segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O REINO DE MARGARIDA

Cabelos timidamente finos e esbranquiçados, carentes de força e determinação, reforçavam a aparência frágil daquele rosto seco e chupado que deambulava pela sala atendendo os clientes numa postura de inferioridade, quase humilhação.
Calças pretas, velhas, camisola de gola alta escura coberta de borboto. Roupas negras a quem os anos retiraram o vigor vestiam-lhe o corpo falto de carnes e reflectiam-lhe a alma vazia de felicidade.
Solidão ambulante servindo sorrisos tristes e olhares amargos. Cada chávena de café continha um pedido tímido de compreensão:
«Por favor, não me gozem. Basta! Não sou o Toninho, aquele ser insignificante que se acostumaram a vexar, a submeter. O meu nome é ANTÓNIO, estão a ouvir. ANTÓNIO!»
O café era sorvido mecanicamente por dezenas de bocas estupidamente iguais que digeriam a súplica do António com a indiferença esmagadora de quem faz do quotidiano o seu pensar. É a cegueira de quem vê, de existir apenas com o minuto, a hora, o exterior, e não com o que — sem nome — de bom e importante há em nós e deveria ser a seiva da nossa vivência, o sumo a brotar dos nossos actos.
Se cada homem é único, se não existem duas pessoas iguais, não deixa de ser admirável que, frequentemente, a força do hábito se sobreponha, domine, não hesitando em eleger vítimas que satisfaçam os rituais diários que a comunidade interiorizou como normais!
Era justamente o caso do António. Indivíduo frágil, inseguro, tristonho, incapaz de se defender, de reagir, tornou-se ao longo dos anos no alvo preferido da chacota dos que frequentavam o bar da Sociedade Recreativa Luz e Vida. No exercício das suas funções de empregado do bar, amiudadas vezes se dirigiam a si, zombando com o facto de, apesar dos seus 35 anos, nunca lhe ter sido conhecida qualquer companhia feminina.
«Oh Toninho, traz aí mais três surbias. Quando o bar fechar, vamos os dois às meninas. É hoje que vais perder os três! Ou será que preferes meninos?», gritava um sujeito que, acompanhado de outros dois, ria efusivamente ao canto da sala.
Prestimoso, António serviu as três cervejas.
«Não te preocupes, Toninho. Eu pago! Se convido… pago. Até te pago uma francesinha, homem. Tens que comer rapaz. Tu de frente pareces que estás de lado.» As gargalhadas vindas daquela mesa contagiavam os presentes, e, num instante, todos troçavam do António. Até o Sr. Joaquim, que era quem explorava o bar e fazia o favor de o empregar — em respeito à memória do seu falecido pai —, alinhava pela cretinice geral.
As piadas, embebidas em álcool, saltavam de barrigas proeminentes à mesma velocidade com que estas emborcavam garrafas de cerveja, e as gargalhadas feitos soluços irrompiam de peitos mamalhudos que ameaçavam rebentar os botões das camisas.
António, que continuava a servir obedientemente, desaparecia aos poucos, envergonhado, sorvido por aquele redemoinho de imbecilidade.
Os idiotas que escarneciam dele não sabiam que António descendia de uma rara estirpe de homens que durante milénios souberam resistir e vencer as dificuldades que a vida lhes colocava. Descobriram o fogo, a roda, o amor, o silêncio, o conceito de bem e de mal, até que chorar é a melhor forma de aliviar a dor. São os sobreviventes.
Na sua imensa necessidade de galgar sobre o sofrimento, de alcançar a felicidade — ou apenas um pouco dela —, António desenvolveu e apurou a mais peculiar das capacidades: a de se tornar invisível.
— O António? Alguém o viu? — perguntava o Sr. Joaquim. — Não me digam que foi embora outra vez. Vocês gozam com ele e eu pago as favas, que fico aqui sozinho a atender a clientela. Logo agora que a casa está cheia!
— Não sei por que o aguenta aqui. Não falta quem queira trabalhar! — observou um indivíduo encostado ao canto do balcão.
— O pai dele ajudou-me numa altura em que muito precisava. Nunca o hei-de esquecer. Manter aqui o Toninho é o meu agradecimento. Vou ligar-lhe para o telemóvel, mas se for como o costume, não me vai atender. Gostava de saber para onde ele vai! Para casa não é de certeza; uma vez mandei um miúdo chamá-lo e não estava lá ninguém.
O telemóvel tocou, mesmo nas costas do Sr. Joaquim, pousado junto a uma garrafa de aguardente.
— Pronto, hoje não volta mais — murmurou o Sr. Joaquim desanimado.
Enquanto isso, metido na casa de banho, António completava o seu processo de transformação. Sentia-se leve, em paz! Percorriam-lhe o corpo sensações cromáticas de enorme beleza: verde, mar, puro; azul, céu, lúcido. O som à sua volta desaparecera e os indivíduos no bar não eram mais que sombras, esboços sem forma ou definição sobre quem planava complacente. Afinal, graças a eles alcançara aquele estado de pureza que algum prazer lhe proporcionava.
Na sua condição de incorpóreo não conseguia ver as pessoas ou o que quer que tivesse sido feito por elas, no entanto, curiosamente, desfrutava com facilidade de tudo que a natureza lhe oferecia.
Abandonou o Luz e Vida e dirigiu-se para um dos seus locais preferidos: a zona da Foz do Douro e o Parque da Cidade. Desceu Valbom, deitou-se sobre a corrente do rio. Pernas esticadas, mãos cruzadas sob a nuca, assim efectuou a curta viajem, saboreando o hálito tépido da água a acariciar-lhe a pele e a luz das estrelas brilhando para si. De vez em quando, na brincadeira, perguntava ao rio se estava cansado ou se demoraria muito a alcançar a foz. Claro que depois de tanto tempo a correr apertado entre duas margens, este só lhe poderia responder resmungando um chocalhar negro e zangado.
Chegado à foz, despediu-se do rio, pediu desculpas ao mar por não o cumprimentar devido à sua baixa temperatura, e, seguidamente, dirigiu-se ao parque da cidade.
Era um dos locais onde melhor se respirava, tudo parecia impoluto, mais saudável. Sentado na relva, junto ao lago, ficou observando em redor. Naquela noite o parque estava bastante animado. De vez em quando vislumbrava silhuetas disformes movendo-se de mãos dadas, cerca de cinco metros à sua direita outras duas rebolavam abraçadas, sôfregas, aquecendo o ar à sua volta até se transformarem numa só.
A lua bonacheirona, grávida de felicidade, incidiu a sua luz plácida sobre o corpo invisível de António como se lhe quisesse confidenciar algo. A relva fresca e húmida, a morna brisa do vento, uniram-se ao luar em círculos irresistíveis que como uma auréola, verticalmente, lhe impregnaram os sentidos de laxação. Então, o seu corpo caiu para trás suave e melancólico, abrindo os membros em V, soçobrando, prestes a adormecer… assim, inteiro, exposto ao mundo.
Estava quase a entrar no reino do subconsciente quando alguém tropeçou em si e se estatelou mesmo ao seu lado. Não via ninguém, porém sentia a sua presença! Seria que estava a sonhar?
— Desculpe se o acordei — disse-lhe uma voz doce de mulher.
António ainda não percebera bem o que estava a acontecer, mas instintivamente respondeu:
— Não, não, eu é que peço perdão porque a fiz cair — murmurou incrédulo.
— Com certeza está a duvidar do que está a ouvir. Suspeita que está a sonhar, não?
— Efectivamente estou um pouco confuso — respondeu António receoso.
— Lamento — retorquiu decidida. — Lamento que alguém tão raro seja também um parvo incapaz de acreditar nos seus próprios sentidos.
Afastou-se determinada. António sentiu-lhe a presença distanciar-se. Num impulso, levantou-se e correu até ela. Pousou a mão onde lhe pareceu que seria o ombro e pediu que não se afastasse já.
— Entenda o meu comportamento. A não ser para se divertirem às minhas custas, habitualmente não falam muito comigo, jamais quando estou assim… sabe… invisível. Por favor fique um pouco mais. Diga-me o seu nome.
— Margarida. Princesa Margarida.
— Desculpe a impertinência majestade, mas é princesa em que reino? — perguntou António em tom jocoso.
O facto de sentir a sua presença, quase lhe sentir o corpo, ouvir a sua voz, já era suficientemente inacreditável para o fazer descrer. Princesa então, era demais!
«Provavelmente é alguma idiota com quem todos gozam e sucede-lhe o mesmo que a mim. Agora que a sua voz é meiga e sensual, disso não há dúvida!»
O seu pensamento foi interrompido pela resposta de Margarida.
— Presumo que esteja a brincar comigo. Talvez pense que sou louca, que não sei o que digo, que sendo irónico poderá talvez desforrar-se das agruras do seu dia-a-dia. Sim, porque em toda a minha vida, com excepção do meu caso, nunca conheci ninguém que fosse feliz e gostasse de ser invisível — a voz deixara de ser doce!
— Uma vez mais peço que me perdoe. Se existe alguém que sabe o que é ser vítima do preconceito, sou eu! — respondeu António denotando alguma dor na sua voz.
Margarida enterneceu-se com a sua franqueza. Carinhosamente depositou-lhe um beijo na face.
— Sentiu? — perguntou Margarida. — Não fique corado, foi só um beijo — observou sorrindo.
— Senti! Não entendo o porquê, mas realmente senti. Os seus lábios são muito bonitos — atreveu-se a observar. — Como sabe que estou corado?
— É fácil, o ar que contorna seu rosto está cálido.
— Será por isso que começo a entender melhor as formas do seu corpo. Será que também está mais quente!
Margarida sorriu e disse:
— Voltemos à questão que me colocou. Gostaria de conhecer mais detalhes sobre o meu reino?
— Sim, adoraria — respondeu António compenetrado.
— Sentemo-nos, pois ficaremos mais confortáveis — ciciou afectuosamente. — O meu reino é — fez uma pausa prolongada, sacudiu os cabelos para trás altivamente e uma aragem acariciou as folhas das árvores que se moveram delicadas a salientar o gesto — onde eu quiser.
Enquanto António a escutava encantado, a voz de Margarida ia assumindo contornos melódicos de rara beleza e num misto de canto e declamação, continuou:

O meu reino é numa nuvem de algodão,
Numa bola de sabão,
É numa folha de papel
Ou na ponta de um pincel,
É na cauda de um cometa,
Nas asas de uma borboleta,
É a voz de um cantor,
No seu bairro do amor.
É nas pétalas de uma margarida,
É no coração de quem me deu a vida.

Margarida fez uma pausa e respirou fundo. A sua voz entristeceu, como que tocada pela nostalgia.
— Não ligue. Lembrei-me dos meus pais — disse abanando-se para sacudir a tristeza.
— O seu reino parece não ter fim — observou António.
— As fronteiras do meu reino são os limites da minha imaginação e essa, felizmente, é interminável. Sabe que até hoje muitos são os que me visitam. Permanecem em mim por algum tempo, deixam lá a sua marca e depois desaparecem; existem os que nunca mais voltam e os que regressam repetidas vezes. São os meus súbditos! Os meus meninos a quem carinhosamente trato por Margaridos. No entanto, é a primeira vez que abandonei o meu reino em busca da pessoa certa. Aquele a quem quero pedir o mais importante dos favores. Essa pessoa, António, é você! Posso contar consigo?
— Sim, claro. Será uma honra.
— Antes de partir, deixo-lhe algo que lhe imploro faça o favor de entregar na morada que lhe vou dizer. Por favor, não falhe, disso depende a minha felicidade plena — Margarida segredou a morada a António, pousou-lhe um suave beijo na testa e desapareceu.
No instante seguinte António regressou à sua forma natural. Ao seu lado, uma linda margarida olhava para si. Pegou nela e seguiu para casa, sentia-se cansado, precisava dormir e retemperar forças. Sempre que ocorria esta metamorfose, ficava esgotado, muito mais desta vez, após as emoções vividas com a fantástica Margarida.
Estava determinado a cumprir o pedido da sua amiga. Levantou-se manhã cedo, fez a higiene diária, tomou o pequeno-almoço e saiu. Apossara-se de si um nervoso miudinho, uma espécie de frenesim. «O que iria encontrar por detrás daquela porta? Quem seriam as pessoas a quem tinha que entregar a flor?»
Subiu as velhas escadas de madeira do prédio antigo, parou no primeiro direito, suspirou, ganhou coragem, agarrou no batente em ferro — tinha a forma de um punho cerrado — e duas vezes bateu-o contra a porta. Alguns segundos depois esta abriu-se e surgiu um senhor idoso. Era de estatura baixa, o corpo um pouco dobrado pelo peso da vida, cabelos fartos, grisalhos, do rosto enrugado sobressaíam os olhos doces, porém esmorecidos.
— Bom dia. O que deseja? — perguntou o velho senhor.
— O senhor não me conhece, mas — António não sabia bem o que dizer — ontem conheci uma pessoa muito especial que me pediu que viesse a esta morada entregar-lhes esta flor. Essa pessoa chama-se Margarida.
António entregou a flor à esposa do senhor, que entretanto se aproximara dele e lhe apertara a mão com força.
— Por favor, entre e sinta-se como em sua casa — disse o homem com a voz embargada pela emoção.
— Como está ela? Está bem? — perguntou a senhora com os olhos humedecidos pelas lágrimas.
Ao mesmo tempo comovido e admirado, António respondeu:
— É a pessoa mais feliz que conheço. Quase me atrevo a afirmar que será a mais feliz do mundo.
O casal sorriu! Olharam um para o outro por um breve momento e abraçaram-se ternamente… em silêncio.
— Obrigado. Muito obrigado. Não sabemos como lhe agradecer. Não imagina como nos fez feliz ao trazer-nos notícias da nossa filha há tantos anos desaparecida — disse a senhora, que se levantou e abraçou António.
— Também pediu que lhes dissesse uns pequenos versos — observou António com meiguice.

O meu reino é numa nuvem de algodão,
Numa bola de sabão,
........................................
É a voz de um cantor,
No seu bairro do amor.

António viu-se interrompido pelas suas vozes comovidas.
— É nas pétalas de uma margarida — murmurou o pai.
— É no coração de quem me deu a vida — sussurrou a mãe.

A DERROCADA


I

A chuva tinha caído copiosamente durante todo o dia. O vento puxado a sul fazia a água bater em bátegas nos telhados zincados das casas que se enfileiravam junto a uma ravina à saída de uma aldeia do Alto Minho.
Zé Zeferino tinha deixado o café do Tinoco mais cedo que o habitual e, ao ouvir na televisão que o tempo ia piorar mais e antes que isso acontecesse, decidiu regressar a casa e aproveitaria para pôr em ordem algumas coisas da sua loja.
A loja que recebera do patrão Samuel, de uma maneira um pouco estranha, segundo diziam as más-línguas, resultante de um suborno, já que a verdadeira herdeira, a esposa, apesar de o ter deixado, segundo constava, nunca veio reivindicar a posse da loja após a sua morte.
A loja era uma casa de dois pisos. No rés-do-chão era a loja do tipo tem tudo, desde ferragens, tintas, madeiras, plásticos, etc., separada por uma tosca parede de um outro local, destinado a um pequeno mercado alimentar, com artigos de primeira necessidade.
O andar superior era destinado a habitação. Vivia neste local já ia para cima de quarenta anos. Primeiro, num dos quartos que o patrão lhe cedera quando deixou a casa paterna e veio trabalhar para a loja e, depois, como senhor de todo o espaço habitacional comercial. Toda a sua vida praticamente resumia-se à volta desta loja, mas, justiça lhe seja feita, conseguiu, à custa de muito trabalho e de algumas habilidades, fazer da loja a mais conhecida de toda a aldeia.
Zé Zeferino rondava os 60 anos, constava que ainda tinha os seus pais vivos, mas nunca se referia a eles, e amigos que se conhecesse poucos ou nenhum.
O vento e a chuva redobravam de intensidade, Zé Zeferino arrumava numa das prateleiras umas latas de tinta que tinha recebido de um fornecedor. A prateleira cismava em não aceitar as latas e, sempre que ele colocava uma, esta deslizava e caía no soalho. Soalho que reparou, num misto de espanto e medo, e que se encontrava inclinado; a casa estava a ceder. Alguns artigos, juntamente com as latas de tinta, tinham-se precipitado em direcção à porta das traseiras, acumulando-se à saída.
O vento zunia e relampejava, ouviu-se um forte trovão, a luz apagou-se e a casa cedeu. Zé Zeferino, aos apalpões, procurou a porta da frente que dava para a estrada. Não teve oportunidade de lá chegar, ela veio ter consigo. O estrondo foi tremendo, o terreno cedeu e a casa foi-se desfazendo pela ravina abaixo, sendo acompanhada nesta derrocada pelas casas vizinhas. Zé Zeferino, aos trambolhões dentro da casa, foi arrastado nesta viagem, breve no espaço mas longa no tempo, até ao fundo da ravina.
Depois da queda e das réplicas das derrocadas parciais, o silêncio pousou sobre os destroços. Agora, só se ouvia a chuva e o vento que parecia querer abrandar. Pouco a pouco o silêncio foi substituído pelas vozes dos habitantes da aldeia que vinham em socorro das prováveis, quase certas, vítimas.
Os primeiros habitantes que chegaram ao local depararam com uma cena terrível. A casa de Zé Zeferino e as casas contíguas tinham desaparecido da beira da estrada e, apesar da fraca iluminação pública, vislumbrava-se no fundo da ravina aquilo que, momentos antes, eram casas daquela aldeia minhota.
Zé Zeferino tinha sobrevivido à queda mas ficara preso entre os destroços. Deitado de costas sobre uns rolos de rede de capoeira que vendia na loja, um barrote de madeira do travejamento da casa tinha-lhe aprisionado os dois pés e um outro tinha-lhe passado perto da cabeça e atravessado no peito, prendendo o braço esquerdo contra o que restava da porta das traseiras da casa. O outro braço tinha ficado debaixo do que restava da prateleira onde tentara, momentos antes, colocar as latas de tinta. Zé Zeferino estava imobilizado.
O soalho que fora do quarto de dormir tinha-o acompanhado intacto durante a queda da casa e ficou incrivelmente preso entre os escombros por cima da cabeça, escorando toda a terra desprendida das paredes da ravina, evitando que tivesse sido esmagado. O soalho, agora a fazer de tecto, encontrava-se a uma distância razoável, permitindo que permanecesse naquele local com ar suficiente aguardando salvamento. O lugar estava horrivelmente escuro.
As buscas à procura de sobreviventes começaram. Os bombeiros voluntários da vila que foram chamados ao local do sinistro chegaram com a rapidez habitual, mas não estavam preparados para uma situação do género. Costumavam apagar fogos e não resolver problemas de derrocadas, mas como estavam empenhados em fazer algo pelos seus conterrâneos soterrados, instalaram uns holofotes para iluminar o local e desceram pela ravina, para analisar a situação. Pouco podiam fazer, o amontoado de destroços era de tal maneira que era necessário a presença de uma grua. Começaram a chamar pelas pessoas na expectativa de identificar os locais onde pudessem estar sobreviventes. Algumas vozes ouviram-se mas Zé Zeferino, entretanto, desmaiara.


II

O dia estava despontar, a chuva tinha parado por completo e o sol começava timidamente a aparecer entre as nuvens, confirmando o velho ditado: «Depois da tempestade a bonança.»
Os bombeiros, com a ajuda dos habitantes, já tinham, durante a noite, resgatado dos escombros algumas pessoas, umas com vida, outras infelizmente sem a mesma sorte.
Zé Zeferino recuperou os sentidos, encontrava-se um pouco baralhado, o local onde continuava preso era de difícil acesso, mas apesar de tudo o ar estava a ser renovado e uma luminosidade estriada estava-lhe a chegar.
Não sabia por quanto tempo esteve inconsciente, o corpo estava tremendamente frio, tremia, tinha um sabor a sangue por causa de alguns dentes que se partiram na queda. Não conseguia gritar a pedir socorro, estava afónico, talvez de medo ou de alguma pancada que levara na cabeça quando da queda. Chamou, em silêncio, pela mãe, Maria, e pelo pai, José.
Meus pais, ajudai-me nesta aflição, não me deixem morrer, podia não ter sido bom filho, ter-vos abandonado quando vocês precisaram de mim, mas eu sou vosso filho, não me podem deixar neste desespero, neste túmulo, nesta escuridão, sem poder mexer-me, não é possível que vocês não façam nada para me tirarem deste sítio. E, sem as desejar, as lágrimas começaram a correr pelas faces.
E os meus vizinhos? Se calhar já foram salvos, e agora vão-me encontrar! Ou será que já desistiram? Não ouço barulho, será que estou também surdo? Tentou gritar, mas da sua boca não saiu nenhum som. Começou a chorar convulsivamente. Eu não mereço morrer, talvez tivesse feito muitas coisas erradas, mas se tenho que pagar os meus erros, que seja vivo e não morto.
Zé Zeferino não conseguia saber quanto tempo já tinha passado, se minutos, se horas, se dias. Ouvia o movimento dos bombeiros e dos seus conterrâneos na tentativa de retirar os destroços. Sentia o corpo todo dorido dos trambolhões que dera. Ouvia passos no tecto na sua actual alcova de desgraça. Era esquisito porque os sons que lhe chegavam não lhe pareciam de pás, sacholas ou outros utensílios habitualmente usados para remover terra ou destroços. Pareciam passos, como quando alguém está no andar superior de uma casa e ouvem-se as passadas no andar inferior. Eram passos estranhos, pesados, estereotipados e prenunciadores de algo que não se coadunava com a situação real. Ficou à escuta, os passos deixaram-se de ouvir.
Quem quer que fosse estava a deslocar uma tábua do soalho. Ia ser libertado? Ficou ansioso! A tábua deslocou-se e apareceu a cara de uma mulher de meia-idade, com contornos luminescentes, com uns rolos a enfeitar a cabeça, debaixo de uma rede de cabelo. Fixaram o olhar um no outro. A cara afivelou um sorriso. Ele conhecia aquela mulher; era Isaura, a falecida do seu também falecido patrão. Mas como era possível ela estar ali? Já tinha morrido há tantos anos, ele até tinha ajudado o marido a enterrá-la naquela noite fatídica! Estava ali para gozar com a sua desgraça ou vinha para se vingar, o estupor da velha. Eu não tive culpa nenhuma, relembrou-se. A cara deslizou para o local onde se encontrava Zé Zeferino, acompanhando-a um corpo desproporcionado, demasiado pequeno para tamanha cabeça, mas que se foi transformando na passagem para o outro lado, tornando-se num corpo de uma velha, pesado, gordo, todo vestido de preto. A velha já não sorria, ria-se talvez da situação em que se encontrava o seu antigo empregado. Sentou-se no barrote atravessado no peito, com todo o peso do seu avantajado corpo, isso apavorou-o. Isaura nada dizia e não era preciso. Zé Zeferino adivinhava os seus pensamentos.
Era já noite, mais uma vez Samuel chegava a casa bêbado, a discussão com a mulher mais uma vez ia acontecer. Zé Zeferino, no seu quarto, gozava o espectáculo, não gostava de Isaura. Ouvia tudo, insultos, gritos, pancada, pedidos de socorro e por fim choro e silêncio; todas as noites sempre a mesma cena. Mas naquela noite estava a ser diferente. Nem insultos, nem gritos, nem choro, Samuel só dizia que ia acabar com ela, não se ouvia Isaura. Zé Zeferino, perante o inesperado da situação, foi espreitar para ver o que realmente se passava. Samuel agarrava a esposa pelos cabelos e empunhava uma faca numa das mãos. Com os braços abertos, Isaura aguardava auxílio do seu empregado. Este, mudo e quedo, ficou estático à porta do quarto. O pedido de socorro não chegou a sair da garganta degolada de Isaura. Podia ter evitado o assassínio, mas não o fez, por medo, por pensar que o patrão era incapaz de o fazer, ou por não gostar de Isaura; nunca chegou a uma conclusão. O patrão, ébrio, diz que o ajude a levar o cadáver para o quintal. Hesita, fica confuso perante a inopinada situação, nunca tinha visto um morto, quanto mais transportá-lo. O patrão ameaça despedi-lo se não o ajudar. Zé Zeferino recua e prepara-se para fugir, não sabe para onde, nem porquê. Samuel diz para ele não se ir embora que não se ia arrepender. Não percebeu o sentido daquelas palavras, mas não foi preciso perguntar nada. O patrão promete que se ele se calar e o ajudar, quando morrer a loja será sua. Enrolam o corpo num cobertor e arrastam-no para o quintal. Samuel entrega-lhe uma pá para fazer uma cova, enquanto vigia. A cova foi escavada em três tempos. Não demorou muito para que Isaura repousasse na sua última morada. Por cima da campa, junto à laranjeira, pespegaram a casota do cão; o desgraçado uivou toda a noite inteira. Ninguém desconfiou do que se tinha passado naquela noite, mesmo no dia seguinte, quando perguntaram por Isaura, Samuel inventou a história que tinha a sogra muito doente e que ela a foi tratar. O tempo foi passando, dias, meses, e Isaura caiu no esquecimento.
Agora Isaura estava de volta para se vingar dele. Continuava sentada no barrote, todo o seu corpo brilhava, olhava sinistramente o seu ex-empregado. O corpo pesava cada vez mais, cada vez era maior. Isaura retirou o xaile que tinha à volta do pescoço e o que se via não era nada agradável. O pescoço, cortado, gotejava gotas brilhantes de sangue. Na mão de Isaura aparece uma faca. Zé Zeferino não quer assistir ao que se vai passar, fecha os olhos e quando Isaura espeta a faca no peito do cúmplice da sua morte, desaparece. A dor foi temível, mais moral que física. Quando abre os olhos, uma faca feita luz estava espetada no seu peito e, perante tal visão, desmaia.



III

Acordou do torpor que se encontrava e reparou que no seu peito não estava espetado qualquer objecto luminoso, tinha sido uma visão. Os seus pensamentos fervilhavam com tão estranho acontecimento. A claridade que lhe chegava dava para ver que a situação não se tinha modificado, continuava preso sem se puder mexer. À sua volta tudo se mantinha num equilíbrio instável.
Começou a sentir-se sonolento, até bocejou, os pés e as mãos estavam inchados, a cabeça, essa, continuava quente talvez pelo excesso de pensamentos dos mais variados que lhe ocorriam, mas o que lhe estava a incomodar mais era a boca, que continuava, por causa dos dentes partidos, com sabor a sangue e a dificultar-lhe a respiração. Foi por causa deste acre sabor que lhe veio à memória o Dr. Mário Peixoto, mais conhecido por Peixotinho, derivado à sua estatura. Nado e crescido na aldeia minhota que só abandonou quando foi estudar para a universidade, regressando mais tarde, já formado, médico dentista, estabelecendo consultório na vila perto da aldeia. Mas a sua verdadeira vocação era a política, na oposição, no «reviralho», como era conhecido na altura, intervindo como estudante em abaixo-assinados e protestos estudantis na «era marcelista», valendo-lhe alguns espancamentos e passagens pela PIDE / DGS.
Foram bons amigos, tinham aproximadamente a mesma idade, mais ano menos ano, e até jogaram futebol no clube da terra, ele a extremo-esquerdo e o Peixotinho a médio. Mas por causa da triste ideia do médico querer montar um supermercado na aldeia, foi motivo de uma zanga que os colocou de costas voltadas. O supermercado, segundo Zé Zeferino, ia fazer concorrência à sua loja que recentemente tinha recebido do seu patrão que fora encontrado morto em estranhas circunstâncias. Como tal tentou demover o médico das suas intenções, mas como este entendia que era um meio de se tornar mais conhecido e que politicamente o podia projectar para um dia vir a concorrer a um lugar político, quando a ditadura caísse e não demoraria muito, foi com a ideia para a frente.
Zé Zeferino, perante este desaforo, não esteve com meias medidas, denunciou-o a um «bufo» da PIDE que parava na barbearia da aldeia. Disse-lhe que o médico e mais uns quantos indivíduos comunistas reuniam-se todas as sextas-feiras no seu consultório, em reuniões clandestinas para conspirar contra o regime. Na sexta-feira seguinte três carros com agentes irromperam, já passava da meia-noite, pelo consultório e prenderam todos os hipotéticos conspiradores. Passados alguns meses, foram todos libertados, mas o Dr. Mário Peixoto nunca mais voltou à vila nem à aldeia, abandonando o país a salto.
Zé Zeferino esqueceu-se rapidamente deste acontecimento. Que foi aborrecido ele ter sido preso, talvez fosse, mas quem semeia ventos colhe tempestades. Estes acontecimentos passados há tantos anos e a situação presente misturavam-se estranhamente na sua cabeça, já não conseguia discernir se estava a viver o presente ou o passado, tudo estava muito confuso na sua febril cabeça.
Na sua mente desfilava aquele jogo de futebol em que estavam a derrotar a equipa da aldeia vizinha por um retumbante resultado. As costas estavam a atormentá-lo devido ao imobilismo do corpo.
O campo estava cheio de gente, a equipa estava em plena força. A assistência incitava as duas equipas, os treinadores davam instruções para dentro do campo. Ouve um barulho do seu lado esquerdo, parece que estão a escavar… afinal não é verdade, silêncio de novo. Mais um ataque da sua equipa, Peixotinho, num passe magistral, mete a bola em profundidade para o lado esquerdo para Zé Zeferino, que foge à marcação do defesa, tem meio campo para correr em direcção à baliza adversária; corre, corre, corre… a bola está a tornar-se incompreensivelmente cada vez mais pequena, até que desapareceu. A assistência pára de gritar, um silêncio de morte paira no campo, Zé Zeferino parou estupefacto, olha para os colegas, para os adversários e para a equipa de arbitragem, todos estão vestidos de negro com uns paus na mão, começaram a correr na sua direcção, Zé Zeferino também corre em direcção à baliza contrária, não tem bola mas corre, corre, corre… de uma corrida desenfreada passou a saltos, cada vez maiores, salta por cima da baliza adversária, a negra multidão ululante começa também a saltar por cima da baliza, é uma enorme vaga humana, Zé Zeferino salta o muro que veda o campo, continua a correr, salta valas, atravessa vinhedos, pomares, os frutos caem à sua passagem, rebentando, espargindo, um líquido vermelho pegajoso, chega à linha de caminho-de-ferro, olha para trás e vê a negra multidão a persegui-lo com os paus levantados, não percebe porquê, até estava a jogar bem, olha para a frente e depara com um comboio a alta velocidade a vir ao seu encontro, olha para trás e a negra multidão já ali não está, começa a correr desesperadamente em sentido contrário, o comboio apita, Zé Zeferino corre, corre, corre… a linha parece que vai acabar, olha para trás, o comboio desaparecera, mas a negra multidão voltou de novo ainda mais agressiva. Chegara ao fim da linha, aos seus pés tinha um enorme precipício, as nuvens estão a umas dezenas de metros abaixo, não se vislumbra o fundo, pairam aves de rapina sobre as nuvens, a negra multidão aproxima-se numa frente alargada de muitos metros, todos com os paus em riste, na frente o árbitro do jogo com o Peixotinho de um lado e do outro um indivíduo, cara chapada de Isaura, talvez irmão, param junto dele, agarram-no, faz-se silêncio… o árbitro apita e Zé Zeferino é lançado no abismo perante a multidão aos gritos, Zé Zeferino cai, cai, cai… e acorda com o corpo coberto de suor e o coração a bater desenfreadamente. A situação encontrava-se na mesma.


IV

O tempo passava, Zé Zeferino continuava preso há largas horas no seu cárcere de terra, madeira e pedras. Entre desmaios, consciência mal desperta, alucinações e pesadelos, vai passando o filme da sua vida, presente e passado, num frenesim de emoções, medos, remorsos e esperanças.
Meu Deus, porque me estais a abandonar, eu sei que não tenho sido bom cristão, que fiz muitas coisas erradas na vida, juro-Te que me vou emendar, irei novamente à missa e cumprirei todos os sacramentos da Vossa Santa Igreja. Ave-maria, cheia de graça, bendita sois vós… já não me lembro do resto da oração, que interessa isto agora, eu voltarei a aprender todas as orações: meu Deus, tirai-me daqui.
Ouve um estrondo por cima da sua cabeça, o barulho foi aumentando, as coisas à sua volta estavam-se a mover, o seu corpo estava a soltar-se, mas ao mesmo tempo deslizava, o terreno todo se movia. O corpo rodou sobre si, a cabeça passou à frente das pernas, tudo era movimento, acompanhado com toda a espécie de coisas que por ali se encontravam. Leva uma forte pancada na cabeça com o barrote que momentos antes lhe prendia os pés. Esta nova derrocada chamou a atenção dos bombeiros que por perto removiam destroços e, numa procura mais atenta, descobrem o corpo de Zé Zeferino, mal tratado, inconsciente mas com vida; rapidamente é transportado para o hospital da vila.
Tinha sobrevivido milagrosamente ao desastre, mas a verdade é que definhava a olhos vistos.


Epílogo

Sentado numa cadeira de rodas, Zé Zeferino olhava o horizonte através da janela do quarto. O quarto, pintado com cores de hospital, tresandava a desinfectante.
O seu estado de saúde piorava de dia para dia. Os médicos não conseguiam explicação plausível para o seu estado. Não lhe foi detectada qualquer lesão grave. A pancada que levou na cabeça não passava de um hematoma sem problemas. Não conseguiam diagnosticar qual o motivo da apatia revelada pelo doente. Tinha sobrevivido milagrosamente ao desastre, mas a verdade é que definhava a olhos vistos.
A enfermeira passou pelo doente e arranjou o cobertor que lhe cobria as pernas e ameaçava cair ao chão, mas este não manifestou qualquer reacção.
O seu olhar distante procurava recordações de um passado distante ou recente? Era indiferente, tanto um como outro não lhe traziam boas recordações. Poucos foram os momentos de felicidade, se é que os teve. Um infância sem carinho, uma juventude sem ilusões, e quando se tornou homem, só o trabalho foi a única coisa que lhe restou. Alguns acontecimentos da sua vida, durante o cativeiro forçado, e que lhe amarguravam a sua existência, foram revividos de uma forma muito intensa. Arranjou sempre justificações para os seus actos, mesmo os mais vis. Os pais, Maria e José, Isaura e Mário Peixoto, entre outros, talvez até o tivessem perdoado, cada a um a seu modo, mas a sua consciência tinha agora dificuldade em aceitar. Fosse na forma de visões ou de pesadelos ou mesmo numa semiconsciência, os factos que ocorreram despertaram em si uma severa crítica ao seu comportamento passado. Estaria a pagar o mal que fez aos outros? Os trágicos acontecimentos nada tinham a ver com o seu passado? Mesmo assumindo os seus erros, poderia ele viver em paz? As ressurgidas dúvidas estavam a consumir-lhe a sua existência.
Retira o cobertor que lhe cobre as pernas e do seu corpo algo o abandona. Zé Zeferino paira sobre o quarto, tudo era de cor branca. Vê-se na cadeira de rodas que abandonara momentos antes. A cabeça pendia sobre o peito. Todo o quarto é luz. Uma inexplicável paz interior acolhe-o. Zé Zeferino percorre um túnel de luz, incomensurável, intemporal e silencioso.