quarta-feira, 24 de março de 2010

Ano Novo... Histórias velhas.

Tolhido de frio, ziguezagueava pelas ruas da cidade que já dormia. Uma chuva morrinhenta teimava em cair e trespassava-lhe as parcas roupas que trazia vestido. Os sapatos também não eram os melhores…, ainda que tivesse os pés embrulhados em jornais, de pouco lhe servia esse conforto, já que pelas beiras dos mesmos lhe entrava a água. Estavam que nem uma sopa.
Meteu as mãos aos bolsos à procura de algum cigarro esquecido, mas só encontrou o cotão sujo e molhado. Abrigou-se junto de um beiral de uma padaria. De lá vinha o quentinho saboroso do forno do pão. Como seria bom ter agora um daqueles pãezinhos para comer com um bocadinho de manteiga. Bastar-lhe-ia isso para tapar a fome que lhe vinha de dentro. Que raio de coisa esta! Ter fome e arrotar, pensava de si para si.
Há muitos anos, mesmo muitos, saboreara o que era a felicidade. Toda a família sentada à volta da lareira a contar histórias de outros tempos. Relembravam-se episódios ocorridos em invernos e natais idos, a avó contava as estórias já recontadas noutras vezes, mas que todos escutavam como se da primeira vez se tratasse. O pai, recostado na sua cadeira, ia fumando e olhando para todos nós com um olhar vago e protector. Sentia-lhe no puxar do cigarro e num ajeitar de cadeira a alegria que lhe ia na alma. Raramente era dado a carícias, mas o seu ser e estar irradiavam brandura de coração… a mãe dava a volta ao lume e aproveitava-o para ir assando umas castanhas que nos ia distribuindo.
— Boa noite, ó Chico, por acaso não tens por aí um cigarrito?
«Acordou» do sonho das castanhas e olhou para cima. Era o seu «companheiro» de jornada… o «Colas». Nunca soubera o seu verdadeiro nome… toda a gente o tratava assim. «Colas» prà qui, «Colas» prà li e «Colas» ficara.
— Nã… nem uma beata — respondera.
— E tu tens algum naco que se «trinque»? Tou cheio da «galga»…
— Pega! — e estendeu-lhe um saco com um pacote de bolachas e outro de leite.
— Lembras-te da semana passada termos «gamado» um frango da churrascaria do Zé «Barbudo»? O gajo ainda hoje está para saber quem foi — e continuou. — Aquilo é que foi um «avio»… o «sacana» do frango era grande e bem gordinho… até os ossos «chupámos» — deu um estalo com a língua como que a relembrar o sabor do dito.
— Este ano está mau! O pessoal anda nas «encolhas». Também com um governo destes que só f… o mais pequeno… não admira. Vi ontem na televisão que os «gajos» estão a pensar aumentar outra vez os impostos. Filhos da p…, a maioria do pessoal já anda a «berrar» que nem uns desalmados, agora com mais «isto», não sei… — e calou-se.
— Sabes o que e que isto está a precisar? É duns malucos «quaisqueres» sacarem duma «fusca» e limparem o «sebo» a meia-dúzia deles. Acabava-se logo a «peçonha». Assim «cum’ássim» o pessoal já anda de «tanga» e de certeza que pior não ficava.
A porta abriu-se-lhes nas costas.
— Então pessoal, vamos «abancar» aqui esta noite? — perguntou-lhes um dos empregados da padaria.
— Não! Nós só «tamos» à espera que a padaria abra. — respondeu o «Colas» com aquele seu «ar» malandreco.
— Vá, toca a «bazar», que isto aqui não é repartição pública!
Levantaram-se ambos e «entre dentes» prometeram-lhe dar-lhe uns «bons cacetes» quando o apanhassem a jeito. Atravessaram a avenida e depois de andarem algumas ruas abrigaram-se debaixo da entrada de um prédio. Fazia um pequeno recanto que os abrigava da chuva, já que do frio não podiam.
— Ó Chico, e que tal «a gente» irmos até lá abaixo ao cais? Sempre víamos lá «pessoal» conhecido que nos podia «orientar» qualquer coisa… uma «bejeca» ou …
— Cala-te e dorme, ó Colas! Amanhã vemos isso…
— Ok, «meu»! Mas depois não me lixes a «carola» a pedir «morfes».
«Aconchegados» costas com costas, adormeceram cada um a sonhar… sonhos de vida melhor.
Com a mão no queixo e o olhar pregado na velha televisão, uma velhota enrolava, de quando em vez, o lenço de assoar que tinha preso às mãos. A D. Joana, outrora peixeira, vivia numa dessas casas velhinhas de Alfama. Da vida ficara-lhe uma pequena reforma que mal chegava para a comida e medicamentos. Sim, porque o reumatismo lhe ia tolhendo cada vez mais os movimentos. O seu companheiro «anichara-se» junto a ela. Um pequeno gato malhado que ela tinha apanhado junto à sua porta ainda bebezinho e ao qual dera o nome de Fadista. Também ela já tivera uma família grande, agora restava-lhe, na noite de passagem de ano, uma «sopinha», o seu gato e um filme português que lhe ajudava a passar o tempo. «Coitados daqueles que ainda estão pior que eu!» — o filme falava-lhe ao coração. Dois rapazes como tantos que andam por esse «mundo fora». Um sono leve assomou-lhe e abruptamente tombou a cabeça no maple já gasto. Só o gato deu conta daquele movimento brusco e descoordenado…
Naquela manhã a rua estava mais «radiante». O céu azul, um sol vermelho e um friozinho reconfortante debaixo do sobretudo novo. O Sr. Gonçalves sempre fora madrugador e hoje não tinha trabalho à espera. Levantara-se bem-disposto após a noite do dia anterior. Os filhos, os netos, a mulher, todos juntos, como ele tanto gostava.
Junto à porta da D. Joana ouviu o miar de um gato. «Ou muito me engano ou é o Fadista!»
Bateu à porta.
— Bom dia, Ti Joana, e bom ano!
De dentro só lhe chegou o som de um televisor ligado e um gemido de gato…

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