sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Dimensão Intermédia de Luis Fernandes


Lado a lado, caminhava cabisbaixo, com a imagem da sua sombra, sem pensar no que lhe reservava a sorte. Aos poucos, o seu andar tornava-se mais vagaroso, compassado e aproximava-se de um estado de adormecimento. Já não sabia quem era. Tinham passado, pelo menos, duas décadas em que não se olhava ao espelho nem questionava a sua vida. Abandonado ao hábito de viver sem viver, um dia após outro, seguia rotinas interminavelmente cíclicas, vomitando receitas de saber estar em todos os seus gestos, actos e escolhas em que já não pensava. A apatia era sua companheira de dia e de noite.
Puxava cigarro atrás de cigarro e, como um burro obediente, ia seguindo o trajecto, que as suas pernas já sabiam de cor, até casa. Palmilhava todos os dias as mesmas ruas, à mesma hora, cumprimentava as mesmas pessoas, parava à frente das mesmas montras e cobiçava as mesmas coisas.
Não dava esmolas. Apesar de os pedintes o abordarem a cada passada, entendia que, se o fizesse, estaria a contribuir para desculpabilizar o Estado, para além de os descontos no seu mísero ordenado serem já mais que muitos.
           Por fim chegaria a casa, contaria três degraus até à porta do prédio, de chave na mão, pronto para abrir a fechadura, mas não o faria, já que a porta se encontrava invariavelmente aberta. Mas naquele dia não chegaria. Incompreensivelmente o seu cérebro obrigava-o a não seguir caminho. Queria transmitir-lhe alguma vontade nova ou adormecida e isso incomodava-o, impacientava-o, provocava-lhe uma sensação de indecisão. Que raio seria que a sua cabeça lhe queria dizer? Passou em revista todos os seus apetites e desejos plausivelmente normais e não encontrou solução para atenuar o seu mal-estar. Sentou-se num banco de jardim e, com as mãos envolvendo a cabeça, deixou-se levar pelos seus sonhos e viajou.

***

À frente da imagem da sua sombra, caminhava de ar triunfante, pensando no sucesso que a sorte ainda lhe reservava. Progressivamente os seus pés pareciam acelerar e o seu andar aproximava-se rapidamente de um voo. Sabia perfeitamente quem era. Olhava-se todos os dias no espelho confirmando que era realmente quem queria ser. Ao longo dos anos construíra uma imagem de si próprio que só se coadunava com um estilo de vida de um triunfador. Era um criativo de sucesso, que nunca se conformara com uma vida vazia e que se obrigava a viver, dia a dia, como se fosse uma vida nova, onde não havia espaço para o esperado, para a rotina, em que qualquer decisão era livremente pensada. As emoções tomavam conta dos seus dias e noites. 
Deixara de fumar há alguns anos. Agora, só fumava charutos Monte Cristo que os clientes lhe ofereciam como reconhecimento das suas ideias criativas, ou simplesmente pelo snobismo próprio do seu modo de ser e estar. Fazia do acto de fumar um prazer, assim como procurava prazer renovado na construção de um caminho sempre novo quando seguia o trajecto até casa. Procurava paisagens e sítios novos, cheiros e sensações pouco usuais, que só eram possíveis pela presença de pessoas diferentes e estímulos variáveis.
Quando parava o carro nos semáforos e os vendedores da revista Cais o abordavam, encontrava forma de lhes dar algum dinheiro sem ficar com o exemplar da revista. Não concordava com esmolas, mas achava de louvar o esforço daquelas almas que passavam horas entre os carros à procura da quantia suficiente para uma bucha e um copo de vinho.
 Ao fim de uma hora, com uma sensação de leve desconforto, acabaria por ir para casa. Já próximo, procurou o comando eléctrico da porta da garagem. Parou o carro e reparou que se encontrava na sua rua, mas a realidade que o circundava era completamente estranha. Não eram os mesmos prédios, nem sequer os seus vizinhos. Ao assomar à porta do prédio, tropeçou num lance de três degraus que nunca ali tinha estado. Invariavelmente esquecia-se de tirar a chave do bolso para abrir a porta do prédio, cuidadosamente fechada por todos os inquilinos, mas esta, de forma inexplicável, encontrava-se aberta. Começou a duvidar da sua sanidade mental, tendo-se afastado do prédio, caminhando vagarosamente. Seria possível ter-se enganado? Com medo de si próprio deixou-se arrastar para um estado de adormecimento que o obrigou a parar. Que raio seria que lhe estava a acontecer? Avistou um banco de jardim com um sujeito sentado que envolvia a cabeça com as mãos e, sem ser sua vontade, caminhou até ao mesmo. Os seus joelhos, fraquejando, diziam-lhe que tinha de se sentar. Alguma coisa lhe transmitia uma vontade nova ou adormecida e isso incomodava-o, tornava-o impaciente, provocava-lhe uma sensação de indecisão. Passou em revista todos os seus apetites e desejos plausivelmente normais e não encontrou solução para atenuar o seu mal-estar e, com as mãos envolvendo a cabeça, deixou-se levar pelos seus sonhos e viajou.
Não sei se em sonho ou em vigília, levemente entorpecidos, os dois homens miraram-se olhos nos olhos. Tudo neles era semelhante. Mais do que uma imagem de espelho, representavam o negativo um do outro. Tocaram ambos os rostos e a sincronia dos seus movimentos era assombrosa. Aquilo que ao princípio causava estranheza tornou-se um divertimento que durou alguns minutos. Será que estavam loucos. Será que apenas um deles existia, sendo o outro imaginação?
Caminhando lado a lado era o cheiro a maresia que os guiava. Por fim, olhavam do cimo de uma rocha o rebentar da ondulação. Em sintonia disseram: “Um de nós tem de desaparecer, esta dupla existência irreal tem de terminar sem que o mundo se aperceba.” Já irritados, pensaram, no seu íntimo, que bastaria um leve encontrão para terminar aquela farsa. O corpo cairia do cimo das rochas e, inerte, seria arrastado para o mar alto. Mas abandonaram a ideia com medo que o outro a estivesse a ter também. Viajar para o estrangeiro também não era solução – provavelmente, escolheriam o mesmo país e a mesma cidade para se refugiarem. Só havia uma solução. Tinham que aprender a ser diferentes. Qual deles estaria disposto a abandonar os seus gostos, os seus prazeres, os seus hábitos? Nã, não era por aí que se poderiam entender. 
Assumir as parecenças apenas por serem sósias estava fora de questão. Ninguém acreditaria em coincidência: a cor dos olhos, o timbre da voz, os tiques gestuais e os vícios de expressão. Não tinham a certeza se apenas eles se viam um ao outro ou se eram visíveis para toda a gente. E se apenas um deles fosse visível, qual deles seria? Caminharam estrada fora, ao longo da costa. Entraram num café e pediram uma bica. O empregado que estava a servir dirigiu-se-lhes no singular. Ora, então, havia um deles que não era real, só faltava descobrir qual. Mas, oh não, o empregado só trazia uma chávena na mão, mas quando a colocou no balcão, cada um deles ficou com a sua chávena à frente.
Era de dar em doido. Nada deixava adivinhar que fossem encontrar explicação para este fenómeno. Remoendo ideias sem nexo, não queriam aceitar, de forma pacífica, que tivessem de se aturar um ao outro pelo resto das suas vidas. O que aconteceria na intimidade? O que aconteceria quando tentassem seduzir a mesma mulher? E se o conseguissem fazer, qual seria o afortunado que se deleitaria nos braços quentes da amante?
Mas se denunciassem previamente as suas intenções e os seus desejos, bastava um deles partir em sentido inverso, ou abdicar das suas vontades. “Se eu for para a direita, tu vais para a esquerda, e vice-versa. Basta termos um pouco de boa vontade e aceitarmos resignadamente a nossa sina, dia sim, dia não. Hoje existo eu, amanhã existes tu!”
Existir, dia sim, dia não, era uma perspectiva deprimente para duas pessoas habituadas ao rolar dos dias. Já existir, ora de dia, ora de noite, parecia-lhes mais aceitável. Desta forma poderiam partilhar amigos, amantes e projectos e desfrutar dos mundos um do outro de uma forma plena. Poderia até dar certo! O problema seria arranjar formas de entretenimento para o que permanecesse enclausurado de dia, visto que à noite bastaria aproveitar o sono. Só a ideia de tentar causava calafrios a qualquer deles – no fundo, não era apenas a existência dos dois que estava em causa, era também a imagem de um e de outro, assim como o tipo de vida, a escolha da ocupação profissional, visto que teriam de optar pela de um, ou pela do outro. Ainda não tinham perguntado o nome um ao outro. Talvez isso pudesse fazer a diferença, mas foi uma esperança vã. A ansiedade ia-se somando à tristeza e a duplicação de sentimentos tornava-os altamente “amplificados”, mas, espera aí, as suas lembranças não coincidiam, os passados não se cruzavam, claro que não, apenas se tinham conhecido nessa manhã — como haveriam de fazer com que as suas vidas se separassem para sempre? Já tinham ouvido falar em dimensões existenciais paralelas, provavelmente um deles teria atravessado o portal para a dimensão do outro! Sendo assim, ainda havia esperança. Teriam de rever o trajecto percorrido nesse dia e voltar a percorrê-lo de forma a encontrarem de novo o portal.
Recordar não foi difícil. Era um presente ainda muito próximo e limitaram-se a descrever um ao outro o que tinham feito e por onde tinham passado antes de se terem encontrado. Rapidamente desenharam os dois itinerários. Neles constavam tanto os locais como os tempos gastos em cada um deles e tentaram ser o mais rigorosos possível nessa avaliação – já tinham lido histórias de ficção, em que a variável temporal se revelava fulcral para encontrar o portal interdimensional aberto. Engraçado, nunca nenhum deles tinha acreditado em fenómenos desta natureza e agora, desprendidos do seu racionalismo, vagueavam, já sem a protecção do antigo cepticismo, por suposições abstractas, em que apenas a crença cega, quase como uma fé, os poderia empurrar para as suas buscas com alguma esperança e optimismo. Naquele dia nada mais poderiam fazer se queriam reviver os horários das suas actividades.
Depois de cada um deles ter procurado voltar a casa, sem obter qualquer sucesso, sentaram-se debaixo de uma árvore e fecharam os olhos numa tentativa frustrada de encontrarem, mesmo que por breves instantes, o sono.
Na manhã seguinte, ainda de madrugada, começaram a fazer planos para a reconstituição do dia anterior. Sem saber qual deles teria saído da sua dimensão, não poderiam acompanhar-se um ao outro e certificarem-se de que nenhum pormenor lhes escaparia. Poderiam trocar de itinerários, mas seria difícil conseguir cumprir os tempos previstos, já que cada um deles desconhecia as rotinas do outro. Teriam que tirar à sorte, consumar uma das reconstituições e, se não tivessem sucesso, recomeçar no dia seguinte a reconstituição do trajecto do outro. Uma moeda atirada ao ar foi o suficiente para determinarem o caminho a percorrer nesse dia.
Calhou a vez ao criativo, que se aproximava muito mais de uma personagem de ficção, e o outro pensou: “Uma vida de sucesso neste mundo é uma realidade pouco provável ou quase de ficção. O normal era a existência de falhados, capazes de viver com muito pouco e aspirar a muito pouco — submissos, obedientes…” Puseram-se a caminho. Sem automóvel, não seria fácil chegar ao destino pretendido. Deveriam entrar na agência de publicidade antes das 8.15h, hora em que o criativo sempre cruzava a porta do edifício. Dobraram a esquina que antecedia a rua pretendida e uma expressão de apreensão tomou conta do criativo – não reconhecia lojas, nem prédios, nem as pessoas que passavam apressadas. Ainda deveriam ter tempo para reconstituir o trajecto do outro. Desceram as escadas da estação de metro mais próxima e tomaram o primeiro comboio que passou. Percorreram toda a linha, passando por estações que nunca tinham visto antes e nem sequer os nomes coincidiam! Definitivamente, estavam ambos fora das suas próprias dimensões existenciais.
Perante o desespero de não encontrarem qualquer sinal que lhes servisse de referência, sentiam-se perdidos. Foi nesta altura que olharam para a página frontal de um diário. O Notícias da Cidade, ao contrário do habitual, não tinha qualquer data e repararam que notícias antigas dividiam espaço, nas mesmas páginas, com notícias actuais e isto sem qualquer referência cronológica, como se o conteúdo daquele vespertino reflectisse uma desorganização temporal completa ou uma desmemorização global. Encontravam-se numa dimensão descaracterizada, onde os maiores sinais de valorização do humanismo e da democracia se mesclavam com chacinas brutais e escravatura.
Só podia ser loucura. Perdidos, os seus olhos estavam vidrados e encheram-se de lágrimas. Olharam-se e abraçaram-se, encontrando a união. Apesar dos dois pensamentos permanecerem individualizados, acreditavam que fosse uma questão de tempo – eram agora um e um só corpo. Almas sobrepostas, perfeitamente coerentes e encerradas num mesmo corpo. Ambas as existências, fora das suas dimensões existenciais e cruzando-se numa terceira, tinham encontrado a harmonia. Sem referências temporais, a confusão era inevitável. Percebiam agora. Aquela era uma dimensão intemporal, sem passado, futuro ou presente. Todas aquelas gentes que se cruzavam com eles nas ruas tinham passado por processos idênticos. Estavam para sempre condenados à vida eterna. Caminharam sem rumo, transportados agora por um só corpo, e perderam-se nas trevas…