segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O Mensageiro de Célio Passos

1)


«Quando Cipriano saiu do Centro de Emprego estava a chover. Uma chuva miudinha que o povo intitula de ‘molha tolos’ e que condizia às mil maravilhas com a nossa personagem. Mais uma vez vinha feliz, com as mãos a abanar, perspectiva de emprego nenhuma e ainda bem. Sentia-se muito bem no fundo de desemprego. Já ia para dois anos que a situação se mantinha. Tinha mais com que se entreter do que com um trabalho. Enquanto o ‘pau vai e vem, folgam as costas’, mais um adágio popular para acrescentar ao seu extenso reportório de uma vida plena de ócio com um final de contornos de difícil previsão.
  Mas quem é Cipriano? O seu aspecto é tosco - cabeça arredondada com algum cabelo, preto, aparecendo já algumas cãs à volta das orelhas grandes e deslocadas da cabeça. Ostenta umas soberbas patilhas. Cara sobre o comprido, com queixo quadrado, olhos grandes e sobrancelhas fartas. Maças do rosto algo salientes. Boca grande, lábios grossos, com bigode contornando os cantos da boca. Barba rala e mal cuidada. Pescoço forte e musculado.
        Veste, sempre, um blusão de couro do antigo namorado da namorada.
       Nasceu em Massarelos há 42 anos e vive com os progenitores. O pai, estivador, é a honestidade em pessoa. Dá-se mal com ele. Uma das razões, entre várias, é o facto de ter feito um desfalque numa empresa. Outra são as discussões constantes pelo facto de ele não se empenhar em procurar emprego.  Tem um filho já com 11 anos, fruto de uma relação com uma namorada. Não aceita que o filho não trate do neto e nem se preocupe minimamente com ele. O neto anda ao Deus-dará e vai lá casa, não para ver o pai ou os avós, mas para matar a fome.
  Para a mãe, o filho é o resultado do desgoverno dos governos que não arranjam empregos para os jovens e os desempregados. É um martírio e uma fonte de preocupações para aquela mãe que não vê futuro para o filho, ainda mais com uma criança.»

Valdemar Souto parou de escrever. Salvou informaticamente o texto.
Valdemar Souto é escritor. A entrada no mundo das letras foi difícil. As editoras não aceitavam os seus escritos, apesar de muitos dos seus colegas considerarem as suas obras passíveis de publicação e de sucesso junto do público.
Por fim, uma editora resolveu aceitar a sua primeira obra e a partir daí o mundo dos livros abriu-lhe as portas e alguns críticos literários fizeram-lhe boas referências.
Não dependia da literatura para sobreviver, tem outras fontes de rendimento, mas escrever foi sempre o seu sonho. Tinha publicado já um segundo livro, há seis meses, que foi um sucesso.
Tinha começado a moldar a sua nova personagem, apanhada num supermercado quando fazia umas compras, ao reparar num indivíduo digno de ser alvo de um tratamento literário. Tinha potencial a figura, o modo de trajar, a sua postura desleixada, com certeza daria uma bela personagem.
Preparava-se para encerrar o computador quando viu na barra inferior uma mensagem no «Messenger». Abriu-a.

«Caro escritor. Não sou muito pra as escritas. Tenho deficuldade em escreber, mas não poço deixar de me indgnar do modo como vocemesse me descrebe. Poço não ser um beleza, mas não sou como você diz. O relacionamento com o meu pai e com o puto é mais culpa deles que minha. Debia ter mais cuidado com o que escrebe. Cipriano-F

Valdemar ficou estupefacto, não queria acreditar no que os seus olhos viam. Devia ser uma brincadeira de algum amigo. O endereço electrónico não era conhecido, não fazia parte da sua lista, e era mais do que evidente que se tratava de alguém que se devia chamar Cipriano; mas não conhecia nenhum Cipriano, a não ser o do seu conto.
Decidiu não levar o caso muito á sério.

Valdemar gostava de escrever de manhã, por vezes começava pelas sete da manhã a sua faina literária.
Abriu o computador. Leu novamente a mensagem do “Messenger” sem deixar de sorrir com o texto. Recomeçou a escrever:

«Quando Jorge entrou em casa do irmão, por volta das 11 horas, Maurício só berrava, gesticulava com o filho, pouco faltava para lhe bater. Jorge nunca tinha visto o irmão naquela desenfreada berraria. Jorge viu que escolhera mal o dia para ir visitar o irmão. O dia era propício, porque era o feriado de 15 de Agosto e também aproveitava para almoçar com o irmão, com a cunhada e com o sobrinho. A cunhada gostava de presentear Jorge com uns almoços. Constava entre os familiares que ela tinha um fraquinho desde jovem por Jorge, mas Maurício foi mais arrojado e o irmão foi arredado do caminho do amor.
 - Mas o que se passa? - perguntou Maurício em voz sussurrante à cunhada.
 - Não precisas de falar baixo – disse Maurício exaltado.- Este energúmeno, este borra-botas, este pulha, este ‘sei-lá-o-quê’, deu um desfalque no emprego onde trabalhava. Vê lá Jorge como eu me sinto, eu, que sou uma pessoa honesta e que sempre viveu cumprindo com as suas obrigações, ter um filho que é um ladrão.
       - Mas, pai, eu...- gaguejava Cipriano.
      - Nem eu, nem meio eu. Vais primeiro devolver o dinheiro ao teu patrão e humildemente, que é como nós te ensinamos, pedir desculpa, ou melhor, perdão, pelo que fizeste e é já!- disse o pai.
      - Nem penses. É o que faltava, não vou nem nunca irei. Aquele ‘gajo’ passou a vida a explorar-me. Este dinheiro é meu por direito. Aquele ‘gajo’ não me vai pôr mais o olho em cima. Vou aproveitar o convite do meu amigo Bernardo e vou até ao Algarve. Talvez arranje lá emprego e se isso acontecer nunca mais me vão pôr olho em cima.»

         Já era uma da tarde quando a esposa de Valdemar o chamou para o almoço.
        Preparava-se para desligar o computador quando repara que tem uma nova mensagem no “Messenger”.     Abre-a.
   
    “Meu caro escritor. Paresse que continuamos na mesma. Vocemesse passa a bida a contar a istória à sua maneira, e não a berdade. Antes que nos xatemos veja se não inventa, e eu não sou para vrincadeiras. Cipriano-F

        Valdemar ficou vermelho de raiva. Isto não poderia estar a acontecer. Era ele o escritor. Era ele que dava o  rumo a história, inventando, dentro de uma lógica por ele concebida, os acontecimentos que a sua personagem iria viver. Não podia permitir intromissões no seu trabalho por parte de ninguém. Mas quem era este «alguém»? Um amigo brincalhão, um internauta que entrou no seu computador e está a tentar a estragar o trabalho. O Cipriano, inventado, esse é que não podia ser, era no mínimo surreal e para mais só escrevia as mensagens com erros de ortografia.
      Mas sempre que fazia um capítulo da vida deste homem, havia sempre uma mensagem que aparecia. Em todos os capítulos que foi escrevendo: do AVC da mãe do Cipriano; da tatuagem que Cipriano fez no braço; o reencontro com o seu ex-patrão; a zanga com a namorada em que o filho levou um “enxerto de porrada”; quando foi trabalhador por conta de uma “máfia do leste” no estrangeiro; a fuga do cativeiro com um companheiro; o jantar na casa de uma condutora que teve um acidente e que Cipriano foi testemunha e tirou-a de apuros; a viagem ao Algarve em que foi preso por suspeita de um assalto a uma caixa multibanco, mas foi solto por se ter demonstrado que não tinha nada a ver com o acontecimento.
       Valdemar Souto andava desesperado, já não conseguia dormir em condições. Em sonhos aparecia-lhe a cara do Cipriano, com os olhos arregalados e a fazer ameaças. Acordava encharcado em suor, com vómitos, uma coisa horrorosa. O problema é que não sabia como dar a volta ao assunto. Desistir do conto? Satisfazer as pretensões do Cipriano? Não. Isso era violar o direito ao livre pensamento. E fazer a vontade ao Cipriano, quem quer que ele fosse, era uma derrota e ele não gostava de perder.
        De repente, uma luz iluminou a sua mente: sabia como resolver o problema e tinha a certeza que ia ser eficaz. Sentou-se na cadeira frente ao computador e começou a urdir a trama.
 
     “Bernardo, o condutor do TIR, ia regressar no dia seguinte ao Porto e avisou o Cipriano do facto.   Perguntou-lhe a que hora ia, porque já estava farto do Algarve, de tudo o que lhe tinha acontecido e aquelas terras não eram para ele, trabalhava-se muito, preferia o Alentejo, ou melhor, a casa de sua mãe; aí, sim, é que era vida.
    Na hora e sítio combinados, lá estava Cipriano com os seus parcos haveres pronto a seguir viagem.
          - Bom dia Cipriano. Tudo bem? - perguntou Bernardo.
         - Melhor que bem, óptimo. Já eram horas de voltar a casa – respondeu Cipriano.
       - Por acaso hoje não estou assim muito feliz. Ontem à noite meti-me nos copos e dormi mal ‘pra carago’.   
        - Tou com um sono!
        - Comigo não podes contar. Não sei guiar esta ‘choldra’ - esclareceu Cipriano 
        - Não há problema. Se tiver sono, paramos e durmo um pouco. A chatice é que amanhã
          tenho de voltar para baixo e por isso não posso parar muito tempo.
        E a viagem começou na melhor harmonia, com bom tempo, com Cipriano a contar as suas      desventuras, enquanto Bernardo, já farto de o ouvir, cabeceava com sono.
        - Bernardo, não será melhor parares, estás com sono? – disse  Cipriano.
        - Isto passa. Em Alcácer do Sal fazemos uma paragem - respondeu Bernardo.
        Atravessavam o Alentejo e o calor apertava. Cipriano não resistiu e adormeceu.
       Bernardo fazia um esforço tremendo para chegar a Alcácer sem adormecer. Mas bastou uma fracção  de segundo e Bernardo adormeceu, bateu com a cabeça no volante e o TIR, que rolava a uma velocidade razoável, descontrolou-se e bateu no separador central;  entretanto Bernardo acorda,  tenta endireitar o TIR, mas o “bicho” não correspondeu aos seus desejos, bateu novamente no separador central e capotou sobre a via contrária.
        Os bombeiros, a polícia e o 112 apareceram com a rapidez que tais momentos justificam.
 Foi preciso desencarcerar o Bernardo, que já se encontrava sem vida. O Cipriano tinha sido cuspido   da viatura e encontrava-se na berma maltratado, inconsciente. Os socorristas, com extremas cautelas  e habilidade, colocaram Cipriano na maca. O médico disse que estava vivo, mas num estado que  inspirava muitas reservas. Tinha fracturas múltiplas e provavelmente hemorragias internas, só no hospital e é que podiam diagnosticar o seu estado real.”

   Valdemar Souto parou de escrever. Iria terminar o seu conto deste modo? Não. Ia aguardar.
        Com os olhos pregados no monitor, aguardava a cada momento que aparecesse uma mensagem. 
       Mas nada. Uma hora, duas horas..., adormeceu... Acordou passado cinco horas e de mensagens nada. Riu-se  interiormente, afinal o Cipriano tinha sido derrotado neste jogo “mensageiro”.
      A esposa veio ter com Valdemar ao escritório, preocupada, porque o marido não tinha ido à cama. Valdemar disse que não se preocupasse porque estava óptimo e tinha vencido uma batalha. Dá-me o pequeno-almoço que estou com uma fome que comia que nem um Cipriano.
 Sentou-se à mesa, não era muito usual, mas nesse dia o Jornal de Notícias estava pousado à sua frente. Despertou-lhe a curiosidade esse facto. Abriu o jornal e na primeira página, não como notícia principal, havia a referência a um desastre de um TIR na A2 perto de Alcácer do Sal. A notícia, circunstanciada, vinha na página 12. Não esperou nem um segundo, folheou o jornal e reteve-se na página referida.

     «Na A2, perto do desvio para Alcácer do Sal, um TIR, carregado, despistou-se, embateu no separador central e capotou. Para além do condutor, de uma firma transportadora do Porto, um homem de 37 anos, que foi identificado como sendo Bernardo de Sousa, teve que ser desencarcerado e foi retirado sem vida. Deixa mulher e dois filhos pequenos. Para além do condutor, vinha também um outro indivíduo, que aparentava ter 40 anos, que foi cuspido da viatura e retirado da vala onde foi parar em estado muito grave, sendo transportado de helicóptero para o Hospital de São José, em Lisboa. Não tinha qualquer identificação e aguarda-se a qualquer momento que seja identificado. O trânsito esteve interdito na faixa de rodagem na direcção norte-sul durante mais de três horas.»
 
        Valdemar Souto pousou o jornal e nem queria acreditar no que tinha acabado de ler.
    
        PS – Foto-robot de Cipriano F.