segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O Regresso de António Alvarez



Abrigado num beco escuro e malcheiroso, sentia o frio enregelar-lhe o corpo. Até um cão se lhe juntara aos pés.

Tudo lhe parecia estranho à sua volta. Outros como ele encontravam-se por ali embrulhados em cobertores e com caixotes de papelão a fazerem de «quarto».

Não se lembrava como chegara até ali. Vagamente recordava uma discussão que tivera no emprego com o seu chefe. Depois tudo se passara muito rapidamente.

A discussão em casa com a mulher e o olhar «triste» dos filhos. Simplesmente abalara «porta fora» e andara sem parar pela cidade. Chorara de raiva pela situação e por tudo o que iria perder: a família, os amigos e o aconchego do lar.

Por mais que pensasse, tudo lhe parecia algo surrealista. Ele considerava-se um homem calmo e de bons costumes. Sempre cumprira com todas as suas obrigações, quer como marido, quer como pai, e sem nada a apontar como trabalhador.

Ainda há uns dias tinha tido uma conversa com o Zé Maria, amigo de infância, acerca da sua experiência de vida. Tinha vindo da «santa terrinha» para a capital para trabalhar na mercearia do «padrinho». Subira a vida a pulso e até conseguira estudar de noite e tirar o Curso Comercial na Veiga Beirão.

– Pois é como te digo Zé Maria, a vida para mim não foi fácil, mas consegui!

As imagens da aldeia, enquanto criança, surgiam-lhe, agora, com uma nitidez como se tivessem ocorrido ainda ontem. A família toda reunida à volta da lareira contando histórias de «lobisomens», de «mouras encantadas» e até de «almas penadas». Naquelas noites de Inverno, em que a neve caía lá fora, comiam-se castanhas e desfilavam-se histórias de gerações passadas.

Lembrava-se da cara do avô quando o chamava para ir com ele tratar das ovelhas e das cabras. Uma cara de alegria estampada num corpo já tolhido dos frios de invernos passados. Da avó lembrava-se do pão quentinho a sair do forno.

«– Que bom aquele cheirinho!…»

«Fincava» agora o olhar no rapaz que colocava os últimos enfeites no candeeiro do outro lado da rua… que lhe importava isso… ia ser «Natal» mas não para ele. Puxou mais para cima o cobertor a tentar cobrir as orelhas… a borra do cigarro tombara no chão… soprou-a para longe não fossem as «parcas» vestes queimarem-se.

Passavam as pessoas com os sacos cheios de embrulhos e caras risonhas, miúdos pela mão com balões a dizerem «FELIZ NATAL».

Achou que já eram «horas» de se levantar. Devagar embrulhou os cobertores em forma de «trouxa» e abalou rua fora, em passo de quem a vida já nada lhe pode dar.

Entrou num café e as pessoas abriram-lhe espaço no balcão…

– Não tenham medo que eu não mordo! – ninguém lhe respondeu ou fez algum comentário, só o empregado perguntou com cara de «poucos amigos»:

– O que é que quer?

Meteu a mão no bolso a remexer nas moedas que tinha e respondeu:

– Um copo de leite e – olhou para a vitrina dos bolos – aquela bola-de-Berlim que está ali a rir-se para mim.

– Sabem que dia é hoje? – questionou em voz alta a «assistência». Mais uma vez o silêncio foi a resposta.

– Eu digo-vos: hoje é véspera de Natal! – alguns dos presentes, «incomodados», começaram a sair. – E eu vou ter com «ele» – apontava para a televisão que apresentava na altura um «Pai-Natal» a distribuir brinquedos aos miúdos. – Também eu já fui assim como aqueles putos. Parece impossível, não é?

– Ó amigo vamos lá a despachar que as pessoas não querem saber aquilo que você foi ou deixou de ser – disse-lhe o empregado.

– Ok, eu vou-me já embora, não se preocupe.

Tirou algumas moedas e pô-las em cima do balcão.

– O resto é gorjeta.

Saiu «porta fora» e pensou:

«– Vou ver o rio.»

Os cacilheiros «derramavam» sobre o cais muito pouca gente, ao contrário do que era habitual. Do Cais das Colunas olhava o rio, as gaivotas, Cacilhas lá do outro lado…

«– Está na hora» – pensou. Caminhou em direcção ao Cais do Sodré, sempre «rentinho» ao rio e, falando baixinho:

«– Senhor, eu sei que nem sempre fui ‘boa peça’, mas já não consigo aguentar mais.»

Comprou um bilhete para Cascais e dirigiu-se para a linha correspondente. Avançou até ao fundo do cais. Ali o comboio ainda viria com a «velocidade» certa.

Acordou estremunhado. Estava deitado numa cama. Pareceu-lhe ouvir vozes conhecidas.

Levantou-se, abriu a porta num repente e gritou:

– Feliz Natal!

As caras da mulher e dos filhos apareceram «espantadas» à porta do corredor…

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

AS PINTURAS DE UMA VIDA


Quando os primeiros raios de sol do dia que despontava ameaçavam entrar pelas frestas das persianas do atelier de pintura, Miguel Ângelo parou de trabalhar. Tencionava acabar a pintura, pelo menos no essencial, deixando os retoques finais para quando regressasse de Nova Iorque, onde pensava passar o Natal na companhia dos tios.

Fechou-se no atelier, equipado com uma iluminação especial que substituía a luz natural, já nem se recordava, se um, dois, ou mais dias, como era seu costume quando tinha uma obra em mãos e se aproximava do seu epílogo, e só a tia Eva é que entrava para lhe trazer, com muito carinho, algo para beber ou de comer; ninguém mais se atrevia a importunar o pintor.

Os progressos que o sobrinho vinha a fazer na pintura alterava o humor da tia, até que só de relanço conseguia olhar para o quadro. Miguel Ângelo pensou que a tia não estava a gostar desta sua obra, não compreendia esta atitude, ela que era uma fanática incondicional pela sua pintura, talvez a tia não andasse bem de saúde, teria de dizer ao médico de família para a ver. Deslizou a cadeira de rodas para junto da enorme janela e correu a persiana para deixar entrar a luz.

O quadro era uma paisagem campestre; uma casa de campo, invadida por trepadeiras que adornavam as fachadas, um alpendre com tecto de madeira, um celeiro, uma eira onde se adivinhava uma noite de desfolhada, uns instrumentos de trabalho rurais abandonados depois de um dia de árdua labuta, um moinho de vento com um cata-vento a encimá-lo, virado a norte, como a dizer que o bom tempo ia continuar, e um velho carvalho de enormes proporções junto a um riacho que serpenteava perto da casa. A pintura tinha aquela luminosidade quente dum pôr-do-sol de Outono. A contemplar esta calma paisagem, estava sentado, de costas, numa pedra, um velho, vestido de preto. Apoiava as duas mãos sobre um cajado e sobre elas o queixo, ligeiramente inclinado, o velho contemplava o cenário.

Miguel Ângelo deslocou a cadeira de rodas, sua companheira de há trinta anos, para o centro da sala. Um acidente rodoviário tornara-o paraplégico. O porquê deste acidente, as condições em que se deu, nunca lhe foi devidamente explicado, nas muitas tentativas que efectuou ao longo dos anos para saber a verdade. Algo de estranho havia neste acontecimento; mesmo passados tantos anos, vinha-lhe à memória, de uma maneira muito vaga. Recorda-se de ouvir um barulho enorme e estranho, gritos e pessoas a correrem, uma sirene de ambulância, umas pessoas de branco, deviam ser enfermeiros, não sentia o corpo, falavam com ele, mas não conseguia falar, sentia o sabor dum líquido estranho na boca, que devia ser sangue, muitas luzes, e depois desmaiou. Acordou numa cama de hospital, com os tios, o médico e uma enfermeira à volta da cama. Lembra-se de ter chamado pela mãe, mas ninguém disse nada, depois pelo pai, mas igualmente não obteve resposta. Depois, a sua memória não registou mais nada. É tudo que se lembra do acidente.

A tia veio-lhe dizer que o Dr. Mário de Sousa, o advogado da sua firma, queria falar-lhe. Miguel Ângelo disse para que ele entrasse.

O advogado entrou na sala e cumprimentou o pintor.

– Você não descansa? Ainda acaba por adoecer – disse

– Tem razão. Tenho dedicado muito tempo a este quadro – respondeu.

Mário de Sousa começou a observar a pintura, e algo lhe pareceu familiar.

– Aonde é que se inspirou para fazer este quadro?

– É fruto da minha imaginação. Tenho esta paisagem na minha memória desde sempre. Acha estranho?

O advogado continuava a observar o quadro, deslocava-se de um lado para outro, ora aproximava-se, ora distanciava-se, cruzava e descruzava os braços, colocava a mão no queixo numa atitude de meditação.

– Acha estranho? – perguntou de novo Miguel Ângelo

– Não. Só que parece que já vi este quadro! – disse o advogado.

– Não me faça rir. Está a dizer que estou a plagiar um colega.

– Não. Não quero dizer isso. Mas digo-lhe francamente que diria que já vi uma pintura parecida em qualquer sítio – afirmou a medo. – Diga-me aonde, porque eu quero ver – disse a rir-se.

– Claro, claro. Devo estar enganado, deve ser algo mesmo muito parecido – rectificando a sua opinião.

Sente-se e diga-me novidades – disse Miguel Ângelo.

O advogado sentou-se mas ainda ficou breves momentos a olhar para o quadro.

Miguel Ângelo McWhistler Lencastre era filho único do engenheiro Jorge Lencastre, industrial, e de Mary Anne McWhistler, professora, de ascendência escocesa. Depois de passar pelas Belas – Artes e tirar o curso de Pintura, com brilhantes notas, estagiou em Paris e Nova Iorque, aderindo muito cedo ao impressionismo. Como Manet, deixou-se fascinar por Velásquez, de Degas recebeu o sentido da composição e a serenidade do conjunto, mas foi de Monet que conseguiu a harmonia das cores que as suas paisagens, que compreendia a maior parte das obras do seu acervo artístico, se transformavam em verdadeiras sinfonias de cor. Ângelo McWhistler, era assim que gostava de ser conhecido no meio artístico, para o associarem ao do pintor impressionista que antes da I Guerra Mundial gozou de grande estima na Europa e do qual era um fervoroso adepto. Não sabia se o apelido tinha qualquer ligação com o referido pintor, nunca procurou saber talvez por falta de curiosidade ou mesmo com medo de vir a concluir que era somente uma coincidência. Como pintor os seus quadros sempre foram muito apreciados e atingiram, desde muito cedo, cotações muito altas.

O destino proporcionou dedicar-se ao comércio da arte, outra componente da sua vida profissional, revelando-se também, e desde muito cedo, um hábil e conhecedor do negócio e, como andava sempre rodeado de experts na matéria, a subida no mundo dos negócios foi fulgurante. Era reconhecido pelos seus pares como um dos melhores negociantes de arte mundiais. Se no princípio a sua fortuna pessoal, que recebeu de seus pais quando atingiu a maioridade, tutelada até essa altura pelo seu tio, foi importante para atingir o sucesso, agora o dinheiro que recebia das galerias de arte e das suas pinturas tornou a sua vida ainda mais fácil, sem dificuldades, se é que algum dia as teve.

Desde o desastre que vitimou os seus pais e ele sobreviveu, apenas com 3 anos, ficara paraplégico e por tal motivo continuava a viver com os tios, não por necessidade material, mas por evidente necessidade afectiva. Possuía várias galerias de arte. Começou por ter uma no Porto e outra em Lisboa, mas por influência do seu amigo pintor Michel Julien, que conhecera em Paris quando de um estágio que fez num atelier em Montmarte, atravessou fronteiras e abriu uma galeria no sul de França, em St. Paul de Vence, terra de artistas, por conselho do amigo, um local ideal para mostrar e comercializar as suas pinturas, onde ia amiudadas vezes não só para ver como ia a galeria mas para se instalar na Hospedaria La Colombe d’Or, que fora ponto de encontro de celebridades e que tinha também como suas referências, casos de Picasso, Chagall e Matisse.

Era uma noite de um fim de verão, quente, perfumado dos cheiros típicos duma desfolhada. Na eira, na quinta de uns amigos dos tios que os convidaram, amontoavam-se as espigas prontas a serem despidas da folhagem. As pessoas falavam alto, riam-se e preparavam-se para o acto campestre, numa alegria própria do momento. A concertina do Ti Manuel enchia a noite e os rapazes e as raparigas sentavam-se ao redor da eira, os mais velhos colocavam-se estrategicamente para receber, se a sorte os bafejassem, o beijo do milho-rei.

O criado empurrou a cadeira de rodas de Miguel Ângelo para junto da eira, colocando-o num sítio em que pudesse facilmente participar da festa. Alguns rapazes aproximaram-se dele dando-lhe umas palmadas nas costas à guisa de cumprimento, o que lhe deu uma certa satisfação. Uma rapariga de nome Júlia aproximou-se, cumprimentou-o dum modo infantil, apesar dos seus 16 anos. Andara com ela na escola e já não a via há muito tempo. Estava emigrada com a família em França, e a mesma decidira vir passar as férias a Portugal. Quando miúda e colega da quarta classe, sempre foram muito chegados. Como Miguel Ângelo estava impossibilitado de participar nos jogos de futebol, do “passa” ou do “mata”, ficava junto dele a conversar ou simplesmente a ver os outros a brincar.

Recordaram esses tempos, de coisas simples e fúteis, que é o que se proporciona estes encontros de circunstância. Falaram do que faziam e do que não faziam, dos gostos, dos projectos de vida, e, quando a conversa se esgotou, inevitavelmente falaram do tempo, que é muito diferente do que faz em França, dizia ela.

As espigas saltavam entre as mãos dos moços e das moças perante o olhar atento dos mais velhos. Um grito soou na noite – milho-rei! – Júlia tinha-o desfolhado.

Era da praxe dar o beijo. Distribuiu beijos pela roda dos presentes e, quando chegou a vez de Miguel Ângelo, o beijo foi mais na boca que na face, o que lhe provocou um bater descompassado do coração. Júlia não enrubesceu mas também não ficou indiferente ao acontecimento. A partir dessa noite, passaram a vê-los muitas vezes juntos, a conversar no jardim perto da casa, no café, junto ao rio, em passeios pelo bairro, nas mais diversas circunstâncias.

Júlia simulou uma doença para não regressar com os pais a França, convenceu-os a deixá-la ficar em casa dos avós até estar em condições de fazer a viagem. Contrafeitos, os pais abalaram para a “estranja”, ficando Júlia entregue aos avós e aos amores de Miguel Ângelo. Pouca gente ou mesmo ninguém compreendia a razão desta paixão de Júlia pelo menino rico, ou fosse somente isso que era compreensível; o facto de ele ser herdeiro duma fortuna. Para Miguel Ângelo não lhe passava pela cabeça que essa fosse a razão por que Júlia não fora com os pais. Para Júlia, apesar de ele ser rico e ela pobre, não era impeditivo dos dois se gostarem. O facto de ele ser um deficiente físico e ela uma rapariga bonita e saudável era algo que as pessoas não compreendiam, principalmente os jovens que “arrastavam a asa” a Júlia.

Os avós de Júlia não encaravam bem o romance entre os dois, e, sempre que podiam, colocavam entraves à relação. Inventavam coisas para ela fazer, questionavam-na quando é que pensava regressar para junto dos pais, até conseguiram transporte gratuito para França com gente emigrante conhecida e de confiança. Perante as constantes investidas dos avós, Júlia passou a refugiar-se, quando não estava com Miguel Ângelo, no seu quarto, melancolicamente e só se encontrava com os avós às refeições.

Começou a ter febres e mal-estares preocupantes que o médico confirmava, mas não entendia, mandou fazer umas análises, que Júlia, por razões estranhas, adiou, argumentando motivos fúteis para não ir à clínica.

Por sua vez, Miguel Ângelo vivia este amor intensamente. Não pensava noutra coisa senão estar com Júlia, deixou-se até de se interessar pelo seu hobbie preferido, a pintura. Mas a situação começou a piorar; os avós de Júlia passaram a proibir as saídas, porque o médico dizia que não era aconselhável, e os recados enviados por Miguel Ângelo não lhe chegavam. Até que uma manhã, quando a avó entrou no quarto, estranhando o facto de ela se encontrar ainda deitada, aproximou-se da cama e reparou que ela dormia, mas a sua cara estava muito pálida. Abanou-a, uma, duas vezes suavemente e Júlia não acordava, depois com mais impetuosidade e o resultado foi o mesmo. No chão, junto à cama, caído, encontrava-se um frasco vazio de um barbitúrico. Júlia tinha cometido voluntariamente, ou não, um acto desesperado, irreflectido que talvez lhe custasse a vida. Foi levada para o hospital, mas o médico de serviço, muito amigo dos pais de Júlia, veio informar os avós que ia fazer o que fosse possível, mas não garantia nada. Algo correu mal, não era previsível que o caso tivesse um desenlace inesperado.

Quando contaram a Miguel Ângelo o triste acontecimento, este chorou, gritou, insultou meio mundo, entrando num estado de desespero. Os tios chamaram o médico, que lhe ministrou uns calmantes que o deixaram adormecido. Não a deixaram ver e muito menos assistir ao enterro. Constou-lhe que ao enterro só foi permitida a presença dos avós, os pais não se deslocaram de França, só mais tarde vieram para visitar a campa, situação estranha e que foi alvo de muito crítica da gente da terra, profundamente religiosa.

A este choque emocional, Miguel Ângelo respondeu inicialmente com uma apatia preocupante, seguido de um ataque frenético de criação artística. Passou a dedicar-se ao seu hobbie de um modo entusiasmado. Pintava horas e horas a fio, sem parar, pedia telas, tintas, pincéis e tudo isto, e os tios proporcionavam-lhe tudo. Miguel Ângelo olhou através das frinchas das persianas a neve que caía sem cessar por entre os arranha-céus de Nova Iorque e as sirenes dos carros dos bombeiros e da polícia que não deixavam de se ouvir.

A cidade estava profusamente iluminada, movimentada como sempre, e as pessoas deslocavam-se de um lado para outro nas habituais compras de Natal. Aficionados do exercício físico, alguns já não muito jovens, deslizavam de patins em linha, desafiando as leis da gravidade, enquanto outros na pista gelada do Wollman Rink do Central Park, que avistava do apartamento do hotel, que teve de recorrer para estas férias, pelo facto do seu flat estar em obras, treinavam passes e figuras de estilo. Gostava muito daquela época do ano, a cor, os sons, os cheiros da Big Apple. Quando tinha oportunidade não se furtava de vir a Nova Iorque. Este ano proporcionou-se trazer os seus tios que sempre ao longo da sua vida se dispuseram a acompanhá-lo, sempre que ele quisesse, não pelo prazer da viagem, mas somente para não o contrariar, nem que isso os obrigasse a sacrifícios pessoais. Como Miguel Ângelo não tinha dificuldades económicas, a presença dos tios proporcionava-lhe um certo conforto familiar, pelo facto de não ter tido oportunidade de constituir família.

Embebido no que se passava na rua a uns bons andares abaixo, nem deu pela presença dos tios que entretanto tinham entrado na sala de estar e instalaram-se num sofá junto à lareira. Quando se apercebeu, viu que os tios estavam com um ar de quem queria contar algo, um acontecimento, talvez um segredo. Miguel Ângelo apercebeu-se disso e, facilitando a conversa, perguntou:

– Digam lá o que têm a dizer. Estão para aí com um ar de pasmados. Desembuchem, meus queridos!

Os tios ficaram surpreendidos com a perspicácia do sobrinho e ficaram nervosos.

– Ângelo, o que te temos para contar talvez não vás gostar, mas há muito tempo, mesmo muito tempo, que andamos para te dizer – disse a tia.

– Estou a ver que não vou gostar mesmo! – respondeu.

– Talvez, mas esperamos que compreendas – disse o tio.

Entretanto, entrou na sala o secretário de Miguel Ângelo informando-o que tinha em linha o secretário do mayor de Nova Iorque que queria falar com ele, e que no escritório já se encontrava Mr. John O’Brien, um importante negociante de arte a quem ele tinha marcado uma reunião de negócios para aquela hora.

– Queridos tios, vão-me desculpar, mas esta conversa vai ficar para mais tarde. Entretanto pensem na maneira mais agradável de a contar – disse Miguel Ângelo.

Enquanto percorria a distância que o separava do escritório, Miguel Ângelo sorria por causa das preocupações daqueles dois velhos. Com certeza era mais uma das suas histórias de quem não tem que pensar na vida.

Era manhã cedo quando o telefone tocou. A criada atendeu. Era o Dr. Mário Sousa, que pretendia, com urgência falar com Miguel Ângelo. A criada disse que ia ver se o senhor podia atender.

– Sr. Miguel Ângelo é o Dr. Mário de Sousa, diz que tem urgência em falar com o senhor.

– Eu atendo – disse.

A criada passou-lhe a chamada.

– Sim – disse Miguel Ângelo.

– Bom dia, desculpe estar a falar tão cedo, mas gostava que fosse comigo ver uma quinta que um cliente meu pretende comprar. É um sítio extraordinário e você vai gostar de a ver, e vai saber a razão por que estou a dizer isto, eu passo já por aí. Pode ser?

– Claro. Perante esse mistério todo, não posso resistir – respondeu Miguel Ângelo.

– Então eu estou aí dentro de meia hora. O advogado desligou o telefone.

Pararam o carro junto ao portão da quinta. O advogado tirou a cadeira de rodas da bagageira e abriu a porta a Miguel Ângelo, com a ajuda deste, passou-se para a cadeira. Abriram o portão e percorreram o caminho de terra saibrada que ia até à casa. Um velho, vestido de calças e colete, por cima duma camisa branca, e um chapéu, tudo preto, aguardava-os sentado numa grande pedra, perto da casa. Quando os viu chegar, levantou-se e com grande dificuldade, devido à sua idade e inevitáveis artroses, veio ao encontro de ambos.

– Eu sabia que um dia o menino voltaria – disse o velho.

– Desculpe, não estou a entender – respondeu Miguel Ângelo.

– Eu sei. O menino não me conhece, mas eu conheço-o desde pequenino, e tenho acompanhado o seu sucesso – disse o velho.

– Cada vez estou a perceber menos – respondeu.

– Eu sei. O menino não sabia da minha existência. Mas eu vivo aqui quase desde que nasci, e desde sempre soube que um dia o menino regressaria – disse o velho numa voz que trespassava a emoção.

Miguel Ângelo estava estupefacto com tal acontecimento. Olhou para o advogado como à procura duma explicação que ele pudesse dar, mas o advogado ficou calado, percebeu que ele também nada sabia. Os olhos do velho começaram a lacrimejar. Miguel Ângelo e o advogado começaram a ficar perturbados com a situação. O silêncio que a situação proporcionou foi interrompido pelo velho.

– O menino Ângelo de certeza que nunca ouviu falar de mim, do António, que foi caseiro desta quinta no tempo de seu pai, que Deus lá tenha, pois não? – perguntou.

– Não, nunca! – respondeu Miguel Ângelo.

– O menino não conhece esta casa? – perguntou o velho.

Miguel Ângelo, no inesperado do encontro e da conversa que se proporcionou, ainda nem tinha reparado na casa. Deslocou-se para um sítio do qual pudesse ver melhor a casa, e o velho e o advogado seguiram-no. O que viu chocou-o. A casa que tinha na sua frente era, com algumas insignificantes diferenças, a casa da sua última pintura. Tinha a certeza que era a primeira vez que estava ali, pelo menos desde que se conhece. Todos os outros elementos que constavam do quadro, estavam ali presentes, intactos. A eira, o moinho de vento, até o carvalho estava frondoso. Miguel Ângelo olhava para o amigo admirado. O velho limpava os olhos lacrimejantes.

– Esta casa era do seu avô, e o menino e os paizinhos vinham sempre, no fim do Verão, para as vindimas. Os seus tios moravam todo o ano aqui, apesar terem a casa aonde vivem hoje com o menino, até que se deu aquilo – diz o velho.

– A que se refere? – pergunta Miguel Ângelo, curioso.

– Ao desastre que matou o seu paizinho e a sua mãezinha, e o menino ficou preso nessa cadeira de rodas – diz o velho.

Miguel Ângelo começou a ficar alterado, nervoso, olhou para o advogado, que mostrou perplexidade. O velho continuou:

– O seu paizinho tinha tido uma zanga com o seu tio, e saiu daqui tão mofado, com a sua mãezinha e o menino, que o carro que conduzia com tanta pressa teve um desastre e... o resto é o que o menino sabe.

– E qual foi o motivo da discussão, você sabe? – perguntou

– Na altura só consegui ouvir algumas coisas e, apesar de falarem tão alto, mesmo que não quisesse, tive de ouvir. Mais tarde soube pelo Dr. Souto, que era o advogado da família que me fez algumas confidências, o que se tinha realmente passado.

– Mas por que é que eles discutiram? – perguntou

O seu avô tinha morrido, mas a casa, mesmo antes dele morrer, já não era dele. O seu avô gastava muito dinheiro no jogo e em negócios mal sucedidos. Uma das pessoas a que ele devia dinheiro era o sogro do seu tio, que tinha como única filha a sua tia. Como não podia aguentar mais a situação, o seu tio sugeriu que o seu pai vendesse esta casa com a quinta ao sogro do seu tio, por uma ninharia, para pagamento das dívidas. O seu avô não disse nada ao seu pai do que tinha feito. Quando foram fazer o inventário pela morte do seu avô, o seu pai soube a verdade. Como o sogro do seu tio tinha falecido também, a casa era dos seus tios.

– Então por que é que os meus tios não vivem aqui? – perguntou Miguel Ângelo.

– Eles tinham um filho, o seu primo Artur. Era um moço muito esquisito. Na altura estavam na moda os hippies, ou lá o que era. O seu primo era mais velho que o menino para aí uns quinze anos e gostava muito de si, adorava-o. Quando soube o que pai tinha feito, saiu de casa, disse que ia “pôr umas flores na cabeça” e que ia para América, para São Francisco, se não me engano. Nunca mais voltou.

– E isso que é que tem com esta casa?

– Como o menino ficou nesse estado e sem pais, os seus tios tomaram conta de si. Talvez por remorsos, venderam a casa e a quinta, e aplicaram o dinheiro na sua educação, e, sejamos justos, por sinal cuidaram bem de si – disse o velho.

Perante o desvendar destes segredos, bem guardados e ocorridos há mais de quarenta anos, Miguel Ângelo não sabia o que pensar. Estava abatido perante estas revelações em que ele foi envolvido e sofreu na pele a consequência das desavenças entre os seus pais e os seus tios, estes, que durante estes últimos quarenta anos, foram os seus pais adoptivos.

– Esta casa continua à venda? – perguntou.

– Sim, ainda não houve quem a quisesse – disse o velho.

– Dr. Mário, saiba quanto querem pela casa – disse Miguel Ângelo

Passara mais de um ano e Miguel Ângelo olhava satisfeito para a recuperação que a casa sofrera. Estava totalmente remodelada. Uma parte da casa estava destinada à habitação, outra era uma galeria de arte.

Era o dia da inauguração do espaço. Os convidados estavam a chegar aos poucos, estacionando os automóveis na eira transformada em parque. A casa estava festivamente iluminada e a noite estava amena. Miguel Ângelo estava rodeado do advogado, do secretário e de dois dos seus mais directos colaboradores, gerentes de duas galerias suas. Individualidades cumprimentavam o pintor e elogiavam a casa-galeria agora inaugurada. Na galeria estava exposto em lugar de destaque o quadro que foi motivo do reencontro com o passado, para além de outros quadros que Miguel Ângelo tinha pintado em diferentes fases da sua vida. Quadros de outros pintores de nomeada enchiam outras salas, juntamente com revelações descobertas por Miguel Ângelo, tanto nacionais como estrangeiros. Negociantes de arte e críticos desfilavam perante este manancial de arte.

A vernisage estava a correr acima das suas expectativas e Miguel Ângelo sentir-se-ia totalmente feliz não fosse o acaso dos seus tios terem recentemente falecido, quase simultaneamente, de ataques cardíacos. Recordava-os com saudade, lamentando que não os tivesse ali para partilhar com eles aquele momento. Apesar do que acontecera no passado já distante, Miguel Ângelo perdoou e não guardava qualquer rancor. A vida apesar de tudo reservou-lhe momentos de extrema felicidade, compensando-o de algum modo dos infortúnios que ela mesma provocara. Lamentava o facto de não ter ninguém da família para continuar a sua obra, cada vez mais enriquecida.

A festa continuava muito animada e altas individualidades do mundo da política, das finanças e das artes chegavam a todo o momento, cumprimentavam e felicitavam Miguel Ângelo por aquele belo local e pela sua carreira de artista plástico.

Chegou-se à altura dos inevitáveis discursos, e no palco improvisado ouviu-se primeiramente o vereador da cultura da Câmara Municipal a traçar rasgados elogios ao autor daquela obra que ia proporcionar uma mais-valia para a cidade, depois um negociante de arte, de origem americana, a fazer uma exuberante declaração sobre as qualidades de galerista e homem de negócios que era o elogiado, e, por fim, o Secretário de Estado da Cultura fez um discurso muito curto e muito político. Por fim emocionado. Miguel Ângelo agradece os elogios de que foi alvo e a presença de todos.

Os convidados iam abandonando o local. Miguel Ângelo assistia aos empregados a efectuarem as limpezas das mesas, acompanhado dos seus fiéis colaboradores, alguns que nunca o tinham deixado, outros mais recentes, apesar de tudo isto e das manifestações de afecto de que fora alvo, Miguel Ângelo sentiu-se só.

Momentos antes e ainda no decorrer do convívio, convidou alguns a ficarem na casa naquele fim-de-semana, mas por afazeres profissionais ou porque não estavam mesmos dispostos, muito elegantemente os convites foram declinados.

A melancolia que se tinha instalado há uns tempos a esta parte tinha-se vindo a adensar. O médico receitou-lhe uns antidepressivos, mas estava a ser insuficiente.

Deslocou-se para o seu atelier, um novo quadro andava a preencher a sua mente de um modo obsessivo, talvez fosse essa a razão do seu mal-estar. Tinha feito os seus primeiros esboços, mas a obra não saía. Sentia que o quadro, como aquele que veio a desvendar a sua infância e a razão da sua paralisia, tinha um significado especial.

Como por mágica, o momento inspirador surgiu. Miguel Ângelo deslocou a sua cadeira de rodas para junto do cavalete e a obra arrebatadoramente surgiu. Era de novo um motivo campestre. Uma eira cheia de espigas e mulheres batiam com malhos ou manguais no cereal. Uma jovem sentada na beira de um carro de bois mostrava a uma criança uma espiga de milho-rei. O cenário estava a ser pintado com umas cores quentes de Outono e dava um ar festivo ao desenrolar ao acto campestre. Miguel Ângelo sentia-se feliz apesar de o quadro em termos artísticos mesmo comerciais pudesse não vir a ter grande relevância, mas sentia que aquele quadro significava muito para ele, apesar de não ainda não saber ainda exactamente o quê.

Carolina, a sua fiel empregada que veio substituir, de certo modo, a sua saudosa tia nas tarefas mais importantes, veio-lhe comunicar que se encontrava na sala uma senhora acompanhada de um jovem que queria falar com ele.

– Quem são? Identificaram-se? – perguntou

– Não. Não quiseram dizer os nomes – respondeu Carolina

“Nem era preciso”, pensou Miguel Ângelo.

Miguel Ângelo sai do atelier radiante de alegria como há muito Carolina não o via.

Na sala encontrava-se Júlia acompanhada de seu filho.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

PRESO NO PASSADO


Antagónicos no que à fé e política concerne, idênticos no amor pela vida. Esta dicotomia, era seguramente o mais sólido alicerce de uma amizade que cultivavam e partilhavam há mais de três décadas. As diferenças de opinião em temas tão controversos como a existência de Deus ou o modelo de sociedade que defendiam, não eram mais que o rastilho para infindáveis horas de discussão e voraz cavaqueira.

Conheceram-se adolescentes, quando frequentaram a mesma turma do Colégio dos Órfãos do Porto, o qual se propunha formar e educar os jovens para serem honestos cidadãos e bons cristãos. Apesar de usufruírem do mesmo tipo de instrução, abraçaram diferentes destinos: João tornou-se um célebre cirurgião, casado, com uma família feliz e numerosa, Manuel porém, um dedicado celibatário e ditoso clérigo que percorreu várias paróquias espalhando a palavra de Deus – como fazia questão de afirmar.

João nunca entendeu muito bem como é que um comunista convicto, rebelde que tantas vezes se insurgiu contra a rígida disciplina imperante no colégio, acabaria padre! Fora uma decisão surpreendente. Contudo, analisando alguns dos traços que àquela época melhor definiam o seu carácter, verificar-se-á não ter sido uma resolução absurda.

Manuel era inteligente, culto, leal, honesto, amigo do seu amigo, desprovido de grandes ambições pessoais, preocupado com o mundo e interventivo na comunidade em que se inseria, mas também, extremamente perspicaz e possuidor de um humor cáustico e assertivo. Pertencia à Juventude Comunista e defendia com tenacidade a utopia – ou talvez não. Será que a transformação desta ilusão em realidade será vital para a sobrevivência da humanidade? Quem sabe o que reserva o futuro? – de ser possível construir uma sociedade em que os homens fossem felizes e iguais entre si. Gostava de transgredir, experimentar, todavia, sempre ponderando e medindo os riscos em que incorria.

Neste gosto pela infracção, encontrou em João o companheiro ideal. João era alegre, impulsivo, vivaz, destemido, exuberante, detentor de uma enorme força de vontade e intelectualmente desenvolvido. Acreditava em desfrutar a vida plenamente, fruir dos prazeres que esta proporciona. Sonhava com Ferraris, cruzeiros no mediterrâneo, mulheres belas, aventura, dinheiro, e no entanto, paralelamente, era um indivíduo bondoso e fraterno que se condoía com a dor alheia. Ao invés de Manuel, jamais pensou em mudar o mundo, sequer a sua rua. Apenas vivia o momento, impulsionado pelo coração.

Enquanto apreciavam o característico movimento de uma manhã de sábado na Rua de Santa Catarina, os dois amigos que já não se viam há bastante tempo, matavam saudades e recordavam momentos esquecidos na memória, saboreando uma bebida fresca na esplanada do café Majestic.

- Não é a primeira vez que afirmas isso, aliás, não te cansas de repeti-lo: “Tu salvas almas, eu salvo vidas”, “Tu salvas almas, eu salvo vidas”. Pareces um papagaio… e idiota por sinal! – resmungava Manuel caricaturando com um esgar tonto a expressão do seu amigo.

- Calma lá. Falta aí qualquer coisa! – disse João sorrindo. “Salvas almas ou lá o que quer que isso seja”. Até hoje, apesar dos teus esforços para me convenceres do contrário, nunca soube o que isso era. Jamais vi ou toquei alguma e estou certo que não tendo elas carne à volta, serão muito poucos os que as quererão apalpar. – um sorriso maroto sublinhava o dito que não pretendia mais que espicaçar o amigo.

- Goza, mas não afirmes que desta água nunca beberás. Já vi muitos ateus mudarem de opinião! Apenas acreditas no que é cientificamente comprovado. Não crês para além da lógica, contudo, muitas das coisas que hoje são aceites pela humanidade, seriam impossíveis de admitir séculos atrás. Deus não necessita de certificação. Faz parte de nós. Parece impossível que tendo tu salvo tantas vidas, assistido a tantos dramas, não tenhas sido sequer tocado pela dúvida.

- Não te esforces Manuel. Não vale a pena. Deus é tão-somente a forma que os homens encontraram para sobreviver à sua própria pequenez, para subsistir à consciência de nada somos neste mundo, que de um momento para o outro deixaremos de existir. Deus é a prova da nossa fraqueza. Não é mais que uma bengala de que o ser humano se socorre para o ajudar a percorrer este difícil percurso que é a vida.

- Responde-me: o amor existe? Amas a Marta? – Manuel aguardou pela resposta de dentes cerrados, ansioso. Com ela provaria o seu ponto de vista.

- Que raio de pergunta! É claro que o amor existe e evidentemente que amo a Marta. O que é que isso tem a ver com a nossa conversa. Sabes muito bem que a minha mulher e os meus filhos são tudo para mim. A Marta está para a minha vida como Jesus para os cristãos, depois dela todas as deusas foram esquecidas, apenas a ela me dedico. – respondeu João.

Efectivamente, depois que a conheceu, abandonou o seu quotidiano de D. Juan boémio e consigo construiu uma família unida e harmoniosa. Apaixonara-se pela sua jovialidade, pelo carácter determinado, pelos seus princípios de justiça, pela sua beleza e fundamentalmente, pela sua naturalidade. Marta entrou na sua vida como a água de uma nascente: fresca, cristalina e pura. Era graciosa, mas também forte. Quando ria, fazia-o com vontade e do rosto ressaltavam trejeitos de criança traquina, brilhos de genuinidade, fulgores de perfeita alegria, no entanto, quando se enervava parecia que a terra tremia e que o céu ficava zangado. Hipocrisia ou fingimento eram conceitos que abominava. Se no ventre da terra se concebessem as mais belas criaturas, Marta seria obviamente uma delas. Provavelmente a mais bonita! Decerto que a esta idiossincrasia não seriam indiferentes os anos passados na sua terra natal: uma pequena e velha aldeia escondida entre encostas de granito.

João costumava dizer que Marta lhe transformara a vida num mar imenso de felicidade. Manuel sabia-o bem. Quando o questionou, já conhecia a resposta.

- Tem tudo a ver. Eu sei que o amor existe, todavia, nunca o senti, nunca o toquei, e, por muito belo que ele seja, por muito excitantes que sejam as carnes que o cingem, jamais

o apalpei. Mas apesar disso sei que é real. Embora não o tenha experimentado, sei que é parte integrante da vida do ser humano. Assim é o amor; para existir é preciso acreditar nele. O mesmo acontece com Deus!

- Não sabes o que é o amor e nem imaginas o que perdes. – interrompeu João, piscando o olho ao amigo.

Manuel deu-lhe uma amigável sapatada no braço e continuou o seu raciocínio.

- Deus convive com milhões de pessoas no mundo inteiro. Não necessita de forma nem de se submeter a comprovações científicas. A sua presença é evidente!

Por instantes, o silêncio! João deleitava-se com recordações do tempo em que conheceu a sua esposa e Manuel saboreava o prazer de uma pequena vitória. “Mais uma lança em África. Bom, talvez não seja uma lança, não será mais que uma pequena agulha, mas não deixa de ser uma picadela.”

- Acorda pateta. Repara, avião às quinze horas. – Manuel chamou atenção do amigo para uma jovem que exibia o seu estonteante corpo sob um suave vestido florido em tons de amarelo canário.

- Aquilo não é um avião senhor padre, é um extra-terrestre! – respondeu João.

Os dois riram, e continuaram atentos, comentando o que os rodeava. Por vezes Manuel parecia distraído, ausente, até sonolento. Puro engano. Era o primeiro a soltar as garras e a dilacerar as vítimas com comentários acintosos.

- Abutre de penugem azul alicia as presas com promessas de dinheiro. – disse Manuel telegraficamente e apontando com um levantar de queixo.

João olhou na direcção indicada sem entender o que o amigo pretendia.

- Queres explicar-te?

Manuel indicou um sujeito que caminhava de um lado para o outro com um letreiro azul pendurado ao pescoço que dizia: “Compra-se ouro usado. Pagamos o preço justo. Pagamos a pronto. Rua dos Bragas, 77”.

- Nunca ouviste dizer que vão os anéis e ficam os dedos? – questionou João.

- Ouvi, mas não deixa de ser triste que sempre haja quem pretenda enriquecer à custa da miséria dos outros. – retorquiu Manuel.

- Não é bem assim, não é bem assim. Não podes catalogar estas pessoas de abutres. É muito severo de tua parte. Este é um negócio como outro qualquer.

- Achas? Imagina que estás num situação difícil e vais a uma destas casas vender esse fabuloso relógio que a Marta te deu? Ou a tua aliança de casamento? Que por isso te oferecem uma ninharia. Diz-me o que sentirias?

- Sentir-me-ia explorado concerteza, mas se esse dinheiro servisse para me matar a fome, não hesi…

Ficaram calados. Admirados! A atenção desviara-se para um indivíduo que no outro lado da rua se sentara a pedir esmola. A singularidade da sua presença, suscitava comentários a quem por ali passava.

“Quem não gostava de a encontrar!”. “Não é nada burro. Não pede pouco não senhor!”. “Pelo menos este é original”. Cada observação trazia consigo uma nota de surpresa e um sorriso de simpatia que em nada pareciam afectar o excêntrico pedinte que segurava os compridos cabelos grisalhos com uma borracha preta que parecia ser a câmara de um pneu de bicicleta e exibia ao peito um velho letreiro em cartão canelado que gritava assim: “Procuro a felicidade. Por favor ajudem-me a encontrá-la”.

- Genial! – disse João.

- O ser humano não pára de nos surpreender. Esta alma merece ser ajudada. Adoraria que o fosse por ti.

As curtas palavras de Manuel foram ditas com tal sinceridade, os seus olhos expressavam tanta paixão que João se sentiu compelido a ajudar aquele homem estranho.

- Repara, – disse Manuel – o corpo está ali, mas a cabeça não. Parece ausente. Os lábios libertam um simples obrigado para agradecer a quem deixa esmola mas a sua expressão não se altera.

Efectivamente o coração do mendigo pousava num tempo e local distantes. Memória de terra, lembranças de pedra que o amparavam na busca do sonho que o fez abandonar a velha aldeia em que vivia, o seu pedaço de paraíso. Diariamente revivia no peito momentos inesquecíveis de uma infância plena de liberdade e profunda comunhão com a natureza. Uma época em que os pés tinham asas, que saltiplanava pela serra até a força se extinguir com a luz do dia, em que da noite brotavam sorrisos cintilantes que o embebiam de ternura. Um tempo em que as mãos ásperas do avô o aconchegavam no sono e lhe afagavam a existência naquele local em que Deus e a Terra se fundiram num só e os homens se limitavam a assistir tranquilamente.

Sentado na Rua de Santa Catarina, via-se escondido atrás das rochas com o seu pequeno grupo de amigos de quem tanto gostava – principalmente a pequena maria-rapaz por quem tinha um carinho especial e que o acompanhava em todas as brincadeiras – atirando pedrinhas aos bodes que marravam entre si enquanto ovelhas remeladas pastavam indiferentes, sentia a respiração cortada pela escassa água do riacho onde tomaram banho vezes sem fim, subia às árvores e baloiçava-se nos ramos, penetrava-lhe as narinas o cheiro a serrim da oficina do avô, experimentava na pele o toque macio da madeira acabada de lixar e acima de tudo fechava os olhos e arrepiava-se com o beijo fugidio que um dia aquela bela menina de cabelo à rapazinho e profundos olhos castanhos lhe deu, com o momento em que os dois, depois de mais um intenso dia de folia, deram as mãos sobre os joelhos esfarrapados e juraram que nunca se separariam.

Infelizmente, até o paraíso necessita de escolas, faculdades, hospitais, aos poucos as famílias começaram a abandonar a aldeia para procurar um futuro melhor nas principais cidades do país. Ela foi a primeira. Os pais decidiram mudar-se para o Porto. “A minha filha será médica ou professora. Um dia havemos de voltar.” Nunca mais regressaram!

Desde esse dia que a tristeza se instalou no seu coração. O avô tentava consolá-lo de todas as formas, mas com o decorrer dos anos quase todos partiram e em cada adeus era o gracioso rosto da sua predilecta amiga que se despedia de si.

Alguns anos mais tarde, estava já com os seus dezoito anos, o avô incentivou-o a que a procurasse. “ Vai meu filho. Vai. Não hesites. Enquanto não a descobrires, não terás sossego.” Trinta anos volvidos, continua vagueando pelo Porto desejando ardentemente que o acaso ou o destino permitam vê-la outra vez.

- Vais lá falar com o homem ou não. – perguntou Manuel.

- Hoje não. Tenho que ir já para o hospital, mas se amanhã ele estiver por aqui, então conversarei com ele. – respondeu João, despedindo-se em seguida do amigo.

Manuel, aproximou-se do pedinte e perguntou.

- Porque tem isso à volta da cabeça? Não é demasiado quente? Não o incomoda?

- Por vezes parece que a minha cabeça vai rebentar. Seguro-a com esta borracha e sinto-me mais confortável. – respondeu o homem serenamente.

- Sabe que o que procura é muito difícil de encontrar. Muitos são os que a desejam mas poucos os que a alcançam. – insistiu Manuel com intuito de tentar saber um pouco mais sobre ele.

- Então não sei! – respondeu com um suave sorriso nos lábios. Procuro-a há 30 anos e ainda não a vi uma única vez.

- Como se chama? – perguntou Manuel.

- Há muito tempo que ninguém me pergunta o nome! Chamo-me Pedro.

Manuel encantara-se com ele mas estava determinado a que fosse João a ajudá-lo. Tirou uma nota de cinco euros do bolso, entregou-a e disse-lhe:

- Se amanhã à mesma hora estiver por aqui, volto a dar-lhe cinco euros e ainda por cima terá uma surpresa.

Agradeceu, viu Manuel afastar-se, olhou para a nota que ainda tinha na mão e pensou que ainda existem pessoas simpáticas, não criando qualquer expectativa relativamente ao dia seguinte, pois já muitos o haviam tentado auxiliar sem qualquer efeito positivo.

Cinco horas da tarde. Como habitualmente, João sentou-se na esplanada do Majestic e pediu um café e uma água sem gás fresca. O seu rosto bronzeado brilhava ao sol, realçado pelos cabelos negros que não sendo muitos se encontravam humedecidos e bem penteados para trás. Atraente, calça de linho, camisa às riscas, tudo a combinar, sinais de alguém maduro e confiante. Dava nas vistas e gostava. Manuel não devia demorar muito. Não se costumava atrasar. No outro lado da rua Pedro mantinha-se exactamente na mesma postura, como se nunca tivesse saído dali.

- Até que enfim. Estava a ver que nunca mais vinhas. Queres tomar alguma coisa?

- Apenas um café. – respondeu Manuel.

- Estás de poucas palavras. Pareces chateado? – perguntou João.

- Não, nada disso. Apenas compenetrado. Já vi que o nosso amigo continua ali e temos que ir ter com ele não é verdade?

- Claro. Toma o teu café calmamente que vamos já falar com ele. – respondeu João rindo-se do amigo.

Pagaram e dirigiram-se ao pedinte.

- Chama-se Pedro. – informou Manuel em voz baixa.

- Boa tarde, o meu nome é João Fonseca – esticou a mão cumprimentando-o – e sou amigo, mais, sou o melhor amigo aqui do padre Manuel que provavelmente já conhece e é um ser humano extraordinário.

- Boa tarde. – respondeu Pedro receosamente, um pouco intimidado pela presença dominadora de João. Além de bem parecido, era bem-falante e emanava confiança.

- Gostaria muito de o conhecer – continuou João – e de o convidar para esta noite jantar em minha casa. Sempre é mais fácil procurar a felicidade de barriga cheia. – gracejou.

Manuel não conseguiu esconder uma mal disfarçada expressão de satisfação. Sempre se orgulhara de João e naquele preciso momento mais do que nunca.

- Verá que passará uma noite agradável. O Manuel também jantará connosco, conhecerá a minha esposa e os meus filhos. Aceite que não se vai arrepender.

- Aceite. – repetiu Manuel.

O constrangimento de Pedro era menor sabendo que Manuel era padre e que também estaria presente. Sentia-se tentado a anuir! Desde há muitos anos que não tinha um jantar realmente decente, muito menos com uma família. Apesar da simpatia dos dois, da maneira convincente como João o interpelou, não deixava de estranhar o convite.

- Não levem a mal a pergunta, mas porquê eu? Porquê este interesse repentino na minha pessoa?

- Em primeiro lugar porque consideramos extraordinário que alguém mendigue para encontrar a felicidade, em segundo porque no seu letreiro pede ajuda e nós teríamos muito prazer em o fazer. Em terceiro, porque apenas ontem o vimos e só hoje me foi possível estar consigo sem condicionamentos de tempo. – respondeu João.

- Acredite que as nossas intenções são boas. Pode ser que o consigamos auxiliar. Quem sabe? Não tem nada a perder. Aceite por favor. – disse Manuel.

- Muito bem. Passem aqui dentro de duas horas e então iremos jantar. – respondeu Pedro.

- Se quiser pudemos ir agora Pedro. – observou João.

- Não. Prefiro mais tarde.

- Tudo bem. Iremos dar uma volta e dentro de duas horas estaremos aqui.

Os dois afastaram-se levando consigo um pequeno sentimento de felicidade, não fossem as aparências, concerteza caminhariam de mãos dadas.

Passado o tempo combinado, voltaram. Pedro não estava.

- Arrependeu-se. Provavelmente ficou assustado. – observou João.

- Esperemos um pouco que ele aparece. – contrapôs Manuel.

Passaram-se dez minutos e João ficava impaciente. Não gostava de perder tempo com coisas que não dessem resultado.

- Vamos embora Manuel. Ele já não vem. Desistiu, ponto final. Está no seu direito. Cada um é dono da sua vida.

- Sê paciente e tem fé. Ele vai aparecer.

Nesse momento Pedro surgiu perto deles. Estava asseado, trazia uma roupa humilde mas limpa e havia tomado banho.

- Desculpem o atraso, fui lavar-me e arranjar-me melhor, por isso demorei um pouco mais.

- Vamos, tenho o carro no parque dos Poveiros.

João conduzia um BMW descapotável, ultimo grito. Passado algum tempo chegaram a casa; uma vivenda enorme, com um imenso terreno a toda a volta e um belíssimo jardim à frente.

Pedro estava boquiaberto!

- O João é um importante cirurgião da nossa cidade e a esposa é professora na Faculdade de Letras. Ganham os dois muito bem, mas são pessoas fabulosas, com um coração enorme. - sussurrou Manuel, como que quase desculpando a opulência da casa do amigo.

- Entre, entre, esteja à vontade. Faça de conta que está em sua casa. Não se iluda com as aparências. Nós não somos de cerimónias. Venha, vou apresentar-lhe os meus filhos.

Antes das apresentações os miúdos correram a saudar Manuel. Era notório que gostavam muito dele.

- Apresento-lhe o Manuel José que é o meu filho mais velho, tem 18 anos e é afilhado aqui deste nosso amigo – apontou para Manuel –, este é o João Paulo, o meu do meio e tem 14 anos, esta é a Matilde, a princesinha da família e tem apenas 8 aninhos.

- Muito prazer. – Pedro cumprimentou os meninos um a um.

- Meninos, este nosso amigo chama-se Pedro e hoje janta connosco.

Os pequenos não conseguiram esconder alguma surpresa e espanto quanto ao aspecto de Pedro mas mantiveram-se calados. Matilde que era mais nova e um pouco mais atrevida que os irmãos, não se conteve e perguntou:

- Porque é que tens a cabeça amarrada? Magoaste-te? Não queres antes uma ligadura? O meu pai tem muitas. Sabes que ele é médico e pode curar-te as feridas.

Pedro soltou uma gargalhada envergonhada. Há muito que não ria! A espontaneidade de Matilde fê-lo recuar ao seu tempo de menino.

- Sabes Matilde, estas feridas são muito malandras e brincalhonas. Apesar de acreditar que o teu pai é um excelente médico, elas são muito difíceis de tratar. Por vezes, saltam tanto dentro de mim que fico com a cabeça a andar á roda, zonzo e com medo de não a segurar, por isso ato-a com esta borracha que é mais forte que qualquer ligadura.

João mudou de assunto:

- Por favor, sentem-se. A mãe já chegou? – perguntou dirigindo-se ao filho mais velho.

- Não, ainda não. Telefonou alguns minutos atrás dizendo que estava a chegar. Pediu-nos para irmos pondo a mesa para o jantar.

Tendo os pais uma vida profissional tão preenchida, cedo se habituaram a desempenhar algumas tarefas domésticas. Rapidamente e com desembaraço prepararam a mesa. Só faltava chegar a mãe com a comida que tinha ido comprar ao take away.

Entretanto, João e Manuel tentavam conhecer Pedro um pouco melhor, este não era de muitas falas, mas por outro lado sentia a obrigação de retribuir a gentileza de que estava a ser alvo e tímidamente ia contando algo sobre si, como uma velha e enferrujada porta que há muito não se abria. As palavras soltavam-se a conta-gotas, arrancadas, receando a atenção de terceiros, temendo a luz que irradiava das nobres intenções dos seus novos amigos. Será que os poderia considerar assim?

Ouviu-se uma chave rodar na fechadura da porta. Os miúdos correram a abraçar a mãe. Marta entrou na sala, beijou o marido e cumprimentou Manuel.

- Marta, apresento-te o Pedro, o nosso convidado de que te falei ontem. Pedro, apresento-lhe a minha esposa Marta. – disse João.

Cumprimentaram-se; as mãos de Pedro gelaram, o rosto empalideceu, por instantes sentiu que a terra lhe fugia debaixo dos pés, os nervos apoderaram-se do corpo, as pernas começaram a tremer, o esforço para controlar aquele vórtice de sensações reduzia-lhe forças e aquele imenso segundo teimava em não terminar! Sufocava. Necessitava ajuda.

- Muito prazer. - disse Marta com um sorriso e soltando a mão. Está a sentir-se bem? Parece um pouco pálido! Não achas João? – insistiu, dirigindo-se ao marido.

A voz de Marta acordou-o daquele profundo abismo e teve o condão de lhe suavizar as emoções.

- Muito prazer também. Não se preocupem comigo, isto não é nada, já passou. – retorquiu Pedro, quase restabelecido.

Depois de tão longa demanda, ela estava ali, mesmo à sua frente! Marta, a menina por quem se apaixonara ainda criança! Inacreditável! Incontáveis anos a ansiou disperso por vãs tentativas, cedo a pendurou numa estrela e a seguiu feita sonho, fantasia de cinema, pitada de poema, doce insónia, chama crepitante que o acalentou nas noites errantes. Sempre a desejou, sempre a quis para si, mas nunca a imaginara assim, feita mulher mãe, salpicada aqui e ali pelas primeiras cores do Outono, longos cabelos manchados a ouro tombando sobre os ombros, ancas bem delineadas, voluptuosa, coxas roliças, busto erecto, rosto moreno de onde sobressaíam uns imensos olhos castanhos e uns extraordinários lábios carnudos que faziam murchar de vergonha a mais bela das rosas vermelhas.

O seu desejo jamais fora contagiado por qualquer ponta de erotismo. Para si, a sua princesa vestia calções, tinha pernas de magricela, cabelo curto e as unhas pintadas de terra.

- Preparem-se que já vou pôr a comida na mesa. Vamos ter um prato de filetes e outro de cabrito. Espero que goste Pedro.

- Gosto concerteza minha senhora. – respondeu Pedro com um sorriso.

- Não me trate por senhora, peço-lhe. Marta é muito mais agradável.

- Muito bem, tratá-la-ei por Marta.

Pedro sentou-se à mesa degustando calmamente um estranho sentimento de paz, como se algo lhe fizesse festinhas no coração. Provavelmente não era felicidade, contudo era bom. Muito bom. Terno, doce, meigo, leve, assim se sentia. Sobretudo, possuía-o uma amena e agradável sensação de tranquilidade; se pudesse fechava os olhos e dormia para o resto da vida. Talvez a palavra mais adequada para classificar aquele momento fosse: alívio.

Já não lhe pesava a cabeça. Retirou a enorme borracha que lhe prendia os cabelos, deixou que estes caíssem para a frente dos olhos e depois penteou-os para trás com as duas mãos. Todos olharam para ele. Pedro irradiava serenidade! A pequena Matilde saltou para o seu colo e beijou-o na face, João Paulo acompanhou-o à casa de banho para que melhor pudesse pentear o cabelo e Manuel José ofereceu-lhe o seu gel para que ficasse mais bonito.

Enquanto isso, padre Manuel sorria em silêncio, suportando uma pequena lágrima que nascia ao canto do olho e João acarinhava a esposa dizendo embevecido:

- Não sei porquê, não sei o que é que tens, mas fostes tu que o puseste assim.

- Também não entendo, mas efectivamente parece uma pessoa completamente diferente de há minutos atrás. – respondeu Marta.

- Já o tinhas visto em algum lugar Marta? – perguntou Manuel.

- Não, ou seja, penso que não, a cara dele não me é totalmente desconhecida, mas

sinceramente não o estou a identificar.

- Terá sido um aluno teu? Pela faculdade também passam indivíduos mais adultos. – observou João.

- Penso que não, se tivesse sido meu aluno eu perceberia.

Marta não reconhecia o amigo por trás das rugas, do semblante esquelético amassado e retorcido por anos de infrutífera e estóica missão. Há muito contaminada pela cidade, não lhe distinguira o cheiro a terra, olhava para os seus olhos e não os via reflectir uma menina arisca baloiçando nos ramos das árvores.

Voltados à mesa, iniciaram o jantar. Como era normal, Pedro era o centro das atenções, o alvo de todas as perguntas.

- O Pedro de onde é? Diga-nos de onde vem? – perguntou o padre Manuel.

- Venho de um mundo muito diferente deste em que vocês vivem. Venho de uma aldeia abençoada por Deus. Imaculada. Onde o ar que nos enche os pulmões, apenas sabe a ar, onde as crianças, as poucas que existiam, andavam descalças para sentirem o toque da terra, o fresco da erva e a dureza do granito. Uma terra onde por vezes o vento zunia tão forte que os homens conversavam em voz baixa em sinal de respeito, onde as histórias contadas junto à lareira se transformavam em lendas que nos acompanhavam para sempre.

- Belas palavras – observou Marta pensativa –, de alguma forma transportam-me para o meu tempo de criança.

- Pedro diga-me o que mais o impressionou aqui na nossa cidade? – perguntou João. Já reparou que a minha filha só tem olhos para si.

Matilde que tinha acabado de comer, devorava atentamente todos os gestos e palavras de Pedro. Mesmo não o entendendo… sorria deliciada.

- O coração das crianças nunca se engana. O senhor deve ser uma boa pessoa. – observou o João Paulo.

- Olha o senhor adulto, o meio quilo feito homem! – comentou o pai, rindo de contentamento.

- Não falemos apenas de mim – observou Pedro –, atendendo à sua profissão deve ter imensas histórias para contar.

- Bem dito, vá lá, conta-nos algo que verdadeiramente te tenha impressionado. – insistiu Manuel.

- Um dia, resultado de um acidente automóvel, tive que operar um determinado individuo. Salvou-se, mas o filho não. Quando retornou a si, tomou conhecimento do acontecido. O homem ficou louco de dor, teve espasmos violentos, o corpo contorcia-se de dor. Demos-lhe um sedativo e posteriormente foi encaminhado para o apoio psicológico. Uns meses mais tarde vi-o na rua. Fui ter com ele e perguntei-lhe como estava. Respondeu-me que ao que sucedeu só sobrevivem os animais e os cobardes; como não era animal…, foi sem dúvida a resposta ou acontecimento que até hoje mais me afectou.

- Não tinhas mais nada para contar – Marta parecia um pouco aborrecida -, estava tudo a correr tão bem.

- Pediram para contar o caso que mais me afectou e eu contei. – respondeu João.

- Sem dúvida que é uma história comovente, mas quando regressas a casa, com uma família como esta, tudo é mais fácil de suportar. – observou Manuel.

Os rapazes levantaram-se da mesa e foram jogar Play Station, Matilde porém, manteve-se firme e desperta, atenta a tudo que os mais velhos diziam. Pedro deliciava-se com as expressões da miúda. Lembrava a mãe com a mesma idade.

- Permitam-me que lhes diga que nesta casa encontrei a felicidade, não a minha, a vossa, mas mesmo assim, pela primeira vez desde há muito, muito tempo, sinto-me feliz. Agradeço imenso o jantar e o carinho com que me trataram.

- Nós é que agradecemos. Foi um privilégio tê-lo conhecido. – disse Manuel.

- Podemos ajudá-lo em alguma coisa? Teríamos muito prazer. – perguntou Marta.

- Nem imaginam o quanto já me ajudaram.

Durante mais de trinta anos, vivera com Marta dentro de si, obcecado por ela, agora estava na altura de se libertar. Sentia-se invadido por uma intensa sensação de quietude.

Matilde, sentou-se ao colo de Pedro como que querendo impedir que ele fosse embora. Tudo o que ouvia soava a despedida.

- Como vê, conquistou-nos a todos Pedro. Pode passar a noite connosco, não faltam quartos. – disse João.

Pedro recusou gentilmente.

- Pretende que o deixe em algum local?

- Sim gostaria que me deixassem novamente na rua de Santa Catarina.

João, Manuel e Pedro, prepararam-se para sair.

Pedro despediu-se de Matilde com um afago terno, cumprimentou os dois rapazes e quando se preparava para o fazer com Marta, esta abraçou-o e beijou-o na face.

- Ofereço-lhe a minha borracha como recordação. Não preciso mais dela.