sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O decifrador

Pousara a mala e pendurara o casaco.
Estes gestos, passados tantos anos, eram quase mecânicos. Nem sequer pensava muito nisso. A sua mente andava absorvida com a tentativa de decifrar aqueles caracteres.
Durante muito tempo sempre fora demasiado fácil conseguir reunir todas as “peças” e decifrar qualquer enigma que se lhe deparasse, mas agora…
— Deve ser da idade! — pensava para consigo enquanto olhava e tornava a olhar.
No início, sempre que encontrava uma destas charadas, era uma obsessão enquanto não chegava rapidamente ao fim. Com a idade tornara-se um “perito” reconhecido por todos os colegas.
As “celulazinhas cinzentas”, como dizia Poirot, precisavam de ser treinadas diariamente.
Tornara a trazer os mesmos sapatos que usava em dias mais primaveris, mas hoje o dia era de sol e a temperatura aumentara bastante.
— Bodega para isto! Porque é que não vi hoje a televisão. Assim teria sabido e não teria trazido estes sapatos — continuava a “ruminar” pensamentos. No entanto, não era isso o que mais o “chateava” agora. Isso era um pretexto para não continuar a pensar nos “malditos caracteres”.
Já estava a ver a cara dos colegas a cumprimentarem-no e depois a perguntarem-lhe:
— Então Magalhães, já conseguiste resolver o “problema”?
Sabia que nas suas costas se iriam rir e achar que estava na “hora” de “arrumar as botas”.
— Ah não! Isso queriam vocês, mas eu vou conseguir!
Mais uns dias e resolveria definitivamente mais aquele problema. E depois seria ele a rir-se “entre dentes” e a gozar interiormente.
Metia-lhe raiva também a proibição que o Governo lançara, em forma de lei, de não se poder fumar em recintos fechados. Se pudesse puxar dum cigarrinho, como outrora fazia, conseguiria mais facilmente.
-Raios os partam! Se se preocupassem com “coisas” mais importantes fariam bem melhor — pensava.
Olhou novamente. Parecia-lhe um c… um o e, a partir daí, as letras eram “gatafunhos” autênticos. Os números percebiam-se bem. Um “2”, um “1”, e o resto já os sabia de cor.
Puxou da agenda e da caneta e “um a um” foi-os escrevendo, intervalando com espaços os que não conseguira ainda “decifrar”.
O telemóvel tocou.
— Sim, Sofia, sou eu! Quem é que querias que fosse?
— Não… não. Resolve tu isso!
— Pois sim… já sei! Mas agora não posso. Estou ocupado!
— Mas que raio é que te deu agora para me ligares? Não podíamos falar disso mais logo?
— Já te disse que não, porra! A gente logo fala.
— Mas para é que tu queres saber disso… agora e já?
— Desculpa mas não posso estar aqui a perder mais tempo com conversas da “treta”.
Irritado, desligou o telemóvel.
— Agora chamam-lhe “télélé”… que nome mais ridículo…
Entretanto continuou a sua ocupação.
Olhou para o relógio. Marcava 17,30h.
— Bom, está na hora! — pensou. — Que se lixe!
— Até amanhã, Senhor Magalhães!
— Até amanhã, Raimundo. Resto de dia bom!
A avenida começava a “fervilhar” de carros aquela hora.
— E ainda dizem que a gasolina está cara! — comentou de si para si. — Andem de transportes como eu!…
No entanto, antes de apanhar o “metro”, entrou na cervejaria do costume.
— Então o que é que vai ser hoje, “Sô” Magalhães? A “imperialzinha” do costume?
Fez que sim com a cabeça. Embirrava solenemente com aqueles diminutivos parvos que punham a tudo. Um “cafezinho”, uma “bolachinha”, um “pastelinho” e por aí fora.
Sentou-se no lugar do costume. Recostou-se bem na cadeira e, meticulosamente, foi retirando a agenda, a caneta e os óculos.
— Sô Magalhães, hoje não há “tremoçecos”! Quer uns amendoins prá acompanhar?
— Pois sim! Traga lá os amendoins. Mas não me dê desses que estão torrados demais. Gosto de amendoins brancos e não de pretos…
— Ora vamos lá com calma — falava mentalmente.
Aquilo dava-lhe “gozo”. Ficar a pensar e a “pouco e pouco” ir desatando “o fio à meada” era, sem dúvida, mais forte do que ele. Tinha pensado em só pegar “naquilo” no outro dia, mas o “desconforto mental” era pesado demais.
Foi ficando por ali sem dar conta do tempo. Quando tornou a olhar para o relógio já passava das 8 horas da noite.
— Ena pá, grande “bronca”! — pensou. — Quando chegar a casa vou ouvir “das boas”.
Arrumou tudo meticulosamente, pagou e saiu dali rapidamente.
Ao atravessar a rua nem se deu conta da mota que ia a passar. Sentiu uma pancada e a partir daí nada mais.
Acordou “assarapantado”. Estava num hospital mas não conseguia reconhecer qual. Olhou em frente e viu a sua perna suspensa e toda engessada.
— Senhora enfermeira! — chamou. — O que é que me aconteceu?
— Bom dia, Senhor Magalhães. Sente-se melhor?
— Sim, ou melhor, penso que sim! — respondeu. — Mas o que é que me aconteceu?
— Então não se lembra de nada? — perguntou a delicadamente a jovem enfermeira.
— Não, não me lembro de nada! Se me lembrasse, não estaria a perguntar.
— Faça um esforço. Vá lá… qual é a última coisa que se lembra de ter feito naquele dia?
— Naquele dia?! Mas eu estou aqui há muitos dias?
— Sim, há mais de sete dias, precisamente. Esteve em coma e é quase um milagre estar vivo…
— A sua esposa deve estar a chegar. Ela depois fala consigo!
Ficou pensativo a olhar a enfermeira que se afastava em direcção a outra cama.
— Mas porque é que não me consigo lembrar? — meditava baixinho.
Olhou para a mesa-de-cabeceira e viu os óculos e a agenda. Era isso… a agenda!
De repente “fez-se luz”… o enigma.
— Olá, meu querido! Sentes-te bem?
Nem tinha dado conta da entrada da sua mulher na enfermaria.
— Olá, Sofia! Sim estou bem. Bom… bem, bem não estou! Mas já acordei.
— Parece milagre não teres morrido. Tenho estado aqui todos os dias a ver se “acordavas”.
— Mas como é que tu, um homem tão prudente e minucioso, és atropelado por não teres reparado na moto?
Fez uma cara de “rapazinho arrependido”.
— Já sei, não digas mais! Andavas com aquela tua “mania” da decifração! Não foi?
Ele nem se atrevia a responder. Ouvia mas não tinha “argumentos” para ripostar.
— Acabou-se duma vez por todas! Nunca mais entras em sanitários públicos para copiares as “malditas” mensagens escritas nas portas.
Baixou os olhos e, resignado, anuiu com a cabeça.

Gravura de: José Bandeira

1 comentário:

BatRitinha disse...

Surpeendente e divertido!