quinta-feira, 29 de abril de 2010

Uma Ida ao outro lado.


UMA IDA AO OUTRO LADO

Por Célio Passos



Mário Renato levantou-se mais cedo do que era costume. Tinha dormido mal, passara mal a noite, bastante agitado, virou-se vezes sem conta na cama, imagens perturbadoras povoaram os seus sonhos, sentiu-se febril, julgou-se doente. Algo de muito esquisito estava a passar-se consigo; pressentia que qualquer coisa estaria para acontecer.
Desceu no elevador até à garagem do prédio. Entrou no automóvel, pô-lo em movimento e ligou o aquecimento porque sentia frio.
Andava preocupado com a sua situação profissional, que estava a atravessar um péssimo período, talvez por isso a febre e o mal-estar matinal fossem psicossomáticos. A ida matinal a Guimarães era mais uma tentativa de resolver a situação.
Uma chuva espessa, miudinha e persistente dificultava a visibilidade e Mário Renato tinha que se inclinar sobre o volante para conseguir ver os mecos que, de vez em quando, indicavam a berma da estrada. Esta, que conhecia como as suas mãos, pelas inúmeras vezes que a percorria, naquele dia parecia-lhe diferente, tinha mais curvas, mais estreita e com uma inclinação mais pronunciada.
Pensou ter-se enganado na estrada, mas não era possível, não se lembra de existir outra estrada naquela direcção. Percorreu alguns quilómetros à procura da estação de serviço onde tantas vezes parava para se abastecer, mas não a encontrou. A chuva entretanto começou a amainar, dando lugar a um nevoeiro, que, conforme Mário Renato ia progredindo, aclarava, ficava cada vez mais luminoso, dando lugar a pequenas nuvens de um branco leitoso, intensificadas com o brilho do Sol, que agora timidamente queria aparecer. Não fosse o preto do asfalto que se entremeava com as nuvens mais rasantes, dir-se-ia que Mário Renato estava a pilotar um avião em vez de um automóvel.
De repente, entre a nebulosidade, inopinadamente, na estrada surgem dois homens imaculadamente vestidos de branco que o mandaram parar. Mário Renato não tinha a certeza de se tratar de uma autoridade. Um dos homens vestido de branco acercou-se do automóvel, fez uma espécie de continência à guisa de cumprimento e disse:
— Bom dia, a sua identificação, faz favor — disse numa voz assexuada.
— Mas, Sr. Guarda...
— Vigilante. Talvez seja o termo mais adequado à minha função — disse pausadamente.
Enquanto entregava o bilhete de identidade, Mário Renato perguntou:
— Mas Sr. Vigilante, por que razão me mandou parar.
— É que esta estrada termina aqui.
— Mas esta estrada não vai para Guimarães?
— Guimarães?
— Sim, Guimarães, porquê?
— Por estes lados não existe terra com esse nome, além de que esta estrada não tem, nunca teve e jamais algum dia terá saída.
Mário Renato acreditou que se tinha mesmo enganado. Mas, aonde é que estava?
Quando se preparava para perguntar que local era aquele e questioná-lo se tinha autoridade para o mandar parar, o vigilante, que observava uma lista, disse:
— O senhor é um dos bafejados da sorte.
— Eu, porquê?
— Nem todos os seres humanos têm a sorte de serem convocados.
— Convocado? Para quê? — perguntou intrigado Mário Renato
Não recebeu qualquer resposta, a não ser um sorriso enigmático.
Tudo o que se estava a passar era estranhíssimo. Efectivamente, aquela estrada, que tão bem conhecia, estava diferente, o tempo que mudara tão repentinamente, o polícia, ou lá o que era, a dizer coisas que não entendia, nada disto batia coisa com coisa. Mário Renato sentia-se baralhado com o que se estava a passar.
O vigilante solicitou que estacionasse o automóvel e o acompanhasse. Estranhou o pedido, mas sem relutância fez o que ele gentilmente pedira. Dirigiram-se a um edifício, muito parecido com uma gare, de camionagem, ferroviária ou mesmo terminal de um aeroporto, com a particularidade de estar toda pintada de branco, sem quaisquer dizeres ou reclamos luminosos, como habitualmente se encontram nestes locais. Uma porta automática de vidros foscos abriu-se à aproximação deles. Um longo corredor, ladeado por janelas com vidros espelhados, permitia ver para o outro lado sem ser visto. O que se passava para lá dos vidros assemelhava-se a uma sala de espera de um terminal de transportes, onde pessoas de todas as idades e raças aguardavam a hora de partida do seu transporte; o espaço era enorme e não se conseguia vislumbrar onde terminava.
As pessoas, num número incalculável, ou estavam sentadas ou circulavam lentamente por entre as que estavam sentadas, não conversavam muito, a sua atitude era mais de reflexão. Curioso era que ninguém tinha bagagens por mais pequenas que fossem e os serviços de apoio habitualmente existentes nestes locais, como sejam bares, lojas de revistas ou de artesanato, não existiam.
Percorreram o corredor e no final uma outra porta se abriu para um espaço verde onde se perfilavam, num cais à beira de um canal, uma quantidade apreciável de pequenas barcas e em cada uma um barqueiro estava sentado à proa. O vigilante fez um sinal para um deles e após uma breve troca de palavras, que Mário Renato não entendeu, ajudou-o a entrar e a acomodar-se na barca. A barca começou a deslizar pelo canal suavemente onde outras barcas circulavam próximas umas das outras, mas apesar disso não se via quem ia nelas, a privacidade era total.
O tempo estava completamente diferente, o Sol brilhava, a temperatura era amena, estava um dia simplesmente esplendoroso. De um lado do canal, as margens eram verdejantes cheias de olmos e cedros que nasciam entre os silvados, donde bandos de pássaros exóticos levantavam voo à sua passagem; do outro, uma imensidão de pequenos lagos cheios de vitórias régias, semeados num campo relvado a perder de vista, donde se espanejavam patos, garças e íbis multicolores. No ar sentia-se um cheiro intenso perfumado a alfazema, e, de quando em vez, trescalava a incenso.
Mário Renato estava cada vez mais espantado com tudo o que estava a presenciar. O barqueiro dirigiu a barca para um pequeno cais, encostou a barca, e Mário Renato percebeu que a viagem tinha terminado. O barqueiro ajudou-o a sair e indicou-lhe um trilho que subia até ao topo de uma colina. Mário Renato não teve outra alternativa, pois quando se voltou para interpelar o barqueiro, este já lá não se encontrava, tinha simplesmente desaparecido. A subida apesar de longa foi fácil. Do topo a vista era espectacular. Avistava-se uma planície sem fim, em que pontos ao redor de traços brancos desenhavam, numa extensa superfície, árvores cheias de ramos, tendo por horizonte uma luminosidade avermelhada. Longas escadarias de mármore branco partiam em direcção à planície.
Uns quantos rapazes ou raparigas, não conseguiu identificar, vestidos de branco, estavam sentados no topo destas escadarias contemplando a planície. Um deles aproximou-se de Mário Renato, baixou a cabeça num cumprimento cerimonioso e, sem dirigir qualquer palavra e por meio de graciosos gestos, indicou-lhe uma escadaria que se dirigia a uma certa zona da planície. Apesar de longa, os degraus que a compunham estavam de tal forma dispostos que a descida se tornava fácil. Mário Renato começou a descê-la lentamente. Uma música suave saía-lhe debaixo dos pés proporcionando uma descida agradável. O trânsito de pessoas naquele momento era reduzido e pessoas com mais idade eram ajudadas por aquelas personagens cujo sexo não conseguia identificar.
Conforme se aproximava do vale, Mário Renato ia descobrindo que os pontos que vira do alto pareciam pessoas que pontilhavam a superfície, e os traços brancos pareciam tratar-se de algo parecido com mesas, cobertas com impecáveis toalhas brancas. Depois de uma análise mais atenta, viu que não se tratava de seres humanos mas de massas nebulosas, fumacentas que evolavam no espaço. Algumas materializavam-se envoltas em panejamentos, outras circulavam como manchas animadas de musselina, por vezes parecia um material esbranquiçado, translúcido, tudo isto a desenrolar-se numa atmosfera multicolor; concluiu tratar-se de ectoplasmas.
Tinha agora consciência do que se estava a passar apesar de ser a primeira vez que estava a assistir a um contacto físico com o espiritual. Quando jovem, ele e o seu grupo de amigos mais íntimos interessaram-se pelos livros do ocultista francês Allan Kardec, pai da teoria do espiritismo, do escritor e espiritista Conan Doyle e do grande investigador dos fenómenos espíritas Charles Richet.
Frequentavam a Casa do Castelo, local misterioso que fora propriedade de um conde inglês que doara a uma sociedade inglesa de pesquisas psíquicas que era gerida à distância e onde um grupo, bastante restrito, se dedicava a sessões espíritas, consideradas pela polícia como clandestinas e conspiratórias contra o governo, talvez pelo seu secretismo, e como tal eram perseguidos e muitas sessões foram interrompidas e os presentes terminavam a noite na esquadra. Mas foi com a morte da namorada, da qual se encontrava perdidamente apaixonado, tendo-se envenenado com cianeto, por razões que nunca lhe foram ditas mas que sempre ansiou saber, que tentou pela primeira vez o contacto.
Recorreu a médiuns, alguns atestaram-lhe serem de uma honestidade, competência e de sucesso garantido, mas que não resultou, outros, autênticos farsantes, exploradores, que, com cenas teatrais, fizeram crer que o contacto às primeiras vezes era difícil, mas que devia insistir, e depois de algumas sessões, e despendida uma quantidade razoável de dinheiro, diziam que não era possível realizar-se porque o espírito da namorada não queria.
Tentou aprofundar mais os seus conhecimentos lendo livros da especialidade, e até experimentou colocar um limão debaixo da travesseira, porque segundo crenças africanas diziam que o citrino chamava os espíritos de noite. Apesar dos insucessos nunca se afastou do espiritismo, procurando de vez em quando, em alturas de maior angústia, recorrer à sua tia Noémia, que nesta matéria, apesar de leiga, era uma fanática. Foi na sua casa, com uma médium de nome Sãozinha, que aos pedidos da sua tia fazia tentativas, todas frustradas, de entrar em contacto com os seus filhos que tinham falecido num espaço muito curto de tempo, que foi o ponto mais próximo deste fenómeno.
Os contactos, que aparentemente pareciam ser bem-sucedidos, não se chegavam a concretizar porque a sua tia começava com chiliques, quando a médium em estado de transe, verdadeiro ou falso, começava a falar com uma voz que se assemelhava a um dos filhos. Este contacto, por muito ténue que fosse, era suficiente para a tia ficar fora de si, com a expectativa de sentir a presença espiritual dos filhos.
Os contactos, mal sucedidos, eram muitas vezes substituídos por levitação de uma mesa de pé-de-galo, antiquíssima, que descia as escadas como se tratasse de uma pessoa, ou o lustre pendurado no átrio das escadas que davam para o andar superior agitava-se violentamente, ou os quadros da sala de estar deslocavam-se de uma parede para outra, ou então o relógio de caixa alta, jóia de família, dava horas fora de horas.
A escadaria terminava numa pequena clareira, junto a um conjunto de mesas. Os ectoplasmas naquele local tinham dificuldade em materializarem-se, algo parecia perturbá-los.
Mário Renato tentava descobrir de quem se tratava. Sentiu que uma cadeira situada no topo de uma das mesas lhe era destinada. Na sua cabeça uma voz falava-lhe: «Senta-te e coloca as mãos sobre a mesa.» Cumpriu o que aquela voz interior lhe dizia. Os ectoplasmas começaram por fim a definir-se, e, lentamente, as personagens materializavam-se, completamente identificáveis. Umas, Mário Renato conhecera-as, outras, tinha-as visto em fotografias, e outras não as conhecia. A sensação era indescritível, emocionante, suave, de uma rara beleza. Finalmente ao fim de tantos anos, aquilo que sempre ansiou e acreditou estava-se a realizar. Sobre a mesa estava colocado um material esbranquiçado, semelhante a um grande círio, apagado, assim como outras massas idênticas que se assemelhavam a ícones, pequenas velas, ex-votos, oblatas, imagens, numa parafernália de objectos espalhados sobre as mesas.
No topo da mesa encontrava-se o seu pai, Augusto, com aquele ar distraído, ausente, que sempre teve, ladeado pela sua mãe, Antonieta, risonha, com um ar bondoso, uma «santa», como lhe chamavam. Depois, num dos lados da mesa encontrava-se o tio Adolfo, que continuava com ar de quem sofre de prisão de ventre, contrariado, azedo, que sempre contrastou com o ar bem-disposto do irmão Edgar, que gostava tanto de viver. Seguia-se a tia Dulce, inveterada solteirona, ranhosa, como alcunhava a sua irmã Noémia, com quem passou os dias a resmungar, apesar de nunca terem conseguido viver uma sem a outra. Noémia fora casada com o tio Armando, farmacêutico, que se serviu das suas mesinhas caseiras para dar volta à cabeça das beatas da paróquia. Estava ainda a tia Matilde, que nunca conheceu muito bem, e o tio Anselmo, que esteve emigrado em França. Os primos Daniel e Rui, filhos de Noémia, que tinham por volta de 10 anos quando morreram de meningite.
Numa mesa que encaixava na mesa em que estava sentado, encontravam-se outros familiares, que conhecia de fotografias ou por descrições que os seus pais e tios lhe fizeram. Era o caso do avô paterno Sebastião, que identificou pelos enormes bigodes, da avó materna Marília, pelo seu avantajado corpo, da espirituosa tia-avó Delfina, que passou a vida a pregar partidas, e segundo diziam, quando abandonou o mundo devido a um ataque de coração, ninguém acreditou julgando-se que era mais uma das suas brincadeiras; do tio-avô Alfredo, brilhante sargento do Corpo Expedicionário Português que participou na trágica batalha de La Lys na I Grande Guerra, que em defesa da frente ocidental foram dizimados pela tropas germânicas, morrendo gaseado com gás mostarda; da tia-avó Esmeralda, beata, que foi uma excelente cozinheira, cujos pitéus chegaram à sua geração, com especial destaque para os bolos conventuais. Outros familiares não reconheceu, nunca os vira em fotografias nem em descrições.
Conforme as mesas iam ficando mais distantes, os ectoplasmas ficavam mais desfocados, não sendo possível visualizá-los, muito menos identificá-los. As personagens sentadas nesta sucessão de mesas e que se encaixavam umas nas outras relacionavam-se indubitavelmente com os seus ascendentes e colaterais. Mário Renato tentou comunicar com eles, falou, quase gritou, mas algo impedia a comunicação. Eles, ou falavam entre si ou estavam como que a rezar, disso apercebeu-se. A sensação era indescritível.
Mário Renato, emocionado, assistia aparvalhado a tudo que se desenrolava diante dos seus olhos. Sempre pensou que um dia seria possível. Nos momentos mais difíceis da sua vida, sentiu o aconchego espiritual de sua mãe, a quem se sentiu sempre umbilicalmente ligado, e pediu ardentemente que ela desse um sinal da sua presença. O círio acendeu e Mário Renato passou a ouvir as conversas que se desenrolavam à mesa; falavam dele.
— Sinto que o Mário está presente. Acolheu ao nosso chamamento — disse a mãe Antonieta.
— Mário está-se a precipitar ao fazer a sociedade com aquele «fulano». Não parece ser boa «peça». Nós sabemos que ele já levou à falência várias firmas, mas ele ficou sempre bem; para mim não é um sócio que ele vai arranjar mas sim uma carga de trabalhos — dizia o tio Edgar com ar preocupado.
— Penso que o melhor que o Marinho fazia era comprar aquele espaço comercial na nova zona da cidade e passar para lá a loja — opinou o tio Adolfo.
O tio Adolfo fora sempre um homem para grandes negócios, em especial, quando o capital não fosse o dele, porque com o dele, que sempre foi pouco ou nenhum, não se podia contar.
— Cá p’ra mim nem uma coisa nem outra. Ele está muito bem onde está — afirmou a tia Noémia.
A tia de Mário nunca gostou nem percebia nada de negócios, e, para ela qualquer alteração, mínima que fosse, fazia-lhe muita confusão.
— Eu também já tinha pensado nisso; o Mário está muito bem onde está — pontificou a tia Dulce.
A tia Dulce nunca pensou, o que não podia era deixar de dizer qualquer coisa, em especial, quando a sua irmã opinava; era um complexo de inferioridade que nunca conseguiu ultrapassar.
— O Mário sabe o que faz. O rapaz teve sempre muito juízo, e não se vai meter em trabalhos — disse o pai, pessoa que foi sempre muito respeitada no seio da família, e o que ele dizia, em regra e sem excepção, era escutado e seguido.
Mário Renato estava a ser alvo de uma reunião familiar sobre a sua actual situação profissional. Na realidade, era possuidor de uma loja de electrodomésticos, e a zona onde estava sediada tinha vindo a desertificar-se nos últimos tempos. As pessoas transferiram-se para novas zonas da cidade, ficando o local entregue quase exclusivamente a escritórios e armazéns. A clientela foi, obviamente, baixando e os lucros igualmente, tornando-se difícil aguentar tal estado de coisas.
Acerca de um mês, apareceu um indivíduo que trabalha na mesma área de negócio que lhe propôs sociedade. Tinha umas lojas e precisava de uma outra exactamente naquela zona para poder fazer rotação de produtos e que funcionaria como um entreposto comercial. A ideia seduziu Mário Renato até porque não tinha grandes hipóteses para resolução premente do problema. Mas quase simultaneamente uma outra proposta, mais aliciante, mas difícil de concretizar, proporcionou-se. A compra de uma loja na nova zona da cidade, por um preço espantoso e bem situada. Só que tinha de solicitar um empréstimo e o banco exigia condições para o financiar que muito dificilmente podia suportar.
O dilema era enorme, estava inclinado a fazer a sociedade com o tal Saul Dias, pessoa de que tinha boas e algumas más referências, o que dificultava a sua decisão, mas parecia ser a melhor ou, talvez, a única solução. Era por isso que ia a Guimarães para falar de novo com o hipotético sócio, para acertar mais alguns pormenores do negócio.
— Todos «vossemecês» sabem que de algum modo podemos influenciar os acontecimentos dos nossos familiares. Acho que devemos flanquear o inimigo e isolá-lo de modo a que o Marinho esteja a salvo duma manobra do inimigo e que o coloque em perigo — disse o tio-avô Alfredo, recordando façanhas da Grande Guerra, porque do assunto de electrodomésticos não tinha conhecimentos; no seu tempo, electrodomésticos era coisa que não existia.
— Todos que estamos aqui reunidos desejamos uma solução que seja a melhor para o Marinho, e se ele aguardar com paciência, ela vai aparecer em breve— disse a mãe Antonieta.
— Mas o problema é o Mário ter a calma suficiente e tempo para esperar. A situação está a piorar de dia para dia e o tal Saul Dias sabemos que está a pressionar — disse o tio Edgar.
De repente a atmosfera ficou alterada, os ectoplasmas ficaram pateticamente eufóricos, a agitação era enorme, não paravam de evolar-se e não estabilizavam, a materialização estava inconstante, desapareciam e apareciam a cada momento, algo de extraordinário se estava a passar. A tia Matilde, particularmente, encontrava-se em grande excitação. Mário Renato apercebeu-se que um acontecimento inesperado tinha acontecido, não faltaria muito para saber o que se tinha passado. Uma nova personagem estava a evoluir e a materializar-se na mesa perto de si; era o primo Vitorino. Estava perplexo porque muito recentemente tinham almoçado juntos e estranhou o facto de ele estar ali. A tia Matilde pousou a mão sobre a cabeça do filho como saudação pela sua chegada; o seu ar não denotava nem alegria nem tristeza. A situação acalmou.
— Vamos fazer uma corrente espiritual e enviar uma mensagem de apoio e esperança ao Mário e que aguarde, pois a solução vai surgir mais depressa do que ele pensa — sugeriu a tia Dulce.
Todos os presentes recolheram-se em meditação, uniram as mãos e baixaram a cabeça como que a rezar. Um pensamento chegou a Mário Renato. O círio lentamente foi-se apagando e os ectoplasmas começaram lentamente a desaparecer até que a mesa ficou vazia. A reunião familiar estava finda, o contacto tinha terminado.
Mário Renato regressou de novo ao canal, onde uma barca esperava por si. O tempo continuava esplendoroso, o Sol não se tinha deslocado, continuava lá no alto, parecia que o tempo tinha parado. Olhou para o relógio e viu que eram 9 horas e 10 minutos, precisamente a mesma hora quando foi mandado parar pelo vigilante. O cheiro a alfazema permanecia no ar, assim como o do incenso. Bandos de patos-bravos, amarelos, atravessavam o ar, no seu elegante voo, em direcção aos lagos situados no extenso vale; contudo, os patos não chegavam ao destino, desapareciam como por magia, simplesmente esfumavam-se no espaço.
A barca deslizava agora num vale. O vale recordava-lhe um vale grego, o Parnaso, numa viagem que tinha feito há anos à Grécia, e lá como ali, sentiu a mesma sensação, a presença de algo superior, talvez do deus grego Apolo guiando a sua quadriga puxada por cisnes azuis.
Uma paz interior percorreu Mário Renato. Estava esmagado com os acontecimentos vividos, mas ao mesmo tempo maravilhado com o que se tinha passado, algo de transcendental, místico ou talvez religioso. Sobre as suas dúvidas e contradições religiosas sempre se colocou num plano agnóstico muito próximo do ateísmo, ou talvez indiferença, já não sabia lá muito bem. Os fantasmas da sua vida eram bem reais, eram os seus fornecedores e clientes, que apareciam e desapareciam no tempo, dependentes das circunstâncias, do poder de compra dos clientes e dos compromissos assumidos com os seus fornecedores ou deles para consigo.

Sem saber como, Mário Renato deu-se consigo dentro do automóvel. Colocou-o em movimento e passou pelos vigilantes, que lhe fizeram uma continência como de despedida. O tempo repentinamente começou a ficar enevoado, dando lugar a uma chuva pesada, cada vez mais intensa, pelo que Mário Renato teve que abrandar e encostar o automóvel.
Um guarda bateu no vidro lateral do automóvel. Mário Renato estava completamente absorto só quando o guarda da GNR bateu de novo é que se apercebeu da sua presença. O Sol batia-lhe na cara e teve de colocar a mão em forma de pala para identificar quem lhe batia no vidro. Baixou-o.
— Passa-se alguma coisa com o senhor? — perguntou o guarda.
— Não, porquê?
— É que o senhor vinha à nossa frente com o carro aos ziguezagues, encostou à berma, parámos para ver se precisava de alguma coisa, batemos várias vezes no vidro, tinha o carro trancado, estava com um ar esquisito, com o olhar parado, e só depois de insistirmos várias vezes, batendo no vidro, é que o senhor atendeu. Já estamos aqui há mais de cinco minutos. Está mesmo bem? — perguntou de novo o guarda.
— Sim, penso que sim — respondeu. — Olhe, Sr. Guarda, esta estrada para onde vai?
— Para Guimarães — respondeu.— O senhor está mesmo bem? — insistiu.
— Sim, pode ficar descansado — respondeu.
Mário Renato coloca o carro em movimento. A estrada agora já era sua conhecida. Parou na bomba de gasolina onde tantas vezes se abasteceu de gasolina, de jornais e revistas. Pegou no telemóvel e ligou para a loja.
— Manel, sou eu, fazes o favor de ligares para o Sr. Saul Dias e diz-lhe que eu hoje não posso encontrar-me com ele. Inventa uma desculpa qualquer. Diz-lhe que amanhã lhe telefono.
Decidiu ir para casa. Parou o automóvel junto ao prédio onde habitava, mas antes de entrar, dirigiu-se à caixa de correio. Só se encontrava uma carta de uma instituição bancária. Abriu-a.

«Ex.mo Senhor:
A nossa instituição bancária, a laborar no espaço comunitário, pretende abrir uma sucursal nesta cidade. Tivemos conhecimento que V. Ex.ª tem um espaço comercial numa zona do nosso interesse que pretende vender, pelo que um dos nossos advogados vai entrar em contacto com V. Ex.ª para agendar uma reunião para um eventual negócio.
Com os melhores cumprimentos,
A Administração.»

Estava incrédulo. Releu a carta, uma, duas vezes. Não podia acreditar no que estava a acontecer. Era realidade o que estava a viver? Foi sonho o que se tinha passado? Ou não teria sido?
Que sucessão de acontecimentos! Mas o que se tinha passado tinha sido demasiado real. Os familiares, alguns já tinham abandonado esta vida há tantos anos, mas viu-os, não os sentiu, mas ouviu-os a falarem de si, deram-lhe conselhos, preocupavam-se com ele. A barca, a escadaria de mármore, a planície, os polícias ou lá o que eram que o mandaram parar, eram verdadeiros. Mas, a estrada era-lhe totalmente desconhecida, o vigilante nem conhecia aonde ficava Guimarães.
Não! Não passou de um sonho, agradável, mas não passou de um sonho: a vida era demasiado real para se entrar em sonhos, fantasias. Talvez o banco estivesse interessado no negócio e, se assim fosse, poderia adquirir o espaço comercial na parte nova da cidade, transferir a loja e encetar uma vida nova, com melhores perspectivas. Era simplesmente uma coincidência.
O telemóvel tocou. No visor surge uma indicação de que existia uma mensagem no voice mail. Era o seu irmão Artur. Marca o código de acesso e ouve a missiva:
«Mário. É o Artur. Ando desde ontem a tentar contactar-te, mas não tenho conseguido. Era para te comunicar uma triste notícia. O primo Vitorino, a esposa e o filho tiveram um desastre de automóvel perto de Barcelos, e o primo Vitorino faleceu. O enterro é amanhã. Quando puderes telefona-me.»
Estupefacto, Mário Renato desliga o telemóvel.

3 comentários:

Eliane F.C.Lima disse...

Caro Célio,
Gostei muito de sua visita, você que é contista também. Tenho contos grandes, de quatro a cinco páginas. Mas em papel. Acredito que o leitor da Internet, como o veículo é o computador, com toda aquela luminosidade, tem mais dificuldade de leitura extensa e, por isso, pouco fôlego. Escrevo-os compactos só para o blogue, que, por isso, tem seu título justificado.
Um grande abraço,
Eliane F.C.Lima (http://literaturaemvida2.blogspot.com e http://poemavida.blogspot.com)
Se desejar, não poste esse comentário. É só um meio de conversarmos. Meu e-mail é literaturaemvida@gmail.com

Eliane F.C.Lima disse...

Célio,
O conto é muito interessante. Quase toda minha família é espírita Kardecista. A ficção soube se aproveitar dos elementos da crença.
Eliane F.C.Lima

Eliane F.C.Lima disse...

Célio,
Postei um conto um pouco maior para que você fique contente. Na verdade, tive de diminuí-lo bastante, seguindo minha crença de que a rede assim o exige. Tomara que o conteúdo lhe "saiba" bem, como disse com tanta graciosidade de linguagem, que só os portugueses têm.
Bom domingo,
Eliane F.C.Lima (http://poemavida.blogspot.com)