segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O REINO DE MARGARIDA

Cabelos timidamente finos e esbranquiçados, carentes de força e determinação, reforçavam a aparência frágil daquele rosto seco e chupado que deambulava pela sala atendendo os clientes numa postura de inferioridade, quase humilhação.
Calças pretas, velhas, camisola de gola alta escura coberta de borboto. Roupas negras a quem os anos retiraram o vigor vestiam-lhe o corpo falto de carnes e reflectiam-lhe a alma vazia de felicidade.
Solidão ambulante servindo sorrisos tristes e olhares amargos. Cada chávena de café continha um pedido tímido de compreensão:
«Por favor, não me gozem. Basta! Não sou o Toninho, aquele ser insignificante que se acostumaram a vexar, a submeter. O meu nome é ANTÓNIO, estão a ouvir. ANTÓNIO!»
O café era sorvido mecanicamente por dezenas de bocas estupidamente iguais que digeriam a súplica do António com a indiferença esmagadora de quem faz do quotidiano o seu pensar. É a cegueira de quem vê, de existir apenas com o minuto, a hora, o exterior, e não com o que — sem nome — de bom e importante há em nós e deveria ser a seiva da nossa vivência, o sumo a brotar dos nossos actos.
Se cada homem é único, se não existem duas pessoas iguais, não deixa de ser admirável que, frequentemente, a força do hábito se sobreponha, domine, não hesitando em eleger vítimas que satisfaçam os rituais diários que a comunidade interiorizou como normais!
Era justamente o caso do António. Indivíduo frágil, inseguro, tristonho, incapaz de se defender, de reagir, tornou-se ao longo dos anos no alvo preferido da chacota dos que frequentavam o bar da Sociedade Recreativa Luz e Vida. No exercício das suas funções de empregado do bar, amiudadas vezes se dirigiam a si, zombando com o facto de, apesar dos seus 35 anos, nunca lhe ter sido conhecida qualquer companhia feminina.
«Oh Toninho, traz aí mais três surbias. Quando o bar fechar, vamos os dois às meninas. É hoje que vais perder os três! Ou será que preferes meninos?», gritava um sujeito que, acompanhado de outros dois, ria efusivamente ao canto da sala.
Prestimoso, António serviu as três cervejas.
«Não te preocupes, Toninho. Eu pago! Se convido… pago. Até te pago uma francesinha, homem. Tens que comer rapaz. Tu de frente pareces que estás de lado.» As gargalhadas vindas daquela mesa contagiavam os presentes, e, num instante, todos troçavam do António. Até o Sr. Joaquim, que era quem explorava o bar e fazia o favor de o empregar — em respeito à memória do seu falecido pai —, alinhava pela cretinice geral.
As piadas, embebidas em álcool, saltavam de barrigas proeminentes à mesma velocidade com que estas emborcavam garrafas de cerveja, e as gargalhadas feitos soluços irrompiam de peitos mamalhudos que ameaçavam rebentar os botões das camisas.
António, que continuava a servir obedientemente, desaparecia aos poucos, envergonhado, sorvido por aquele redemoinho de imbecilidade.
Os idiotas que escarneciam dele não sabiam que António descendia de uma rara estirpe de homens que durante milénios souberam resistir e vencer as dificuldades que a vida lhes colocava. Descobriram o fogo, a roda, o amor, o silêncio, o conceito de bem e de mal, até que chorar é a melhor forma de aliviar a dor. São os sobreviventes.
Na sua imensa necessidade de galgar sobre o sofrimento, de alcançar a felicidade — ou apenas um pouco dela —, António desenvolveu e apurou a mais peculiar das capacidades: a de se tornar invisível.
— O António? Alguém o viu? — perguntava o Sr. Joaquim. — Não me digam que foi embora outra vez. Vocês gozam com ele e eu pago as favas, que fico aqui sozinho a atender a clientela. Logo agora que a casa está cheia!
— Não sei por que o aguenta aqui. Não falta quem queira trabalhar! — observou um indivíduo encostado ao canto do balcão.
— O pai dele ajudou-me numa altura em que muito precisava. Nunca o hei-de esquecer. Manter aqui o Toninho é o meu agradecimento. Vou ligar-lhe para o telemóvel, mas se for como o costume, não me vai atender. Gostava de saber para onde ele vai! Para casa não é de certeza; uma vez mandei um miúdo chamá-lo e não estava lá ninguém.
O telemóvel tocou, mesmo nas costas do Sr. Joaquim, pousado junto a uma garrafa de aguardente.
— Pronto, hoje não volta mais — murmurou o Sr. Joaquim desanimado.
Enquanto isso, metido na casa de banho, António completava o seu processo de transformação. Sentia-se leve, em paz! Percorriam-lhe o corpo sensações cromáticas de enorme beleza: verde, mar, puro; azul, céu, lúcido. O som à sua volta desaparecera e os indivíduos no bar não eram mais que sombras, esboços sem forma ou definição sobre quem planava complacente. Afinal, graças a eles alcançara aquele estado de pureza que algum prazer lhe proporcionava.
Na sua condição de incorpóreo não conseguia ver as pessoas ou o que quer que tivesse sido feito por elas, no entanto, curiosamente, desfrutava com facilidade de tudo que a natureza lhe oferecia.
Abandonou o Luz e Vida e dirigiu-se para um dos seus locais preferidos: a zona da Foz do Douro e o Parque da Cidade. Desceu Valbom, deitou-se sobre a corrente do rio. Pernas esticadas, mãos cruzadas sob a nuca, assim efectuou a curta viajem, saboreando o hálito tépido da água a acariciar-lhe a pele e a luz das estrelas brilhando para si. De vez em quando, na brincadeira, perguntava ao rio se estava cansado ou se demoraria muito a alcançar a foz. Claro que depois de tanto tempo a correr apertado entre duas margens, este só lhe poderia responder resmungando um chocalhar negro e zangado.
Chegado à foz, despediu-se do rio, pediu desculpas ao mar por não o cumprimentar devido à sua baixa temperatura, e, seguidamente, dirigiu-se ao parque da cidade.
Era um dos locais onde melhor se respirava, tudo parecia impoluto, mais saudável. Sentado na relva, junto ao lago, ficou observando em redor. Naquela noite o parque estava bastante animado. De vez em quando vislumbrava silhuetas disformes movendo-se de mãos dadas, cerca de cinco metros à sua direita outras duas rebolavam abraçadas, sôfregas, aquecendo o ar à sua volta até se transformarem numa só.
A lua bonacheirona, grávida de felicidade, incidiu a sua luz plácida sobre o corpo invisível de António como se lhe quisesse confidenciar algo. A relva fresca e húmida, a morna brisa do vento, uniram-se ao luar em círculos irresistíveis que como uma auréola, verticalmente, lhe impregnaram os sentidos de laxação. Então, o seu corpo caiu para trás suave e melancólico, abrindo os membros em V, soçobrando, prestes a adormecer… assim, inteiro, exposto ao mundo.
Estava quase a entrar no reino do subconsciente quando alguém tropeçou em si e se estatelou mesmo ao seu lado. Não via ninguém, porém sentia a sua presença! Seria que estava a sonhar?
— Desculpe se o acordei — disse-lhe uma voz doce de mulher.
António ainda não percebera bem o que estava a acontecer, mas instintivamente respondeu:
— Não, não, eu é que peço perdão porque a fiz cair — murmurou incrédulo.
— Com certeza está a duvidar do que está a ouvir. Suspeita que está a sonhar, não?
— Efectivamente estou um pouco confuso — respondeu António receoso.
— Lamento — retorquiu decidida. — Lamento que alguém tão raro seja também um parvo incapaz de acreditar nos seus próprios sentidos.
Afastou-se determinada. António sentiu-lhe a presença distanciar-se. Num impulso, levantou-se e correu até ela. Pousou a mão onde lhe pareceu que seria o ombro e pediu que não se afastasse já.
— Entenda o meu comportamento. A não ser para se divertirem às minhas custas, habitualmente não falam muito comigo, jamais quando estou assim… sabe… invisível. Por favor fique um pouco mais. Diga-me o seu nome.
— Margarida. Princesa Margarida.
— Desculpe a impertinência majestade, mas é princesa em que reino? — perguntou António em tom jocoso.
O facto de sentir a sua presença, quase lhe sentir o corpo, ouvir a sua voz, já era suficientemente inacreditável para o fazer descrer. Princesa então, era demais!
«Provavelmente é alguma idiota com quem todos gozam e sucede-lhe o mesmo que a mim. Agora que a sua voz é meiga e sensual, disso não há dúvida!»
O seu pensamento foi interrompido pela resposta de Margarida.
— Presumo que esteja a brincar comigo. Talvez pense que sou louca, que não sei o que digo, que sendo irónico poderá talvez desforrar-se das agruras do seu dia-a-dia. Sim, porque em toda a minha vida, com excepção do meu caso, nunca conheci ninguém que fosse feliz e gostasse de ser invisível — a voz deixara de ser doce!
— Uma vez mais peço que me perdoe. Se existe alguém que sabe o que é ser vítima do preconceito, sou eu! — respondeu António denotando alguma dor na sua voz.
Margarida enterneceu-se com a sua franqueza. Carinhosamente depositou-lhe um beijo na face.
— Sentiu? — perguntou Margarida. — Não fique corado, foi só um beijo — observou sorrindo.
— Senti! Não entendo o porquê, mas realmente senti. Os seus lábios são muito bonitos — atreveu-se a observar. — Como sabe que estou corado?
— É fácil, o ar que contorna seu rosto está cálido.
— Será por isso que começo a entender melhor as formas do seu corpo. Será que também está mais quente!
Margarida sorriu e disse:
— Voltemos à questão que me colocou. Gostaria de conhecer mais detalhes sobre o meu reino?
— Sim, adoraria — respondeu António compenetrado.
— Sentemo-nos, pois ficaremos mais confortáveis — ciciou afectuosamente. — O meu reino é — fez uma pausa prolongada, sacudiu os cabelos para trás altivamente e uma aragem acariciou as folhas das árvores que se moveram delicadas a salientar o gesto — onde eu quiser.
Enquanto António a escutava encantado, a voz de Margarida ia assumindo contornos melódicos de rara beleza e num misto de canto e declamação, continuou:

O meu reino é numa nuvem de algodão,
Numa bola de sabão,
É numa folha de papel
Ou na ponta de um pincel,
É na cauda de um cometa,
Nas asas de uma borboleta,
É a voz de um cantor,
No seu bairro do amor.
É nas pétalas de uma margarida,
É no coração de quem me deu a vida.

Margarida fez uma pausa e respirou fundo. A sua voz entristeceu, como que tocada pela nostalgia.
— Não ligue. Lembrei-me dos meus pais — disse abanando-se para sacudir a tristeza.
— O seu reino parece não ter fim — observou António.
— As fronteiras do meu reino são os limites da minha imaginação e essa, felizmente, é interminável. Sabe que até hoje muitos são os que me visitam. Permanecem em mim por algum tempo, deixam lá a sua marca e depois desaparecem; existem os que nunca mais voltam e os que regressam repetidas vezes. São os meus súbditos! Os meus meninos a quem carinhosamente trato por Margaridos. No entanto, é a primeira vez que abandonei o meu reino em busca da pessoa certa. Aquele a quem quero pedir o mais importante dos favores. Essa pessoa, António, é você! Posso contar consigo?
— Sim, claro. Será uma honra.
— Antes de partir, deixo-lhe algo que lhe imploro faça o favor de entregar na morada que lhe vou dizer. Por favor, não falhe, disso depende a minha felicidade plena — Margarida segredou a morada a António, pousou-lhe um suave beijo na testa e desapareceu.
No instante seguinte António regressou à sua forma natural. Ao seu lado, uma linda margarida olhava para si. Pegou nela e seguiu para casa, sentia-se cansado, precisava dormir e retemperar forças. Sempre que ocorria esta metamorfose, ficava esgotado, muito mais desta vez, após as emoções vividas com a fantástica Margarida.
Estava determinado a cumprir o pedido da sua amiga. Levantou-se manhã cedo, fez a higiene diária, tomou o pequeno-almoço e saiu. Apossara-se de si um nervoso miudinho, uma espécie de frenesim. «O que iria encontrar por detrás daquela porta? Quem seriam as pessoas a quem tinha que entregar a flor?»
Subiu as velhas escadas de madeira do prédio antigo, parou no primeiro direito, suspirou, ganhou coragem, agarrou no batente em ferro — tinha a forma de um punho cerrado — e duas vezes bateu-o contra a porta. Alguns segundos depois esta abriu-se e surgiu um senhor idoso. Era de estatura baixa, o corpo um pouco dobrado pelo peso da vida, cabelos fartos, grisalhos, do rosto enrugado sobressaíam os olhos doces, porém esmorecidos.
— Bom dia. O que deseja? — perguntou o velho senhor.
— O senhor não me conhece, mas — António não sabia bem o que dizer — ontem conheci uma pessoa muito especial que me pediu que viesse a esta morada entregar-lhes esta flor. Essa pessoa chama-se Margarida.
António entregou a flor à esposa do senhor, que entretanto se aproximara dele e lhe apertara a mão com força.
— Por favor, entre e sinta-se como em sua casa — disse o homem com a voz embargada pela emoção.
— Como está ela? Está bem? — perguntou a senhora com os olhos humedecidos pelas lágrimas.
Ao mesmo tempo comovido e admirado, António respondeu:
— É a pessoa mais feliz que conheço. Quase me atrevo a afirmar que será a mais feliz do mundo.
O casal sorriu! Olharam um para o outro por um breve momento e abraçaram-se ternamente… em silêncio.
— Obrigado. Muito obrigado. Não sabemos como lhe agradecer. Não imagina como nos fez feliz ao trazer-nos notícias da nossa filha há tantos anos desaparecida — disse a senhora, que se levantou e abraçou António.
— Também pediu que lhes dissesse uns pequenos versos — observou António com meiguice.

O meu reino é numa nuvem de algodão,
Numa bola de sabão,
........................................
É a voz de um cantor,
No seu bairro do amor.

António viu-se interrompido pelas suas vozes comovidas.
— É nas pétalas de uma margarida — murmurou o pai.
— É no coração de quem me deu a vida — sussurrou a mãe.

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