segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Destinos Trocados de Célio Passos.


Albano Centeno fechou a mala. Era médico-cirurgião e estava em Paris, onde tinha acabado de assistir a um congresso e ia, dentro de algumas horas, para Nova Iorque dar uma conferência a convite de um instituto americano. Enquanto cirandava pelo quarto para verificar se não se esquecia de nada, tinha a televisão ligada num canal francês. Por momentos a emissão foi abaixo, o que alertou Albano; o ecrã tinha ficado todo azul. Ia mexer no comando quando, inesperadamente, aparece a cara da filha Sara a dizer, numa voz muito calma: “Não te preocupes pai, que eu estou bem!”. A emissão de seguida retomou a programação normal. Albano ficou estupefacto. O que significava aquilo? A filha Sara também era médica, pediatra, e estava numa ação humanitária no Mali. Pegou no telemóvel e tentou ligar à filha, mas esta não atendeu. Alterado com o sucedido, ligou para Portugal para uns parentes, para ver se sabiam de alguma coisa. Nada sabiam. Se tivessem alguma novidade que o informassem. Tentou falar com o filho Ricardo que estava em Inglaterra. Disse-lhe que tinha falado com a irmã há três dias, e que estava tudo bem. Falou para o centro de operações do apoio humanitário em Bamako, mas estabelecer a ligação foi impossível. Albano tinha o avião para Nova Iorque, dentro de quatro horas, e não podia faltar. Deixou o hotel, meteu-se num táxi, e foi para o aeroporto Charles de Gaulle. No caminho, preocupado, recordou a cena da televisão e lembrou-se que, em tempos, se interessou, por curiosidade, pela parapsicologia, mas como cientista que era, não lhe dava nenhuma credibilidade. Dizem que a parapsicologia explica estes fenómenos, chamam-lhe telepatia, e recordava-se de ter lido que se tinham registado mensagens mentais entre duas pessoas, distanciadas de muitos quilómetros. A “gate” para o voo de Nova Iorque era a 10. Já se processava a entrada dos passageiros. Albano colocou-se na fila. Ao lado, na “gate” 9, processava-se um embarque para outro destino. O que na realidade se passou, Albano ainda hoje não sabe explicar. A verdade é que, apesar de todas as verificações ao bilhete, Albano entrou no avião do outro destino. Estranhou o facto de ver tanta gente de raça negra, mas não se admirou, pois que,  Nova Iorque cada vez mais,  tem cidadãos afro-americanos. O avião descolou. Caiu num sono perturbado, agitado, nem deu conta das mensagens que as hospedeiras e o comandante, a espaços, davam. Passadas algumas horas, o avião começou a aproximar-se de terra. Albano despertou. O comandante do avião comunicava que estavam a aproximar-se do aeroporto de Bamako Senou International, no Mali, dando informações meteorológicas com uma voz tranquila. Albano começou a suar. Chamou a hospedeira de bordo, e explicou o engano que cometera. A hospedeira disse que não havia solução, só quando chegassem a Bamako é que se podia solucionar o caso. Já que se encontrava no Mali, ia aproveitar para visitar a filha. Teria que descobrir onde seria o centro de apoio da ONG, local onde Sara se encontrava a trabalhar e inteirar-se se algo de anormal se passava. Saiu do avião dirigiu-se para a aerogare e, para espanto seu, tinha um militar francês com um cartaz com o seu nome. Dirigiu-se ao militar e identificou-se.
Como sabe que eu vinha neste avião? - Perguntou.
A sua filha disse-me que o tinha contactado, e que o senhor doutor vinha neste voo - respondeu num bom português. O militar era luso-francês.
Albano não tinha recebido qualquer tipo de mensagem da filha, nem pensava ir a Bamako. O seu destino era à Big Apple e, enigmaticamente, estava a aterrar no centro de África. O militar disse ao motorista para se dirigir ao Hospital Gabriel Touré. Albano desconhecia o que se estava a passar, deixou-se transportar, contudo, fez uma pergunta ao militar:

        - Porquê o hospital? O militar informou-o que a filha tinha tido um acidente e que estava internada. O pânico tomou-o de assalto. Dirigiram-se a uma enfermaria e Albano encontrou a sua filha a dormir, apresentando sinais evidentes de graves ferimentos. O médico do hospital que veio ao seu encontro, informou-o que ela tinha sido apanhada num confronto entre as fações em conflito no Mali, tendo sofrido várias escoriações pelo corpo e um hemorragia interna, mas que já tinha sido operada e que estava fora de perigo. Albano puxou de uma cadeira, sentou-se junto à cama e pegou-lhe na mão. Teve tempos infinitos a olhar para a filha. Quando o cansaço estava a vence-lo, a filha acorda e olha para o pai: “Eu tinha a certeza que vinhas! Ainda bem que estás aqui; dás-me força! “. Albano sorriu e algumas lágrimas correram-lhe ao longo das faces. As idiossincrasias que tinha acerca dos fenómenos telepáticos, começaram a ceder.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Optima citissime pereunt (O que é bom não dura) de Delmano Graça.


Já lá vão alguns anos que se reencontraram, depois de muitos anos esquecidos da existência de um e do outro. Foi Inês que o procurou (para saber como estava) depois de saber que o infortúnio lhe tinha batido à porta. Quem atendeu o telefone foi a mãe dele.
Pedro, após ter conhecimento do telefonema de Inês, estranhou. Mas, ingenuamente, acreditou na costela de filantropa dela. “Ainda há gente boa”! Pensou. Não ligou por aí além, mas ficou curioso. Também a ela a vida lhe tinha voltado as costas! Soube-o passado alguns dias quando lhe telefonou. A desventura bateu-lhes à porta, mas havia que ser fortes e resistir. Telefonaram-se durante algum tempo e depois combinaram encontrar-se. Pedro foi ter com Inês a um local previamente combinado. Foi bom verem-se, mas as coisas não correram de feição. Passaram a falar-se com alguma frequência! Porém, os encontros amorosos ficavam um pouco aquém do que pretendiam. Havia qualquer coisa a inibi-lo e, por mais que ele tentasse, o que achava dever e fazer, não era capaz. E assim, foi pensando que tinha perdido a capacidade de amar. E tinha mesmo!
Foi em agosto que tudo aconteceu. Um qualquer dia, marcaram encontro para o fim da tarde. Pedro esperava-a numa alameda de árvores frondosas, pouco movimentada, numa ermida próxima dos locais onde passavam férias. Uma amiga de Inês foi levá-la ao local combinado. Já se não lembram se foram rezar a Nossa Senhora, mas se não foram, ela ajudou-os na mesma! Mas, creem que sim!
Foram depois jantar a um restaurante da moda a uns quilómetros dali… E correu de tal forma bem que até a servente, responsável pela carta de vinhos e seu serviço, uma holandesa em Portugal, se tornou cúmplice e colaborou naquele idílio. Anke serviu-lhes (oferta da casa) um espumante bruto – Vértice e, a convite dele, também brindou. Que não devia, disse-lhes. A Anke não se lhe foi do olho a situação daqueles dois simpáticos amantes (amantes, são pessoas que (se) amam). Pedro e Inês ficaram amigos dela, e ela também não os esqueceu. O jantar correu bem. Ambos acharam que aquele restaurante mudou um pouco o rumo, do rumo que haviam traçado para eles.
Curioso! Passaram alguns anos e lembram-se perfeitamente bem daquilo que comeram. 
Os pratos eram brancos, retangulares e sem qualquer motivo. Eram grandes e traziam pouco. Para entrada vieram torradinhas e pasta de azeitonas. Para Inês, polvo na grelha, molho verde de pasta de azeitonas com batatinhas a murro salpicadas com feijão verde. Para Pedro, carpaccio de bacalhau. Quantidades pequenas, mas o suficiente… Os copos (para darem ritualidade à ocasião) eram de pé alto e de vidro-cristal. A ocasião merecia e o vinho espumante também! A sobremesa foi comida às “debicadelas” maliciosas, insinuantes e cheias de sensualidade. Pedro “não sujou a colher”, mas comeu-a e sabe que era deliciosa. Era bolo de chocolate negro, derretido, com gelado de frutos do bosque. Afrodisíaco? Talvez. Para acompanhar pediu vinho fino (Porto- Quinta do Crasto vintage). Inês preferiu beber do copo dele. “Tem um sabor bom”, disse-lhe. “E aquecido pelo calor da tua boca é muito melhor!” Segredou-lhe ao ouvido mordiscando-lhe o lóbulo direito. Ficou excitado, confessou mais tarde! Foi nessa altura que Pedro teve a certeza de que algo ia acontecer. E aconteceu! Bebericaram todo o vinho dessa forma. Pedro, orgulhoso de si, apressava-se a beijocá-la, esvaziando a sua boca na dela, deixando nela o melhor dele. Pedro não sabe se pediu mais algum copo de vinho, mas se não pediu, ficou a dever-se. A dever-lho. (Ah, se fosse hoje, quantos mais não pediria!)
À vinda para casa pararam na beira da estrada. Estavam com algum desejo e pressa que acontecesse o que há muito desejavam e não acontecia. Porém, não era a hora. Continuaram caminho.
Chegados às redondezas do local onde nasceram, resolveram seguir até ao local mais bonito do lugar. Fica lá bem no alto e a vastidão que de lá se enxerga não tem comparação. Mas não foi para avistar o longe que lá foram, mas sim para sentir o próximo. Não sabem que horas eram, não sabem que fase da lua estava, não sabem quem estava do lado deles, mas … Sabem que foi a hora, sabem que estava luar, e sabem que os anjos, os arcanjos, os santos e santas e Nossas Senhoras estiveram com eles. E o que tinha que acontecer aconteceu. E foi bom.
Como acto não foi grande coisa, mas foi bom pelo que desencadeou.
Corpo, alma e ego satisfeitos, foi deixá-la a casa dela. Era já dia seguinte, mas era cedo. Muito cedo mesmo. Pedro chegou a casa e não tinha sono. Não cabia em si de contente. Tinha conseguido, e a capacidade de amar estava de regresso. Parecia um adolescente. E, na verdade, tinha-se comportado como tal. (Meu Deus, como é bom estar-se sempre adolescendo!)
A partir desse dia foi “um ver se te avias”? Claro que não. Na medida do possível, apenas. Outros dias e outras noites vieram e foram, até que um dia tudo esmoreceu. E tudo acabou como começou. Sem motivo. Até que um dia recomece!? Ninguém sabe, e o que tiver de ser, será.

Sabem que, à medida que a idade avança, o desejo vai recuando. Um vento ciclónico invade-lhes a alma e os pequenos rascanhões que se vão fazendo ao longo da vida ficam registados e quando a sensibilidade aflora vêm ao de cima as agruras que os assolou ficando os sentimentos em torvelinho. É verdade que as árvores velhas também afolham, e dão frutos algumas vezes! Mas não é a mesma coisa…

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A CARTA DO AMIGO KITE de Célio Passos


Caro amigo:

Um dia destes lembrei-me de ti. Não consegui resistir e envio-te esta carta. Com certeza, não deves estranhar este facto, talvez até estivesses à espera. Já há uns tempos a esta parte que não estamos um com o outro, mas, no passado, eras uma companhia quase diária. Primeiro, quando eras menino, depois, já jovem, e, por fim, como adulto. Nas diferentes fases da tua vida, acho que desempenhei um papel diferente, mas sempre importante. Primeiro, quando menino, foi a fase de nos conhecermos, as nossas diferenças, o fortalecimento do nosso relacionamento, o sucesso e insucesso das nossas brincadeiras. Depois, já rapaz, entrei em concorrência com os teus novos amigos, a ver quem atraía mais as tuas atenções, as célebres corridas e concursos que fazíamos nos locais onde íamos passar férias, no campo ou na praia. Recordo-me, com imensa saudade, apesar da experiência perigosa porque passei, quando nas férias na casa de campo do teu tio Albano, fomos com os teus primos e um vosso amigo inglês, que me batizou de Kite, para o rio que passava junto à quinta. A certa altura, eu caí ao rio numa zona funda e com corrente. Comecei a ser arrastado perigosamente rio abaixo, e, não fosse a coragem do teu primo Rui que me salvou de apuros, não estarias a receber esta carta. Fiquei o resto da tarde a secar e a recuperar do susto. Foi uma experiência inolvidável, mas, a partir dessa altura, vocês passaram a ter mais atenção comigo. Creio que só fomos duas ou três vezes para a quinta do teu tio, mas para mim parece que foram anos a fio. Como o tempo é relativo. Os teus namoros criavam em mim um ciúme doentio, mas como eles eram todos passageiros, voltávamos, sempre, a reencontrarmo-nos. Depois, já adultos, brincámos com os teus sobrinhos, depois com os teus filhos, e um dia, como o tempo passa, com o teu neto. Não tenho dúvida que fui uma companhia que atravessou os tempos, que sempre te acompanhou, sempre atual, apesar dos nossos corpos irem amadurecendo e envelhecendo com o tempo. Feliz é aquele que tem uma criança dentro de si. Sei que naquele tempo, a tua roda de amigos e os divertimentos que se proporcionavam eram muito restritos. Nesse tempo, também, não terias muitas opções. Na escolha de amizades os tempos são diferentes. Os pais daquela altura condicionavam muito as crianças, não lhe davam tanta liberdade de escolha como as de hoje, apesar de estarem sempre atentos a todos os sinais de perigo. Hoje, as crianças têm mais liberdade, mas enfrentam outros perigos e o acompanhamento nem sempre é o desejável; há uma moeda de troca. Para os resguardar dos perigos das suas ausências forçadas, pelos afazeres profissionais ou pessoais, compensam-nos com a satisfação de desejos, oferecendo-lhes todo o género de brinquedos e jogos mas que, para além disso, destroem a sua criatividade. Isto é o que penso sobre o assunto, aceito a tua discordância, também tenho idade e o direito moral de pensar e de o dizer. Apesar de tudo, as nossas velhas brincadeiras não estão ultrapassadas, e vejo que a gente deste tempo gosta e estão para perdurar. Sei que outro dia fizeste com uns amigos uma exposição de fotografias e eu tive um lugar de destaque. Fui recordado e admirado e gostei muito de saber disso. Soube-me bem saber que ainda não deixei de pertencer ao teu grupo de amigos que sempre estão ao teu lado em que circunstâncias forem. A amizade não passa de moda.
Como sabes, continuo a viver em casa do teu filho, naquele quartinho do sótão, com umas vistas maravilhosas, e, em especial, nas noites plenas de estrelas, lembro-me de ti. Para mim foste, sempre, uma estrela. Se um dia tiveres um tempinho, e como resisto, tenazmente, à passagem do tempo, vem visitar-me que eu prender-te-ei nos meus já frágeis cordéis e voaremos por esses céus desta nossa amada cidade. Reviveremos locais em que ambos partilhámos momentos felizes, e aterraremos, como tantas vezes aconteceu, no areal da nossa praia, onde um dia me libertaste para uma vida de sonho que ainda hoje permanece intrínseca no meu delicado e já desbotado papel. 

O amigo que nunca te esquece, 
Kite



Nota: kite é a palavra inglesa para papagaio de papel.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

… Vêm tempos e outros tempos hão de vir! de Delmano Graça.


Vinte e quatro são quantos anos fez o João no mês de janeiro. Com licenciatura em Economia, mestrado em Contabilidade e Finanças pela FEUC e pós-graduação em Gestão, estava desempregado.
Após sete meses a enviar o seu curriculum vitae para várias instituições, sem nunca se lhe abrir qualquer porta, resolveu tirar o seu certificado de Inglês, mandar traduzir e reconhecer o seu diploma pela embaixada e pedir o seu registo criminal para depois partir por essa Europa fora.              
Foi ao banco, formalizou o que tinha a formalizar, arranjou cartão de crédito e multibanco e estava a postos. Foram os avós paternos (lembram-se em “Atrás dos tempos…”?) que o ajudaram na conta bancária, depositando o suficiente para viver uns meses fora, desde que não fossem cometidos excessos.
Colocou dentro da mala-trolley roupa desportiva e prática, alguns objetos pessoais, um fato de linhas modernas, duas camisas e uma gravata de seda Armani (1.ª gravata a sério oferecida pelo pai), não fosse o diabo tecê-las e serem precisos para alguma entrevista. Na mochila colocou dicionários de Inglês/Português/Inglês e de Francês/Português/Francês, os “canudos” e acabou de a encher de sonhos. Primeiro os sonhos maiores e, depois, para preencher os espaços livres, os menores. Assim, tinha a certeza que todos os ‘espacinhos’ eram ocupados.
E no dia tantos de março lá partiu de encontro ao desconhecido, mas com conhecimentos e direcionado ao Luxemburgo, onde tinha tios e primos.
A partir deste dia mudou os seus hábitos: enrolou-se na sua solidão e nos seus medos e o pai estaria longe para os poder partilhar. E ele (pai) que gostava de ser sombra dele (filho) teve que se contentar em ser a sua sombra.
Eram treze horas quando o foi levar ao aeroporto.
- Levas tudo o que te pode fazer falta? - perguntou-lhe o pai.
- Penso que sim, disse com uma lágrima rebolona a escorrer pela face abaixo.
Chegaram cedo, embora no respeitante ao bilhete estivesse tudo tratado. Feitas as formalidades legais, aguardaram, por ali, cerca de uma hora. O pai mudo, o filho calado, parecendo até que já fora dito tudo o que tinham para dizer. E de facto já!
Aquela hora de silêncio doeu muito a ambos. E a ausência de palavras também!
Chegou a hora do abraço imenso. A voz embargou-se-lhes, os olhos ficaram rasos de água e o coração ficou empedernido. Nenhum deles conseguiu articular palavra. Depois do João passar para o outro lado, então sim, já sabiam o que não disseram e mereciam dizer. O telemóvel serviu para isso. Foi o pai quem ligou primeiro, estava um vidro imenso a separá-los! E por isso viam-se.
- Amo-te filho, ouviste? Amo-te. Depois ligo-te para saber como estás.
- Também te amo, pai. Vou sentir muito a tua falta. Depois ligo-te.
O pai não arredou pé até ver o filho ir para o avião. Só depois de ele partir tomou a resolução de ir para casa. Ao menos lá poderia chorar à vontade.
Depois de ver o avião levantar nos ares, deu meia volta e algumas passadas, sentou-se e nos momentos que se seguiram abandonou-se ao sofrimento. Precisava estar consigo nem que fosse para se perder em si. Instintivamente e como que por magia, cotovelos sobre os joelhos, corpo inclinado para a frente e com as mãos em forma de cálice apoiou a cabeça nelas com o queixo espetado bem lá no fundo como se invocasse os santos. Fez-se silêncio na sala! E assim esteve que tempos!
Não sabe sobre o que divagou, mas sabe que o poder instituído, defendendo com determinação e arreganho a emigração, como forma de atacar o desemprego, tinha ultrapassado as marcas. Sabe também que foram momentos de angústia e enfastiamento aqueles por que passou. Agora e a seguir! É que os governantes tinham ultrapassado as marcas dando sobejas provas de insensatez, absurdidade e, sobretudo, falta de maturidade política. De incongruência também!
Esta política do aqui caio, além me levanto, atormentava-o e, pior do que isso, revoltava-o.
Durante a viagem deu consigo num emaranhado de pensamentos de onde saiu a custo. Ter vinte e poucos anos tem a vantagem de se ter entre mãos a grande riqueza de um futuro cheio de promessas. Hoje, quando se olha o longe não se vê este a recuar, mas sim a desafiar. Muitas vezes um desafio com um sorriso esperançoso.
É engraçado (sem graça nenhuma)!
Da desordem, que é a ordem ao contrário, nascem, muitas vezes, coisas boas. E neste caso também! Passado que está aquele estado de desgraça inicial, tudo está a confluir para um estado de graça.
Esta ausência foi um tormento! Por dá cá aquela palha, saltava-lhe dos olhos uma torrente de lágrimas enviadas pelo coração. Mas resistiu… Resistiram!
Nove meses depois, com o Natal à porta, o pai andava num frenesim! No dia em que ele chegava andou num volteio e revolteio em torno de tudo. Levantou-se muito cedo e vistoriou tudo meia dúzia de vezes. Queria ter a certeza que o seu ‘ai Jesus’ tinha tudo o que merecia. E tudo tinha que estar “ao consoante”!
Não tem conta as vezes que ele consultou o relógio, mas este de tão lento parecia-lhe avariado. Sabia que ainda era cedo, mas não conseguia esperar mais. Não era por ir cedo que o filho chegava mais cedo! Mas…
Pelo menos encontrava gente com o mesmo sentimento. A ansiedade!
Foi para o aeroporto.
O tempo de espera foi enfadonho e lentamente inquietante, até que o momento chegou. Parecia-lhe que não ia aguentar tanta emoção, mas enganou-se. Logo que o avião aterrou, de repente, acalmou e … Parecia que não era nada com ele. Via-o bonitão (tal como era), alto, elegantemente vestido e com um desejo enorme de o abraçar também. E não se enganou! Foi tal qual ele premonizara!
Ele tinha arranjado emprego, um bom emprego, na Banque Générale de Luxembourg (BGL), onde o seu trabalho era reconhecido e, como tal, a preço-justo consoante a legislação local e em vigor.
[…]
Ser jovem é ser alegre, é ser otimista, inconsciente em certa medida e aventureiro também. Pensa-se no agora, pois o tempo vai passando e se não for vivido é tempo perdido. “Il faut boire, jusqu’a l’ivresse, sa jeunesse - Charles Aznavour”, assegura.
A juventude não se pode guardar, e é pena! Ah como seria bom juntar o estouvamento da mocidade e a sensatez-sabedoria da meia-idade!
É tarde quando, muitas vezes, se olha para trás e vemos fugir, por entre as sombras, as promessas dos vinte e poucos anos.

Anteontem pelejaram uns, hoje, outros. Por motivos e com armas muito diferentes! Talvez por isso, com motivações diferentes. Porém, o coração dos que partem e dos que ficam dilacera da mesma maneira. Hoje e anteontem.
Longe vão os tempos da mala de cartão e do cabaz. Dos braços cheios de força!


Estes são os tempos em que os pais estão emprateleirados, os avós são ostracizados e aos filhos / netos são negadas as oportunidades tão a custo conquistadas por aqueles.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A Tatuagem de Célio Passos.


Desde muito novo que Ângelo gostava de tatuagens. Era vê-lo maravilhado, principalmente no tempo de verão, quando nas praias via aqueles corpos brilhantes, tatuados, com imagens, desenhos, traços e cores, preenchendo, por vezes, grandes partes do corpo dos jovens. Foram diversas as vezes que Ângelo pediu aos pais que o deixassem fazer uma pequena, mesmo muito pequena, tatuagem num dos braços. Os pais, principalmente o pai, indivíduo de outros tempos, não aceitava, de modo algum, aquelas modernices.
Contudo, quando Ângelo fez 18 anos, sentiu-se emancipado para fazer da vida aquilo que entendia, e, ao arrepio das ordens paternais, foi a uma casa de tatuagens fazer a sua primeira tatuagem. No momento, a tatuagem desejada era a de um corvo de asas abertas e olho amarelo atento, que abrangia quase as duas omoplatas. O tatuador nunca tinha feito tal obra, mas aplicou o melhor do seu saber e técnica e fez uma obra que satisfez Ângelo. Em casa, reduziu-se ao silêncio, sabendo quais as reações que adivinhava por este gesto irreverente. Foi para o quarto e, utilizando dois espelhos, admirou a obra do seu tatuador. Mas, “não há bela sem senão”, e Ângelo começou a sentir que algo de estranho se passava com o “seu corvo”. O animal não se acomodava quando espartilhado entre a roupa do seu dono. Ângelo sentia que a tatuagem se queria desprender do seu corpo. Foi falar com o tatuador, que verificou que havia partes da tatuagem que estavam levantadas, parecia que se queria libertar. O artista nunca tinha visto tal coisa e fez umas reparações. Contudo, de regresso a casa, a situação piorou. Foi para o quarto e pôs-se em tronco nu. Já não aguentava com os movimentos do “seu corvo”, que parecia querer soltar-se daquele cativeiro corporal. Assim, e perante o espanto de Ângelo, o “seu corvo” saiu das suas costas, e, crocitando, vivo, pousou no cimo do guarda-roupa. Ângelo nem queria acreditar no que via. O corvo agitou as asas, voou pelo quarto e, aproveitando o facto de a janela estar aberta, saiu num voo libertador. Ângelo fechou-se num silêncio conventual. Esperava, todos os dias ao crepúsculo, pela volta do animal. Este obrigava o dono a deitar-se de dorso nu sobre a cama e plasmava-se numa tatuagem perfeita e, deste modo, o dia findava. Durante o dia não lhe punha olho em cima. O que ele fazia e por onde andava era um mistério que aos poucos se foi desvendando. Todos os dias, em cima da mesinha-de-cabeceira, apareciam peças de ouro, cuja proveniência Ângelo desconhecia. Um dia, num dos seus regressos, o corvo trazia no bico uma pulseira de ouro, que depositou no local do costume. É conhecida a atração dos corvos pelo ouro. Ângelo ficou em pânico, como iria justificar a posse do ouro. Não o podia entregar à polícia, seria muito complicado. Lembrou-se de deitar as peças nas caixas do correio do prédio, os condóminos não iriam ficar com o ouro e o mais certo seria entregarem-no ao seu legítimo dono, por um processo que ele nem queria saber. A verdade é que, semeadas as peças pelas caixas, curiosamente, ninguém fez referência ao insólito acontecimento, cada um guardou a sua peça como se de uma oferta se tratasse. Mas no bairro começou a constar que umas “mãos leves” amigas do alheio andavam a visitar os prédios do bairro, e procuravam exclusivamente ouro, nada mais. Ângelo tinha que resolver o problema urgentemente antes que o incriminassem como coautor dos roubos, se um dia vissem o corvo a entrar no seu quarto portador de uma peça de ouro no bico. Combinou com o tatuador ir ao seu atelier, pela calada da noite, efetuar uma alteração na tatuagem original. Pensada a estratégia, Ângelo levantou-se de noite, lentamente, para não acordar o “corvo”, vestiu uma simples camisa e saiu de casa no maior dos silêncios. O tatuador já o aguardava. Ângelo explicou o que pretendia fazer. Queria que lhe retirasse o corvo e lhe tatuasse um Cristo pregado na cruz, aproveitando o máximo possível os traços do desenho anterior. Antes de começar as operações, pediu ao tatuador que lhe injetasse nas costas uma anestesia que trazia consigo. Argumentou que a tatuagem da última vez foi dolorosa. A razão, porém, era para não acordar o “corvo”. A tatuagem foi muito demorada, mas resultou em pleno. Um Cristo, um pouco estilizado, numa cruz onde outrora estava pousado um corvo. O tatuador, curioso, perguntou-lhe a razão de tal atitude, de gostos muito diferentes. Ângelo riu-se e justificou, enigmaticamente:

- É que se “Este” sair da cruz das minhas costas, o que não era a primeira vez, eu sei que “Ele” nunca mais voltará, e se fizer coisas, decerto que serão boas ações.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A Reunião de António Alvarez.


A estação do metropolitano no Campo Grande encontrava-se apinhada de gente. Aquela hora matinal era normal ter um afluxo grande, mas com o atraso motivado “por problemas na Linha Amarela”, que aparecia no placard, o cais já começava a ter falta de espaço.
Álvaro olhou para o seu relógio Seiko e verificou que faltavam 20 minutos para a hora de entrada ao serviço.
- Merda para isto! – falou com os seus botões. – Logo hoje, car..., em que precisava de chegar a horas para a “bodega” da reunião com a chefia.
- Senhores passageiros, o tempo de espera poder ser mais prolongado que o habitual. Pedimos desculpa pela situação – soou uma voz feminina nos altifalantes da estação.
- É sempre a mesma coisa nestes últimos tempos – falou o seu vizinho do lado para o “ar”.
- Tem razão! – respondeu-lhe. – Isto agora tornou-se quase ritual. Quando não é na amarela, é na verde ou na vermelha... ou o “raio que os parta”.
Tornou a olhar para o relógio e verificou que tinham passado quase 5 minutos.
- Agora já não vale a pena sair – pensou. – As filas para o autocarro já devem estar “estilo repartição de finanças”.
Tirou o jornal debaixo do braço e tentou fixar a sua atenção num artigo qualquer que lhe pudesse não o fazer pensar no tempo.
- Esses “filhos da p...” é que deviam andar de metro para saber como é – tornou o vizinho do lado ao olhar para a página do jornal onde aparecia o primeiro-ministro e alguns outros membros do governo. – Os gajos andam de “cu tremido” pago pelo “Zé Povinho”, querem lá saber da “malta”...
- É – respondeu Álvaro. – Mas alguém lá os pôs...  
Tornou a olhar para o relógio. – Fod...! Já não vou chegar a tempo – falou interiormente. – Porque é que eu fui beber a “bica”. Perdi o autocarro e mais tempo perdi...
- “Foi retomada a circulação na Linha Amarela” – tornou a voz feminina dos altifalantes.
- Bom, vou ter que entrar dê lá por onde der! – pensou e foi colocar-se estrategicamente na beira do cais a pisar já a linha amarela.
Todas as pessoas começaram a mover-se e a tomar as suas posições. O barulho do metro no túnel fazia-se anunciar.
De repente um corpo de uma jovem adolescente tombou à linha. Gritos fizeram-se ecoar por toda a estação.
- Façam sinais para o condutor parar – gritavam muitos.
Todos esbracejavam e tentavam ver o que se estava a passar. Outros viravam costas e dirigiram-se no sentido da saída. Algumas mulheres entraram em histeria. O cenário era quase “apocalíptico”.
Álvaro ouviu o chiar estridente das carruagens, sinal que o condutor tinha acionado os travões de emergência.
- Meus Deus! Não!.. – pensou  e fechou os olhos.

Um “pi” forte soou-lhe aos ouvidos. Abriu os olhos e verificou que se encontrava na cama. O tal “pi” era o “cabrão” do despertador... 

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Atrás dos Tempos... de Delmano Graça.


Estávamos na segunda metade de 50.
Aquela passividade de santo em que se encontrava, ficando à espera que o inesperado acontecesse, cansou-o. E sendo pouco o muito que possuía, pouco menos de pobre ficava se partisse apenas com meia dúzia de contos de réis nas algibeiras. Mandou fazer um bolso falso na parte de dentro do casaco, meteu lá algumas notas, fechou-o cosendo-o e estava tudo a postos. 
Fartou-se da pobreza, da rotina e do facto de todos comandarem a sua vida exceto ele. Resolveu então mondar os seus “pecados” e partir. E partiu!
Era madrugada. O galo ainda não tinha cantado e o relógio na torre da igreja ainda não existia. Quando a manhã desobscurecia, ele saiu da cama com mil cuidados para não acordar quem dormia. Preparou-se (evitando olhar para a mulher que com o coração nas mãos o seguia por todo o lado), sentou-se dois minutos nas escaleiras a olhar para dentro, rezou um pai-nosso, apertou o lábio inferior com os incisivos superiores durante alguns segundos e despediu-se da mulher com beijos de lei. Saiu pé ante pé e “fez-se ao desconhecido”.
Saiu com os pensamentos enovelados, chegando mesmo a ter medo da infelicidade que o acompanhava e atormentava. Cerrou os punhos, encheu o peito de coragem e esvaziou o medo através de todos os poros. O lusco-fusco matinal ofuscava mais do que esclarecia e obrigava-o a um semicerrar de olhos como se, com eles mais pequenos, visse mais e melhor.
Escolheu uma hora em que aldeia estava mergulhada no sono para pôr os pés ao caminho que o havia de levar ao primeiro local de embarque. Na última parte do percurso e quando sentia já as pernas fraquejar dizia para consigo: «Há que teres coragem!» Era mais uma maneira de se confortar a si próprio e não desistir. Caminhava firme e decidido e, passadas duas horas bem contadas, estavam palmilhadas duas léguas bem medidas. Encontrava-se na estação de comboios mais próxima — Pocinho —, donde partiria para terras de França.
Chegou alagado em suor. Durante a caminhada parece que ia na pegada de alguém, mas não! Antes pelo contrário: ele ia a fugir de si para tentar encontrar-se consigo, longe de tudo e de todos. Iniciar tudo de novo. Partir do nada de encontro ao tudo! Julgava ele...
A árvore das patacas estava longe. Mesmo muito longe…
Esperou algumas horas para partir e pouco depois da hora marcada partiu mesmo. Antes mesmo de se ouvir o silvar do “trem” já ele estava farto da viagem que ainda não tinha acontecido. À medida que o comboio palmilhava distâncias pensava: “Tão rico sou sem dez como sem vinte, mas desde que seja eu a decidir o meu presente, tanto se me faz que os rios corram para jusante como para montante.» Quando deu por ela estava na fronteira – Barca d’Alva. Esteve parado algum tempo. Sentou-se por ali, abriu a taleiga, tirou de lá de dentro um cibo de queijo, um bocado de borneiro, a cabaça do vinho e aliviou a fome. Este foi o seu jantar-almoço. Depois de cumpridos os cerimoniais legais  disse adeus ao seu país. Já em terras de Espanha, e com o aproximar da noite, o cansaço apoderou-se dele e embora estivesse que nem podia (sono, fome, sede e morto de tristeza, mas livre para poder pensar os seus pensamentos), adormeceu embalado pelo «solavanquear» do comboio.
Quando acordou era noite cerrada. Quem não lhe saía da ideia eram os dois filhos de tenra idade que deixara às custas da mulher. Mas um dia havia de voltar e levá-los com ele! Jurou a si mesmo que a primeira oportunidade que tivesse ia agarrá-la com unhas e dentes e juntar toda a sua família. Rezou, massacrou-se com projetos futuros e, cansado, voltou a adormecer.
Amanheceu. À medida que o “Sol subia no céu” e com o afastar do comboio, mais o cansaço de permeio, ele via o longe a recuar. Ou melhor, pensava que via!
A viagem tornou-se longa e fastidiosa. Nunca mais via a “luz ao fundo do túnel”!
Finalmente chegou a França e, depois de alguns transtornos, a Marselha. Saiu do comboio e sentia que tinha as pernas inebriadas. Mas, pior do que isso, a língua recusava-se a falar e os ouvidos a entender o que ouviam. Respirou fundo e apesar de toda aquela canseira sentiu-se descansado. Sentou-se no primeiro banco e respirou longamente. Sentiu o ar entrar e a liberdade sair pela primeira vez na vida. Amanhã ia ter tempo para abraçar uma vida nova. Chegou carregado com toda a força que tinha nos braços e uma vontade enorme de os libertar. As barreiras, com a ajuda de um parente afastado que havia de chegar a qualquer momento, levantar-se-iam certamente. 
Não conhecia muito do mundo, apenas sabia que o seu país não servia para ele. Sabia ainda que grandes fortunas são, geralmente, grandes pecados! A maior parte das vezes amassadas em suor dos outros. Naquele país e naqueles tempos, os tempos eram tempos em que, para ganhar uma ninharia, um homem honrado tinha de cuspir muito às mãos. E as dele, de tanto lhes cuspir, encontravam-se demasiado calejadas para continuar.


Eu e alguns de vós que estais a ler este conto de vida somos frutos desta geração que, para estarmos aqui, sãos e escorreitos, “comeu o pão que o diabo amassou”. Esses eram tempos e um país das meias solas. Hoje são, e é, o das solas rotas. E o pão que comemos (sendo outro) sabe ao mesmo.