Como se costumava dizer: “Pela boca morre o peixe” e acrescentou para si: “e os homens também”. Era um dos seus tiques aquela preocupação de ter uma boca sã. Muitas vezes se lembrava da mãe o chamar à atenção para aquele hábito. E passados uns anos, mais do que um hábito, tornara-se quase numa obsessão. – Obsessão ou mania? – Questionou-se. – É quase a mesma coisa… - Também pode ser tara!... – Olhou-se fixamente no espelho da casa de banho e fez uma careta para si. – Tchi!… És feio pra burro. Arrumou cuidadosamente o copo e a escova e dirigiu-se para a cama. Apesar de não ter muito sono apetecia-lhe deitar-se. Ouvia as gotas da chuva que caíam no beiral da janela. E embalado por aquele som foi adormecendo suavemente.
...
- Qual é o seu nome completo?
- José Miguel Nunes Pereira da Silva.
- Idade?
- 47 anos.
- Profissão?
- Técnico-Administrativo.
- Há quantos anos trabalha na firma “Manuel Bernardes & Filhos, Lda.”?
- Fiz 24 anos no dia 12 de Setembro.
- Porque é que a partir dessa data nunca mais compareceu ao serviço?
- Porque… porque não me apeteceu!... – Respondeu desdenhosamente.
...
Ajeitou o chapéu e compôs a gravata. Achou-se vestido a preceito. Caminhou lentamente por entre a multidão compacta que o rodeava. Nada ouvia a não ser a sua voz interior. Alguém lhe abriu a porta de par em par e ele encaminhou-se resoluto em direcção à cadeira…
...
Abriu o jornal e leu a notícia palavra a palavra:
“O tribunal da Boa-Hora, condenou esta 2ª feira, a 25 anos de prisão José Miguel Silva acusado do homicídio em 1º grau de Manuel Bernardes dono e gerente da firma“Manuel Bernardes & Filhos, Lda.”. O autor do violento assassínio confessou ter perpetuado o crime em virtude do patrão o ter ameaçado despedir por ele se recusar a assinar um novo contrato de trabalho. Segundo o mesmo, com a assinatura desse novo contrato, “perderia todas as regalias de toda uma vida de trabalho dedicado”. O autor confesso vai cumprir a pena no estabelecimento prisional de Alcochete”.
Fechou o jornal e deitou-se suavemente na cama… da cela 253.

FIM

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

MEMÓRIAS DE CRISTALEIRA de Helena João


Sou um copo de vinho do Porto, único sobrevivente de um conjunto de copos de cristal da Atlantis que a minha actual proprietária herdou da avó.
Nasci no ano de 1944, numa das primeiras fornadas que a fábrica da Atlantis, outrora com outro nome, fabricou. A minha família mais chegada era composta por doze copos de água, doze de vinho, doze de Porto e doze taças de champanhe.
Recordo-me, como se fosse hoje, da emoção que sentimos ao sermos embalados sem sabermos ainda ao certo o nosso próximo destino. Ditou a fortuna que fôssemos parar a uma abastada família portuense - pai, mãe e três filhos pequenos - como prenda de anos de casados. Esmiuçados, em busca de algum defeito de fabrico, pelas mãos da senhora, passámos todos. Depois fomos lavados, secos e carinhosamente expostos na cristaleira.
Naquele tempo saía da cristaleira, juntamente com os meus companheiros, uma vez por semana, aos domingos. O domingo, dia de celebrar as refeições em família, era esperado por todos nós e pelos humanos da casa, com ansiedade. A azáfama da senhora, que fazia questão de preparar pessoalmente a refeição desse dia, era contagiante. De manhã bem cedo ela punha a mesa criteriosamente. Em cada lugar eram alinhados todos os pratos, todos os copos e todos os talheres possíveis de serem usados durante uma refeição. Ficávamos, assim, expostos num palco privilegiado para assistir aos acontecimentos. A pouco e pouco iam chegando os restantes familiares. Doze elementos ao todo. Seis adultos e seis crianças.
Por ser um copo de vinho do Porto, só era usado no final da refeição e podia permanecer, durante todo o tempo que esta durava, em cima da mesa. Ah, como eu gostava de observar os convivas, ouvir as suas histórias e as suas gargalhadas. Os meus companheiros iam sendo retirados da mesa à medida que a refeição avançava.
Eu não. Ficava sempre até ao fim. E na hora de sermos lavados, mais uma vez a senhora chamava a si essa tarefa. Mesmo quando, mais tarde, surgiu a primeira máquina de lavar louça da casa. Ela fazia questão de nos lavar à mão. «A máquina estraga o cristal», dizia. «Tira-lhe o brilho.»
Os anos foram passando e, excepção feita aos mais pequenos da família, fui útil a todas as pessoas. Mas gostava mais quando ficava ao serviço da senhora. Sempre me senti apreciado quando as suas mãos, que com o passar dos anos se tornaram nodosas, mas sempre gentis, me agarravam pelo pé. Os olhos dela penetravam no âmago do meu cristal e sentia que, por mais excelente que o vinho fosse, este sabia-lhe ainda melhor bebido através de mim. Lembrança desse ano longínquo, em que eu fora prenda por ocasião feliz, talvez. Lentamente, com o passar dos anos, os meus companheiros foram sendo partidos, escanados, estilhaçados... No fervor do convívio humano, foram sucumbindo, ao longo de mais de seis décadas de uso, até restar apenas eu. Sim, agora sou só eu. Já quase não saio da cristaleira. Sem os companheiros necessários para adornar uma refeição cerimoniosa, já não me põem na mesa. Apenas me retiram para limpar a prateleira ou quando à minha nova dona apetece um solitário Porto, ao final da tarde. Mas não me sinto pouco apreciado, não. Antes pelo contrário. Acho que, nessas alturas, ela sente saudades da avó e é por isso que me escolhe. As nossas vidas são diferentes e, no entanto, há um laço indelével que nos une. Ambos somos frágeis, quebráveis, mortais. Sobre ambos pesa o fio do tempo. E ambos partilhamos um ponto na origem das nossas existências. Somos, afinal, da mesma família. Nesses finais de tarde, juntos fitamos o vazio e viajamos para lugares distantes, só nossos.