segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A DERROCADA


I

A chuva tinha caído copiosamente durante todo o dia. O vento puxado a sul fazia a água bater em bátegas nos telhados zincados das casas que se enfileiravam junto a uma ravina à saída de uma aldeia do Alto Minho.
Zé Zeferino tinha deixado o café do Tinoco mais cedo que o habitual e, ao ouvir na televisão que o tempo ia piorar mais e antes que isso acontecesse, decidiu regressar a casa e aproveitaria para pôr em ordem algumas coisas da sua loja.
A loja que recebera do patrão Samuel, de uma maneira um pouco estranha, segundo diziam as más-línguas, resultante de um suborno, já que a verdadeira herdeira, a esposa, apesar de o ter deixado, segundo constava, nunca veio reivindicar a posse da loja após a sua morte.
A loja era uma casa de dois pisos. No rés-do-chão era a loja do tipo tem tudo, desde ferragens, tintas, madeiras, plásticos, etc., separada por uma tosca parede de um outro local, destinado a um pequeno mercado alimentar, com artigos de primeira necessidade.
O andar superior era destinado a habitação. Vivia neste local já ia para cima de quarenta anos. Primeiro, num dos quartos que o patrão lhe cedera quando deixou a casa paterna e veio trabalhar para a loja e, depois, como senhor de todo o espaço habitacional comercial. Toda a sua vida praticamente resumia-se à volta desta loja, mas, justiça lhe seja feita, conseguiu, à custa de muito trabalho e de algumas habilidades, fazer da loja a mais conhecida de toda a aldeia.
Zé Zeferino rondava os 60 anos, constava que ainda tinha os seus pais vivos, mas nunca se referia a eles, e amigos que se conhecesse poucos ou nenhum.
O vento e a chuva redobravam de intensidade, Zé Zeferino arrumava numa das prateleiras umas latas de tinta que tinha recebido de um fornecedor. A prateleira cismava em não aceitar as latas e, sempre que ele colocava uma, esta deslizava e caía no soalho. Soalho que reparou, num misto de espanto e medo, e que se encontrava inclinado; a casa estava a ceder. Alguns artigos, juntamente com as latas de tinta, tinham-se precipitado em direcção à porta das traseiras, acumulando-se à saída.
O vento zunia e relampejava, ouviu-se um forte trovão, a luz apagou-se e a casa cedeu. Zé Zeferino, aos apalpões, procurou a porta da frente que dava para a estrada. Não teve oportunidade de lá chegar, ela veio ter consigo. O estrondo foi tremendo, o terreno cedeu e a casa foi-se desfazendo pela ravina abaixo, sendo acompanhada nesta derrocada pelas casas vizinhas. Zé Zeferino, aos trambolhões dentro da casa, foi arrastado nesta viagem, breve no espaço mas longa no tempo, até ao fundo da ravina.
Depois da queda e das réplicas das derrocadas parciais, o silêncio pousou sobre os destroços. Agora, só se ouvia a chuva e o vento que parecia querer abrandar. Pouco a pouco o silêncio foi substituído pelas vozes dos habitantes da aldeia que vinham em socorro das prováveis, quase certas, vítimas.
Os primeiros habitantes que chegaram ao local depararam com uma cena terrível. A casa de Zé Zeferino e as casas contíguas tinham desaparecido da beira da estrada e, apesar da fraca iluminação pública, vislumbrava-se no fundo da ravina aquilo que, momentos antes, eram casas daquela aldeia minhota.
Zé Zeferino tinha sobrevivido à queda mas ficara preso entre os destroços. Deitado de costas sobre uns rolos de rede de capoeira que vendia na loja, um barrote de madeira do travejamento da casa tinha-lhe aprisionado os dois pés e um outro tinha-lhe passado perto da cabeça e atravessado no peito, prendendo o braço esquerdo contra o que restava da porta das traseiras da casa. O outro braço tinha ficado debaixo do que restava da prateleira onde tentara, momentos antes, colocar as latas de tinta. Zé Zeferino estava imobilizado.
O soalho que fora do quarto de dormir tinha-o acompanhado intacto durante a queda da casa e ficou incrivelmente preso entre os escombros por cima da cabeça, escorando toda a terra desprendida das paredes da ravina, evitando que tivesse sido esmagado. O soalho, agora a fazer de tecto, encontrava-se a uma distância razoável, permitindo que permanecesse naquele local com ar suficiente aguardando salvamento. O lugar estava horrivelmente escuro.
As buscas à procura de sobreviventes começaram. Os bombeiros voluntários da vila que foram chamados ao local do sinistro chegaram com a rapidez habitual, mas não estavam preparados para uma situação do género. Costumavam apagar fogos e não resolver problemas de derrocadas, mas como estavam empenhados em fazer algo pelos seus conterrâneos soterrados, instalaram uns holofotes para iluminar o local e desceram pela ravina, para analisar a situação. Pouco podiam fazer, o amontoado de destroços era de tal maneira que era necessário a presença de uma grua. Começaram a chamar pelas pessoas na expectativa de identificar os locais onde pudessem estar sobreviventes. Algumas vozes ouviram-se mas Zé Zeferino, entretanto, desmaiara.


II

O dia estava despontar, a chuva tinha parado por completo e o sol começava timidamente a aparecer entre as nuvens, confirmando o velho ditado: «Depois da tempestade a bonança.»
Os bombeiros, com a ajuda dos habitantes, já tinham, durante a noite, resgatado dos escombros algumas pessoas, umas com vida, outras infelizmente sem a mesma sorte.
Zé Zeferino recuperou os sentidos, encontrava-se um pouco baralhado, o local onde continuava preso era de difícil acesso, mas apesar de tudo o ar estava a ser renovado e uma luminosidade estriada estava-lhe a chegar.
Não sabia por quanto tempo esteve inconsciente, o corpo estava tremendamente frio, tremia, tinha um sabor a sangue por causa de alguns dentes que se partiram na queda. Não conseguia gritar a pedir socorro, estava afónico, talvez de medo ou de alguma pancada que levara na cabeça quando da queda. Chamou, em silêncio, pela mãe, Maria, e pelo pai, José.
Meus pais, ajudai-me nesta aflição, não me deixem morrer, podia não ter sido bom filho, ter-vos abandonado quando vocês precisaram de mim, mas eu sou vosso filho, não me podem deixar neste desespero, neste túmulo, nesta escuridão, sem poder mexer-me, não é possível que vocês não façam nada para me tirarem deste sítio. E, sem as desejar, as lágrimas começaram a correr pelas faces.
E os meus vizinhos? Se calhar já foram salvos, e agora vão-me encontrar! Ou será que já desistiram? Não ouço barulho, será que estou também surdo? Tentou gritar, mas da sua boca não saiu nenhum som. Começou a chorar convulsivamente. Eu não mereço morrer, talvez tivesse feito muitas coisas erradas, mas se tenho que pagar os meus erros, que seja vivo e não morto.
Zé Zeferino não conseguia saber quanto tempo já tinha passado, se minutos, se horas, se dias. Ouvia o movimento dos bombeiros e dos seus conterrâneos na tentativa de retirar os destroços. Sentia o corpo todo dorido dos trambolhões que dera. Ouvia passos no tecto na sua actual alcova de desgraça. Era esquisito porque os sons que lhe chegavam não lhe pareciam de pás, sacholas ou outros utensílios habitualmente usados para remover terra ou destroços. Pareciam passos, como quando alguém está no andar superior de uma casa e ouvem-se as passadas no andar inferior. Eram passos estranhos, pesados, estereotipados e prenunciadores de algo que não se coadunava com a situação real. Ficou à escuta, os passos deixaram-se de ouvir.
Quem quer que fosse estava a deslocar uma tábua do soalho. Ia ser libertado? Ficou ansioso! A tábua deslocou-se e apareceu a cara de uma mulher de meia-idade, com contornos luminescentes, com uns rolos a enfeitar a cabeça, debaixo de uma rede de cabelo. Fixaram o olhar um no outro. A cara afivelou um sorriso. Ele conhecia aquela mulher; era Isaura, a falecida do seu também falecido patrão. Mas como era possível ela estar ali? Já tinha morrido há tantos anos, ele até tinha ajudado o marido a enterrá-la naquela noite fatídica! Estava ali para gozar com a sua desgraça ou vinha para se vingar, o estupor da velha. Eu não tive culpa nenhuma, relembrou-se. A cara deslizou para o local onde se encontrava Zé Zeferino, acompanhando-a um corpo desproporcionado, demasiado pequeno para tamanha cabeça, mas que se foi transformando na passagem para o outro lado, tornando-se num corpo de uma velha, pesado, gordo, todo vestido de preto. A velha já não sorria, ria-se talvez da situação em que se encontrava o seu antigo empregado. Sentou-se no barrote atravessado no peito, com todo o peso do seu avantajado corpo, isso apavorou-o. Isaura nada dizia e não era preciso. Zé Zeferino adivinhava os seus pensamentos.
Era já noite, mais uma vez Samuel chegava a casa bêbado, a discussão com a mulher mais uma vez ia acontecer. Zé Zeferino, no seu quarto, gozava o espectáculo, não gostava de Isaura. Ouvia tudo, insultos, gritos, pancada, pedidos de socorro e por fim choro e silêncio; todas as noites sempre a mesma cena. Mas naquela noite estava a ser diferente. Nem insultos, nem gritos, nem choro, Samuel só dizia que ia acabar com ela, não se ouvia Isaura. Zé Zeferino, perante o inesperado da situação, foi espreitar para ver o que realmente se passava. Samuel agarrava a esposa pelos cabelos e empunhava uma faca numa das mãos. Com os braços abertos, Isaura aguardava auxílio do seu empregado. Este, mudo e quedo, ficou estático à porta do quarto. O pedido de socorro não chegou a sair da garganta degolada de Isaura. Podia ter evitado o assassínio, mas não o fez, por medo, por pensar que o patrão era incapaz de o fazer, ou por não gostar de Isaura; nunca chegou a uma conclusão. O patrão, ébrio, diz que o ajude a levar o cadáver para o quintal. Hesita, fica confuso perante a inopinada situação, nunca tinha visto um morto, quanto mais transportá-lo. O patrão ameaça despedi-lo se não o ajudar. Zé Zeferino recua e prepara-se para fugir, não sabe para onde, nem porquê. Samuel diz para ele não se ir embora que não se ia arrepender. Não percebeu o sentido daquelas palavras, mas não foi preciso perguntar nada. O patrão promete que se ele se calar e o ajudar, quando morrer a loja será sua. Enrolam o corpo num cobertor e arrastam-no para o quintal. Samuel entrega-lhe uma pá para fazer uma cova, enquanto vigia. A cova foi escavada em três tempos. Não demorou muito para que Isaura repousasse na sua última morada. Por cima da campa, junto à laranjeira, pespegaram a casota do cão; o desgraçado uivou toda a noite inteira. Ninguém desconfiou do que se tinha passado naquela noite, mesmo no dia seguinte, quando perguntaram por Isaura, Samuel inventou a história que tinha a sogra muito doente e que ela a foi tratar. O tempo foi passando, dias, meses, e Isaura caiu no esquecimento.
Agora Isaura estava de volta para se vingar dele. Continuava sentada no barrote, todo o seu corpo brilhava, olhava sinistramente o seu ex-empregado. O corpo pesava cada vez mais, cada vez era maior. Isaura retirou o xaile que tinha à volta do pescoço e o que se via não era nada agradável. O pescoço, cortado, gotejava gotas brilhantes de sangue. Na mão de Isaura aparece uma faca. Zé Zeferino não quer assistir ao que se vai passar, fecha os olhos e quando Isaura espeta a faca no peito do cúmplice da sua morte, desaparece. A dor foi temível, mais moral que física. Quando abre os olhos, uma faca feita luz estava espetada no seu peito e, perante tal visão, desmaia.



III

Acordou do torpor que se encontrava e reparou que no seu peito não estava espetado qualquer objecto luminoso, tinha sido uma visão. Os seus pensamentos fervilhavam com tão estranho acontecimento. A claridade que lhe chegava dava para ver que a situação não se tinha modificado, continuava preso sem se puder mexer. À sua volta tudo se mantinha num equilíbrio instável.
Começou a sentir-se sonolento, até bocejou, os pés e as mãos estavam inchados, a cabeça, essa, continuava quente talvez pelo excesso de pensamentos dos mais variados que lhe ocorriam, mas o que lhe estava a incomodar mais era a boca, que continuava, por causa dos dentes partidos, com sabor a sangue e a dificultar-lhe a respiração. Foi por causa deste acre sabor que lhe veio à memória o Dr. Mário Peixoto, mais conhecido por Peixotinho, derivado à sua estatura. Nado e crescido na aldeia minhota que só abandonou quando foi estudar para a universidade, regressando mais tarde, já formado, médico dentista, estabelecendo consultório na vila perto da aldeia. Mas a sua verdadeira vocação era a política, na oposição, no «reviralho», como era conhecido na altura, intervindo como estudante em abaixo-assinados e protestos estudantis na «era marcelista», valendo-lhe alguns espancamentos e passagens pela PIDE / DGS.
Foram bons amigos, tinham aproximadamente a mesma idade, mais ano menos ano, e até jogaram futebol no clube da terra, ele a extremo-esquerdo e o Peixotinho a médio. Mas por causa da triste ideia do médico querer montar um supermercado na aldeia, foi motivo de uma zanga que os colocou de costas voltadas. O supermercado, segundo Zé Zeferino, ia fazer concorrência à sua loja que recentemente tinha recebido do seu patrão que fora encontrado morto em estranhas circunstâncias. Como tal tentou demover o médico das suas intenções, mas como este entendia que era um meio de se tornar mais conhecido e que politicamente o podia projectar para um dia vir a concorrer a um lugar político, quando a ditadura caísse e não demoraria muito, foi com a ideia para a frente.
Zé Zeferino, perante este desaforo, não esteve com meias medidas, denunciou-o a um «bufo» da PIDE que parava na barbearia da aldeia. Disse-lhe que o médico e mais uns quantos indivíduos comunistas reuniam-se todas as sextas-feiras no seu consultório, em reuniões clandestinas para conspirar contra o regime. Na sexta-feira seguinte três carros com agentes irromperam, já passava da meia-noite, pelo consultório e prenderam todos os hipotéticos conspiradores. Passados alguns meses, foram todos libertados, mas o Dr. Mário Peixoto nunca mais voltou à vila nem à aldeia, abandonando o país a salto.
Zé Zeferino esqueceu-se rapidamente deste acontecimento. Que foi aborrecido ele ter sido preso, talvez fosse, mas quem semeia ventos colhe tempestades. Estes acontecimentos passados há tantos anos e a situação presente misturavam-se estranhamente na sua cabeça, já não conseguia discernir se estava a viver o presente ou o passado, tudo estava muito confuso na sua febril cabeça.
Na sua mente desfilava aquele jogo de futebol em que estavam a derrotar a equipa da aldeia vizinha por um retumbante resultado. As costas estavam a atormentá-lo devido ao imobilismo do corpo.
O campo estava cheio de gente, a equipa estava em plena força. A assistência incitava as duas equipas, os treinadores davam instruções para dentro do campo. Ouve um barulho do seu lado esquerdo, parece que estão a escavar… afinal não é verdade, silêncio de novo. Mais um ataque da sua equipa, Peixotinho, num passe magistral, mete a bola em profundidade para o lado esquerdo para Zé Zeferino, que foge à marcação do defesa, tem meio campo para correr em direcção à baliza adversária; corre, corre, corre… a bola está a tornar-se incompreensivelmente cada vez mais pequena, até que desapareceu. A assistência pára de gritar, um silêncio de morte paira no campo, Zé Zeferino parou estupefacto, olha para os colegas, para os adversários e para a equipa de arbitragem, todos estão vestidos de negro com uns paus na mão, começaram a correr na sua direcção, Zé Zeferino também corre em direcção à baliza contrária, não tem bola mas corre, corre, corre… de uma corrida desenfreada passou a saltos, cada vez maiores, salta por cima da baliza adversária, a negra multidão ululante começa também a saltar por cima da baliza, é uma enorme vaga humana, Zé Zeferino salta o muro que veda o campo, continua a correr, salta valas, atravessa vinhedos, pomares, os frutos caem à sua passagem, rebentando, espargindo, um líquido vermelho pegajoso, chega à linha de caminho-de-ferro, olha para trás e vê a negra multidão a persegui-lo com os paus levantados, não percebe porquê, até estava a jogar bem, olha para a frente e depara com um comboio a alta velocidade a vir ao seu encontro, olha para trás e a negra multidão já ali não está, começa a correr desesperadamente em sentido contrário, o comboio apita, Zé Zeferino corre, corre, corre… a linha parece que vai acabar, olha para trás, o comboio desaparecera, mas a negra multidão voltou de novo ainda mais agressiva. Chegara ao fim da linha, aos seus pés tinha um enorme precipício, as nuvens estão a umas dezenas de metros abaixo, não se vislumbra o fundo, pairam aves de rapina sobre as nuvens, a negra multidão aproxima-se numa frente alargada de muitos metros, todos com os paus em riste, na frente o árbitro do jogo com o Peixotinho de um lado e do outro um indivíduo, cara chapada de Isaura, talvez irmão, param junto dele, agarram-no, faz-se silêncio… o árbitro apita e Zé Zeferino é lançado no abismo perante a multidão aos gritos, Zé Zeferino cai, cai, cai… e acorda com o corpo coberto de suor e o coração a bater desenfreadamente. A situação encontrava-se na mesma.


IV

O tempo passava, Zé Zeferino continuava preso há largas horas no seu cárcere de terra, madeira e pedras. Entre desmaios, consciência mal desperta, alucinações e pesadelos, vai passando o filme da sua vida, presente e passado, num frenesim de emoções, medos, remorsos e esperanças.
Meu Deus, porque me estais a abandonar, eu sei que não tenho sido bom cristão, que fiz muitas coisas erradas na vida, juro-Te que me vou emendar, irei novamente à missa e cumprirei todos os sacramentos da Vossa Santa Igreja. Ave-maria, cheia de graça, bendita sois vós… já não me lembro do resto da oração, que interessa isto agora, eu voltarei a aprender todas as orações: meu Deus, tirai-me daqui.
Ouve um estrondo por cima da sua cabeça, o barulho foi aumentando, as coisas à sua volta estavam-se a mover, o seu corpo estava a soltar-se, mas ao mesmo tempo deslizava, o terreno todo se movia. O corpo rodou sobre si, a cabeça passou à frente das pernas, tudo era movimento, acompanhado com toda a espécie de coisas que por ali se encontravam. Leva uma forte pancada na cabeça com o barrote que momentos antes lhe prendia os pés. Esta nova derrocada chamou a atenção dos bombeiros que por perto removiam destroços e, numa procura mais atenta, descobrem o corpo de Zé Zeferino, mal tratado, inconsciente mas com vida; rapidamente é transportado para o hospital da vila.
Tinha sobrevivido milagrosamente ao desastre, mas a verdade é que definhava a olhos vistos.


Epílogo

Sentado numa cadeira de rodas, Zé Zeferino olhava o horizonte através da janela do quarto. O quarto, pintado com cores de hospital, tresandava a desinfectante.
O seu estado de saúde piorava de dia para dia. Os médicos não conseguiam explicação plausível para o seu estado. Não lhe foi detectada qualquer lesão grave. A pancada que levou na cabeça não passava de um hematoma sem problemas. Não conseguiam diagnosticar qual o motivo da apatia revelada pelo doente. Tinha sobrevivido milagrosamente ao desastre, mas a verdade é que definhava a olhos vistos.
A enfermeira passou pelo doente e arranjou o cobertor que lhe cobria as pernas e ameaçava cair ao chão, mas este não manifestou qualquer reacção.
O seu olhar distante procurava recordações de um passado distante ou recente? Era indiferente, tanto um como outro não lhe traziam boas recordações. Poucos foram os momentos de felicidade, se é que os teve. Um infância sem carinho, uma juventude sem ilusões, e quando se tornou homem, só o trabalho foi a única coisa que lhe restou. Alguns acontecimentos da sua vida, durante o cativeiro forçado, e que lhe amarguravam a sua existência, foram revividos de uma forma muito intensa. Arranjou sempre justificações para os seus actos, mesmo os mais vis. Os pais, Maria e José, Isaura e Mário Peixoto, entre outros, talvez até o tivessem perdoado, cada a um a seu modo, mas a sua consciência tinha agora dificuldade em aceitar. Fosse na forma de visões ou de pesadelos ou mesmo numa semiconsciência, os factos que ocorreram despertaram em si uma severa crítica ao seu comportamento passado. Estaria a pagar o mal que fez aos outros? Os trágicos acontecimentos nada tinham a ver com o seu passado? Mesmo assumindo os seus erros, poderia ele viver em paz? As ressurgidas dúvidas estavam a consumir-lhe a sua existência.
Retira o cobertor que lhe cobre as pernas e do seu corpo algo o abandona. Zé Zeferino paira sobre o quarto, tudo era de cor branca. Vê-se na cadeira de rodas que abandonara momentos antes. A cabeça pendia sobre o peito. Todo o quarto é luz. Uma inexplicável paz interior acolhe-o. Zé Zeferino percorre um túnel de luz, incomensurável, intemporal e silencioso.

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