No início da década
de 50, um jovem ribatejano de família de agricultores abastados quis contrariar
o seu fado e rumar a terras africanas. O Zé Tinha acabado o seu curso superior
ultramarino e preparava-se para abraçar a carreira administrativa no ultramar.
O primeiro dos seus destinos foi a Guiné. Muitas peripécias enriqueceram o seu
dia-a-dia e a sua irreverência valeu-lhe, nas três décadas seguintes, mais de
uma dezena de processos disciplinares cuja defesa tomou sempre a seu cargo,
tendo ganho todos eles. Mas foram esses mesmos processos que o empurraram por
diversas vezes para locais recônditos para onde só eram destacados funcionários
por meros castigos.
Quando iniciou a sua
carreira começou por ser chefe de posto, mas rapidamente progrediu até à
condição de inspector administrativo. Foi na condição de administrador que lhe
competia também a função de juiz e que desempenhava com bastante relutância.
Ele próprio afirmou mais tarde que tinha muito medo dos tribunais e da justiça
dos homens citando por diversas vezes que “seria cómico, se não fosse trágico,
um homem julgar outro homem”.
Certo dia chegou-lhe
ao seu posto administrativo uma queixa de um nativo que acusava outro de o ter agredido
à catanada provocando-lhe diversos golpes que o obrigaram a recorrer aos
deficitários serviços de saúde que existiam naquela altura. O Zé ordenou a dois
dos seus sipaios que procurassem o acusado, que respondia pelo nome de Alcides,
e o trouxessem à sua presença para interrogatório e possível julgamento.
Foi breve o tempo
que demoraram a aparecer no posto com o nativo contrariado mas que não ofereceu
qualquer resistência e logo de seguida iniciou-se a investigação. Não foram
necessárias muitas horas para o administrador concluir que o ataque a catana se
tinha tratado de uma reacção do agressor ao furto de um saco de sal perpetrado
pelo queixoso, o que, não desculpabilizando a agressão, atenuava em muito a
culpa do Alcides – naquele tempo o sal era um bem raro que servia muitas vezes
de moeda de troca em mercados ou como forma de
remuneração por trabalhos prestados ao governo ultramarino.
Ao Zé não restava
dúvidas que o Alcides teria de ser punido de alguma forma e a prisão,
obviamente por um curto período de meses, seria a pena mais adequada. Em
conversa com Alcides o administrador ficou a saber que ele era o sustento de
uma família composta por duas mulheres doentes e seis filhos ainda muito
pequenos que pouco ou nada o ajudariam nas lides agrícolas e se limitavam a
tomar conta dos três ou quatro animais que possuía. Ora encontravam-se
exactamente na época das colheitas e o Zé sabia que se prendesse o Alcides nem
que fosse por um par de meses isso resultaria numa tragédia para aquela família
que muito provavelmente passaria fome em todo o ano seguinte.
A decisão não era
fácil de tomar e o peso na consciência não parava de atormentar o administrador
dia e noite. Naquele período de espera até à tomada de decisão Alcides
permaneceu triste e cabisbaixo ao canto da cela que lhe tinham destinado e a
porta era guardada por um dos sipaios. No seu entendimento tinha sido
injustiçado, uma vez que tinha apenas reagido de forma, para ele, natural face
ao roubo de um bem tão precioso. Por outro lado Alcides conhecia já um pouco do
sistema de justiça dos homens brancos e sabia que o administrador estava a agir
dentro da lei e que, apesar de ser recente a sua presença naquele posto
administrativo, o administrador Zé tinha já fama de pessoa dura mas justa.
Ao terceiro dia sem
dormir convenientemente Zé tomou uma decisão. A sua decisão não se enquadrava
de todo no quadro legislativo ultramarino, mas não suportava a ideia de levar
aquela família a uma situação de fome, assim como não podia revelar perante o resto
da população que o seu humanismo representava uma fraqueza que o podia deixar
em maus lençóis em situações futuras. Mas essa decisão tinha de ter o acordo e
o compromisso de Alcides.
Assim, naquela
manhã, depois de matabichar, dirigiu-se rapidamente ao posto com o intuito de
resolver a situação de uma vez por todas. Mandou chamar Alcides para lhe
revelar que dali para a frente estaria apenas obrigado a permanecer na cela
durante a noite. De dia ficava liberto para trabalhar, mas ao pôr-do-sol teria de
voltar invariavelmente ao posto e assumir a condição de recluso.
Alcides acatou
alegremente a decisão e cumpriu rigorosamente a sua pena ao ponto de a partir
da segunda semana não ser sequer preciso que o guarda o ficasse a vigiar e ao
fim de duas semanas o administrador entregou-lhe a chave da cela, sendo o
Alcides a abrir a porta todas as manhãs e a fechá-la ao fim do dia.
Desta forma o jovem
administrador ganhou um amigo para a vida e o respeito da restante população.
No entanto, a sua conduta foi notícia que rapidamente se espalhou pelos
restantes postos administrativos e chegou aos ouvidos do seu superior,
valendo-lhe um dos seus processos disciplinares.