sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O Túnel


A multidão estava ao rubro.
Embriagada pelo som forte, grave, pleno de distorção e emoções melódicas, salpicado pelo sibilar acutilante de um feed¬ back que teimava em fustigar impiedosamente todo aquele cenário grotesco, uma massa humana pulava e gritava, tentando cantar um refrão recheado de mensagens obscuras e apocalípticas.
No palco, num emaranhado de luzes e fumo, vislumbravam¬ se cinco vultos que pulavam energicamente enquanto cantavam e tocavam, como que possuídos por uma força exterior.
Naquele espaço fechado, naquele momento, tudo era vivido a um ritmo frenético, exagerado e louco; era uma cúpula vibrante, onde muitos aproveitavam para exorcizar todas as suas paranóias e despejar revoltas acumuladas.
Dir¬ se¬ ia tratar¬ se de uma banda de culto.
Os músicos, todos rapazes na casa dos 20 anos, de aspecto rebelde e trato descuidado, deixavam adivinhar uma vida dura, de drogas, repleta de fantasmas e monstros que habitavam a sua imaginação e pesadelos.
— Então people… está tudo bem? — gritava o vocalista para os seus fãs.
— Agora quero¬ vos ouvir a todos e não quero ver ninguém parado — berrava com todas as suas forças. — Esta noite é mesmo para partir.
A multidão, extasiada, vibrava entoando refrões cinzentos, enquanto se acotovelavam entre ritmadas ondas humanas impregnadas de fumo que as enlouquecia.
— Alex! És o maior! — tentava fazer¬ se ouvir uma fã junto ao palco, admirando cambaleante o seu ídolo.
Alex era o vocalista desta banda. Era um rapaz alto e magro, com um longo cabelo negro, comprido e liso, que teimava em marcar o ritmo como se de um metrónomo se tratasse. O seu aspecto geral era de algum desleixo, mas havia algo nele que indiciava um carácter nobre e melhores dias vividos outrora.
Naquele dia, Alex apresentava¬ se como um verdadeiro animal do palco. Cantava, puxava pelo público e corria, rodopiando o tripé do microfone por cima da cabeça.
O concerto estava já perto do seu final, mas toda a gente parecia possuir energias para continuar naquele ritmo horas seguidas, comungando daquela onda que os fazia sentir mais vivos e partilhando de todos aqueles rituais que só eles entendiam.
Alex anuncia o final do concerto:
— Adeus pessoal, até à próxima — disse ele gritando.
E os músicos desaparecem rapidamente do palco, que ficou nesse momento completamente às escuras.
— Só mais uma! Só mais uma! — gritavam os fãs aplaudindo, com vontade de assistirem a um pouco mais do espectáculo. Durante alguns segundos o barulho foi infernal.
Finalmente, no palco, para gáudio da multidão, as luzes reacenderam¬ se e os músicos apareceram envoltos por um cenário confuso e psicadélico para tocarem mais uma música.
Após uma sequência de vários encore, a banda preparava¬ se finalmente para terminar o concerto. Com auxílio dos técnicos de luz e som, o palco era iluminado por um emaranhado de luzes que se cruzavam a um ritmo alucinante, culminando com o aparecimento de um enorme arco em chamas. Alex correu na direcção do fogo e atirou¬ se em voo para o meio do círculo flamejante; simultaneamente apagaram¬ se as luzes.
Estava terminado o espectáculo. A multidão foi dispersando, saindo do recinto.
— Mas afinal onde estou eu? — interrogava¬ se Alex. — Como é que vim cá parar? Não reconheço este sítio de lado algum. — Alguém me ouve? — gritou.
Alex estava intrigado com aquele lugar onde se encontrava. Era um enorme túnel, maravilhoso, envolto numa espécie de névoa muito branca e cintilante, que se movimentava muito lentamente num ritmo de grande serenidade e paz. Parecia um túnel de algodão. No seu início o contraste absoluto de uma barreira negra e assustadora.
De repente ouviu vozes…
— Alguém viu o Alex? — perguntava o Tó P.
Tó P era o baterista da banda; andava à procura do amigo.
— Tó P, estou aqui — gritava assustado Alex. — Venham¬ me cá buscar.
Mas, para seu desespero, apercebeu¬ se que o seu companheiro tinha desistido de o encontrar, e que se ia embora.
— Vamos embora pessoal — disse Tó P para os amigos. — Ele já se foi; devia estar muito pedrado como aliás estamos todos, amanhã tratamos do material — concluiu.
Alex nem queria acreditar; conseguia ouvir os amigos, mas eles não o escutavam. Assustado, foi caminhando ao longo do túnel do qual não conseguia ver o final e, para seu espanto, verificou que, à medida que avançava, conseguia visualizar imagens de cenas passadas, através de toda aquela intensa névoa.
— Mas o que é isto!? — pensou. — Consigo ver o concerto, o público, o palco, os meus amigos e até eu próprio… e lá no fundo da multidão, eu não acredito, o meu irmão João?
João era o único irmão de Alex, três anos mais velho. As suas relações não eram as melhores, embora já tivessem sido inseparáveis em tempos. A partir de determinada altura as suas vidas seguiram rumos diferentes e incompatíveis. João formou¬ se em Arquitectura enquanto Alex deixou de estudar para se dedicar à música. João nunca concordou com esta opção, até porque na sequência do seu projecto musical veio uma vida complicada e marginal dependente de drogas e de grande sofrimento para os seus pais.
Alex continuava incrédulo a observar o irmão, discreto como sempre, observador, calmo, boa figura e imperturbável. Ele era a antítese de todo aquele cenário louco.
— Gostaria imenso de lhe dar um abraço — pensou Alex, fragilizado e vulnerável com toda aquela situação. — Ele certamente não veio ver o espectáculo, estava preocupado comigo, claro, éramos grandes amigos, fizemos muita coisa juntos e passámos momentos muito felizes; como foi possível chegarmos a esta situação? A vida é matreira — continuou. — Não, a vida não é matreira, matreira é a raposa, matreira é a raça humana.
Pensamentos de tristeza e de alguma revolta foram¬ lhe invadindo a alma enquanto ia avançando pelo túnel de onde emergiam, de quando em vez, algumas argolas de fumo, inócuo, que exalavam um ligeiro mas agradável odor.
— Será que estou a ir em direcção ao céu? — perguntou em voz alta. — Mas como posso eu admitir o céu se sempre cantei o inferno e idolatrei satã, se sempre combati todos os dogmas instituídos e seus representantes, se sempre admiti a escumalha como a verdadeira essência da vida e paradigma do ser humano não alinhado e não cooperante, nesta sociedade recheada de pragmatismos e hipocrisia.
— Bem… sempre, não — pensou. — Na verdade fui invadido por estes ideais depois de ter entrado na banda, influenciado talvez pelos amigos e também por algumas coisas que fui tomando. É uma realidade completamente distorcida.
E enquanto reflectia sobre o que tinha sido a sua vida nos últimos anos, Alex ia sentindo uma clareza de raciocínio como já não sentia há muito tempo. Era um raciocínio que se articulava e ordenava à medida que avançava ao longo daquele fantástico túnel, que lhe continuava a proporcionar imagens da sua vida como se de um filme se tratasse, mas cuja história progredia em negativos.
Alex não compreendia. Lembrava¬ se de se ter atirado para o arco em chamas e depois aparecer naquele lugar. No entanto, curioso, foi observando todas aquelas imagens que avançavam ao ritmo dos seus passos. De repente parou.
— Como é que é possível? Foi a isto que eu cheguei? — interrogava¬ se ele incrédulo. — Como é que nunca me apercebi que fazia parte deste filme de miséria humana e humilhação?
Alex assistia agora a uma imagem desoladora, feita de pedaços de caos e auto-destruição. Ali estava ele, juntamente com dezenas de companheiros de infortúnio, naquele sítio, uma antiga sucata onde ainda restavam alguns velhos carros. Era um lugar infecto, situado nos arredores da sua pequena cidade. Aqui e ali, pequenas fogueiras iluminavam timidamente aquele amontoado de ferro-velho e lixo, onde se vislumbravam pequenos grupos dispersos, desesperados, que comungavam de uma rotina que se repetia todas as noites, na tentativa de calar o sofrimento de uma ressaca de desespero e necessidade. Era uma batalha maldita, sempre perdida, mas que lhes dava uma falsa e efémera sensação de vitória. A fome e a doença estampavam¬ se no rosto de muitos que por ali deambulavam; as seringas partilhadas, os comprimidos e o fumo que passava de boca em boca eram ameaças constantes às suas vidas.
Ao fundo, numa velha carrinha, uma rapariga prostituía¬ se na esperança de conseguir a sua dose.
Era realmente uma imagem desoladora. Um verdadeiro desfile de miséria humana.
Lembrou¬ se do seu amigo Humberto, também ele em tempos frequentador daquele lugar, até ao dia em que apareceu morto na casa de banho do cemitério por excesso de comprimidos.
— Foi ele quem me iniciou nesta vida — lembrava¬ se Alex. — Naquela altura era o meu ídolo. Ele foi o primeiro líder da banda. Teve uma infância difícil e solitária no seio de uma família muito problemática. Cresceu nas ruas da cidade e precocemente frequentou as suas esquinas mais obscuras; era, no entanto, dono de uma personalidade forte e respeitado no seu meio. Lembro¬ me do dia em que fomos apresentados e ele me disse que precisavam de um vocalista. Fiquei radiante, pois o meu sonho era cantar num palco. Fui fazer um teste e acabei por ser aceite, embora a minha figura destoasse por completo com a dos outros músicos e com toda a atmosfera criada naquele lugar de ensaios. Era um barracão velho que ficava nas traseiras da casa do Tó P e que não podíamos frequentar à noite por causa do barulho. No início senti¬ me um pouco intimidado com aquele ambiente de gente diferente que fumava droga e cuja música evocava o diabo e o inferno, eu não percebia, mas a vontade de cantar era mais forte e acabei por aderir e ser enrolado naquele turbilhão de novidades. Alguns dias mais tarde, Humberto elogiou¬ me imenso, dizendo que já não imaginava as músicas cantadas por outra pessoa, mas que se quisesse experimentar uma coisa que ele tinha, eu iria sentir a música de forma diferente e cantar como nunca. Acedi. Já lá vão três anos.
Eu era apenas um jovem normal, que perseguia um sonho, o destino mostrou¬ me uma porta, uma porta errada que eu abri, para percorrer um caminho que nunca ninguém deveria percorrer. É fácil encontrar a porta de entrada mas quase impossível encontrar a da saída; julgamos ter a situação controlada, mas rapidamente somos nós completamente controlados.
Alex via a sua vida passar diante dos seus olhos e sentia¬ se triste.
— Será que é castigo? — balbuciava.
— Será que termina assim? — interrogava¬ se apreensivo. — Entreguei a minha vida ao inferno a troco de quê? Como eu gostaria de respirar o mundo, voltar a viver a vida que eu esbanjei, libertar¬ me das correntes que me oprimem e me tolhem os movimentos, retirar a mordaça que me sufoca as palavras e pensamentos, destruir esta máscara de horrores e deixar fluir um sorriso, resgatar o amor e a felicidade e gritar bem alto… sou feliz, voltei a ser feliz, não mais deixarei de ser feliz.
E, enquanto se embrenhava nestes pensamentos de libertação, Alex foi avançando no seu solitário percurso, um pouco melancólico e perdido.
Observava agora a sua cidade, que ele percorria devagar, alheando¬ se de tudo o que se passava em seu redor. Parecia caminhar sozinho no mundo, passeando o olhar num horizonte muito longínquo.
De repente parou. Alguém o chamava.
— É o Zé «Coto» — reconheceu Alex. — Chama¬ me para me pedir ajuda. Está aflito, a ressacar, implora¬ me para que lhe arranje alguma coisa; ele arruma carros para conseguir algum dinheiro mas o «negócio» naquele dia estava mau.
— Coitado do Zé — pensou. — Eu não o ajudei, disse¬ lhe que não tinha nada, menti¬ lhe.
Nesta vida dificilmente conseguimos distinguir o bem do mal, tornamo¬ nos egoístas, preocupados apenas com a nossa própria sobrevivência.
O Zé já foi em tempos um bom serralheiro, até ao dia em que ficou sem uma mão num estúpido acidente de trabalho. Ficou completamente de rastos e refugiou¬ se no álcool e nas drogas. Ele era mais um entre tantos outros que frequentavam o ferro-velho, era mais um companheiro de infortúnio que passava os dias sobrevivendo. Gostava imenso de o poder ajudar neste momento, não da forma que ele pretendia, mas tentando encontrar um caminho alternativo, menos penoso, com mais vida e esperança. Eu próprio gostaria de voltar a esse caminho se tivesse outra oportunidade.
Alex continuava a caminhar pelo túnel, agora num passo mais rápido, impelido por uma espécie de esperança apressada e ansiosa; talvez aquela situação não fosse já o seu fim, embora não encontrasse outra explicação para aquela situação e aquele lugar de aspecto magnífico, mas de contornos pouco terrenos.
Quanto mais depressa ele andava, mais rapidamente passavam as imagens; Alex continuava a percorrer as ruas, passando pelos bares que frequentava e onde por vezes tocava, pelo velho cine¬ teatro onde tinha dado o último concerto, pela sua velha escola primária, pela igreja, pelo jardim…
No jardim Alex encontrou um amigo. Falaram um bocado e encaminharam¬ se para uma mercearia.
No túnel Alex parou de repente. Estava estarrecido. Lembrou¬ se do que tinha acontecido a seguir.
— Este foi um dos dias mais tristes da minha vida — lamentou¬ se. — Como eu gostaria de poder passar uma borracha neste dia, poder voltar ao passado e corrigir esta mancha mais negra que a minha escura vida.
Em geral tinha mais facilidade em arranjar dinheiro do que os outros, ganhava algum quando tocava, mas nunca era suficiente para as necessidades. Naquele dia estava completamente perdido, fora de si. Coitada da velha senhora.
Alex observava atento a cena; ele e o amigo entraram na mercearia, um negócio antigo cuja dona era uma senhora de idade, que os atendeu com um sorriso, perguntando¬ lhes o que queriam. O plano já tinha sido previamente alinhavado no jardim e, passando à prática, o amigo de Alex disse que queria ver algumas frutas que se encontravam em caixotes no exterior do estabelecimento. A senhora dirigiu¬ se ao local para o atender enquanto Alex ficava sozinho no interior da loja. Então, conforme combinado, aproximou¬ se rapidamente da caixa registadora e retirou todo o dinheiro que pôde. Saiu, fez sinal ao seu amigo e puseram¬ se os dois em fuga, ouvindo os gritos e o choro da comerciante, que finalmente compreendeu o que se estava a passar.
A polícia apanhou¬ os pouco tempo depois, passaram uma noite na cela e foram soltos pela manhã.
— Como se não bastasse a baixeza da atitude, fomos contemplados também com a burrice — pensou Alex. — Como é que pudemos imaginar ter êxito num plano destes, nós que éramos tão conhecidos nesta pequena cidade de província? Idiotas.
Alex estava mais triste do que nunca. Sentou¬ se, fechou os olhos e meditou, mas curiosamente não se sentia sentado, era uma espécie de levitação. Isso assustou¬ o um pouco, era uma sensação que nunca tinha experimentado, resolveu então levantar¬ se e prosseguir caminho.
Várias imagens se passaram, várias cenas revividas por Alex, o desprezo por esta sua vida era cada vez maior, crescia com a indignação, crescia com a relutância de se encontrar naquelas imagens terríveis pertencentes a um mundo com janelas feitas de grades, por onde se viam as inexpugnáveis muralhas de uma outra vida que também já fora sua.
Alex não pôde deixar de parar noutra cena.
Estava ele a ensaiar no barracão com os amigos, quando de repente entra uma bela mulher. Queria¬ lhe falar. Interromperam o ensaio e Alex saiu com ela. Era a namorada dele.
— Já quase me tinha esquecido de como era bonita — exclamou Alex emocionado. — Passámos momentos espectaculares, só damos valor às coisas boas da vida quando as perdemos. A Raquel era a namorada perfeita e durante dois anos tivemos uma relação impecável. Quando entrei para a banda tudo se complicou, ela não gostava da minha nova onda. Comecei a tornar¬ me agressivo, a faltar a encontros com ela e a mentir¬ lhe, mas mesmo assim ainda me conseguiu aguentar meio ano, numa tentativa desesperada de me fazer voltar à realidade.
Naquele dia ela foi ao barracão para acabarmos a relação, dizendo que já não me reconhecia, que eu me tinha transformado num estranho e já não me aguentava mais.
Estranhamente não valorizei muito essa situação na altura e regressei de imediato ao ensaio. Estava completamente cego, perdido. Adoro¬ te Raquel.
Alex foi caminhando cabisbaixo, como ele gostaria de recuperar tudo aquilo que perdeu.
Estou aqui neste lugar… — pensou Alex. — Não sei onde estou, para onde vou, se morri, se estou noutra dimensão; quem será que controla tudo isto? Alguém me estará a ver?
— Está aí alguém? — gritou. — Quero sair daqui — berrou com todas as suas forças.
Começou a correr, por entre suaves sopros de fumo, rasgando os delicados mantos de névoa plantados ao longo do túnel, e correu, correu, até chocar de frente com outra imagem.
— É a minha mãe — disse ele ofegante. — Mãe, que saudades, onde estás? Tira¬ me daqui — implorou Alex.
Alex deparava¬ se neste momento com uma imagem particularmente triste. Os seus pais tinham percebido que o estavam a perder, que o seu filho querido se estava a afundar nas areias movediças de um mundo que eles não compreendiam nem aceitavam. Falavam com Alex. A mãe chorava e seu pai, desesperado, tentava chamᬠlo à razão. Tinha abandonado os estudos, renegado os amigos, desprezado a família… Alex respondia¬ lhes que não tinham nada a ver com isso porque a vida era dele. Bateu com a porta e desapareceu.
— Como foi possível não lhes ter dado ouvidos — pensou Alex. — Desprezei os melhores pais do mundo, éramos uma família muito unida. Sou um imbecil.
De repente Alex ouviu uma voz:
— Estás a ficar piegas ou é impressão minha? Sempre foste um rei no ferro¬ velho e agora estás armado em menino certinho?
— Quem está aí? — perguntou Alex.
— Não sabes quem sou? Sou teu amigo, tenho¬ te acompanhado nos últimos anos, tens seguido os meus conselhos e agora não sabes quem eu sou? Muitas vezes tive que lutar por ti, o teu anjo teimava em não te deixar viver a vida à vontade e muitas vezes tive que o amarrar para não te incomodar.
— Acho que estou a perceber quem tu és — disse Alex. — Vai¬ te embora, deixa¬ me, não quero mais nada contigo.
— Então isso são maneiras de tratar um velho amigo? Mas eu não me ofendo, aliás vou¬ te ajudar novamente. Já pensaste que estás a andar neste túnel há imenso tempo sempre na mesma direcção, sempre no mesmo rumo, e nem sequer sabes onde estás nem para onde vais? E que tal se fosses agora na direcção oposta? Pode ser que te surpreendas…
— Mas tu sabes o que tem do outro lado? — perguntou Alex.
— Claro que sei, mas é surpresa, não te posso dizer.
Alex estava naquele momento disposto a tudo, ele só queria sair dali e resolveu experimentar então o caminho inverso enquanto ouvia sonoras gargalhadas do seu pseudo amigo invisível.
Surpreendentemente o caminho tornava¬ se agora mais difícil. Os calmos mantos brancos transformavam¬ se em tempestuosas e frias névoas e Alex só a muito custo conseguia avançar. De vez em quando ouvia¬ se aquela voz:
— Força Alex, não desistas, estás quase lá.
Durante bastante tempo Alex foi lutando para conseguir avançar ao longo do túnel que soprava rajadas cada vez mais fortes e geladas. Parecia que algo não queria que ele fosse naquela direcção. O odor agradável que antes sentia deu lugar a um cheiro estranho e pouco agradável. Finalmente avistou um grande buraco negro.
— Reconheço este lugar — disse Alex. — Foi aqui que eu vim parar a primeira vez. Era para aqui que tu querias que eu viesse? — perguntou.
Não obteve resposta. Estava um silêncio absoluto.
— Quero sair daqui — gritou Alex.
Ouve¬ se então uma voz gélida:
— Alex…
— Não é a mesma voz… quem me chama?
— Sou eu… o teu amigo…
— Qual amigo, onde estás? — perguntou ansioso.
— O Humberto, o teu amigo Humberto.
— Humberto? Não pode ser, tu estás… morto.
— Estou aqui, Alex, olha para mim.
Alex olhou para o grande buraco negro e viu uma silhueta que se aproximava deslizando, fazendo¬ lhe sinal para se aproximar.
— Alex, anda, vem ter comigo.
— Não vou nada, vem cá tu, estou farto de escuridão.
Ouve¬ se então a outra voz:
— Vai, Alex, vai ter com o teu amigo, vais finalmente ver a surpresa.
— Anda — dizia Humberto. — Vais experimentar uma coisa que vais gostar.
Alex lembrou¬ se de como tudo tinha começado há alguns anos atrás, tinha sido exactamente o seu amigo Humberto que o tinha levado para aquela vida.
— Não — disse Alex. — Não volto a cair no mesmo erro, nem volto a experimentar nada que tenhas para me oferecer.
De repente um vento começou a soprar muito forte arrastando¬ o na direcção do buraco. Alex estava aflito e a ficar sem forças para resistir.
— Socorro, quem me ajuda, tirem¬ me daqui — gritava Alex.
— Não ouviste nada?
— Pareceu¬ me ouvir qualquer coisa, acho que é ali na zona do palco.
— Vamos lá ver.
Duas senhoras da limpeza tinham acabado de entrar no velho cine-teatro onde Alex tinha tocado para começarem o seu dia de trabalho.
— Socorro!
— Está mesmo alguém a pedir ajuda. Acho que é ali no fosso da orquestra.
— Vamos lá ver.
Aproximaram¬ se e, espantadas, verificaram que havia alguém caído entre um amontoado de móveis e cadeiras velhas que se encontravam depositados no velho fosso de orquestra.
— Quem está aí? — perguntaram.
Sem resposta.
Desceram ao fosso e constataram que havia realmente ali uma pessoa, mas que naquele momento já não dava conta de si, parecia estar com ferimentos e inconsciente.
Rapidamente chamaram a ambulância para socorrê¬ la.
Era Alex quem ali estava, prostrado, coberto de velhas madeiras, apanhado numa teia de cadeiras, móveis antigos e sujidade.
Quando deu o salto através do fogo, no final do espectáculo, acabou por cair directamente no fosso sem que ninguém se apercebesse. As luzes apagaram¬ se e toda a gente pensou que Alex se tinha retirado do palco. Mas não, ali ficou ele caído, sozinho, uma noite. A queda e o excesso de droga deixaram¬ no semi¬ inconsciente, no limiar da morte, preso no amontoado de lixo, mas quase livre da prisão que era a sua vida. Quantos companheiros de Alex frequentadores do ferro¬ velho poderão vir a ter um fim semelhante, caídos num qualquer canto, mas finalmente livres daquilo que há muito tempo os tinha agarrado. Para muitos será infelizmente a única forma de libertação.
Qualquer deles argumentaria, com certeza, uma justificação para terem começado esta vida de sofrimento, mas não existe qualquer razão, problema ou curiosidade que justifiquem a experiência. A primeira vez pode ser fatal e de certeza que todos os Alex, Humbertos ou Zé «Coto» espalhados por este mundo, se soubessem aquilo que ia ser a suas vidas, nunca teriam sequer experimentado.
No caso de Alex, tudo acabou por correr bem. Lutou toda a noite no seu estado de adormecimento. Entrou no hospital a tempo de ser salvo, embora estivesse já preso à vida por um fio. Quando recuperou a consciência, encontrou junto da cabeceira da cama o seu irmão João. Ficou muito feliz e prometeu a si próprio que aquele dia iria ser o primeiro de uma nova vida. Adeus banda, adeus ferro-velho, adeus vida cruel.
Será que vai conseguir?
A recordação daquele túnel fantástico e das imagens que tanto o fizeram sofrer de certeza que no futuro o vão ajudar nas suas opções de vida.
Aquele túnel era apenas fruto do seu inconsciente. Eram apenas imagens recalcadas, escondidas bem lá no fundo da sua consciência que aproveitaram aquele momento de fragilidade para se manifestarem.
Afinal tudo não passou de um delírio quase moribundo.
Ou talvez não…

FIM

1 comentário:

Anónimo disse...

Aquele túnel onde caíra, não era mais do que o fruto do seu inconsciente. Belas passagens com belas imagens. Um conto bem contado.
ALObo