sexta-feira, 31 de julho de 2009

INVULGAR COINCIDÊNCIA


A infância de Anselmo Arturo fora extremamente difícil, mesmo trágica. Nasceu em Milão, quando os pais, casados, o espanhol Raúl Gelmires e a bela Alessandra Locatelli, italiana de Bassano di Grappa, fugiram da perseguição movida pelos «vermelhos» na Guerra Civil de Espanha. Eram simpatizantes do fascismo, mas com a morte do Duce, em 1945, tiveram novamente de fugir, desta vez para Budapeste, cidade onde uns amigos de ideologia que combatiam a ocupação soviética os acolheram. Raul, Alessandra e os seus amigos magiares apoiavam Imre Nagy na revolta contra o domínio soviético, quando, no trágico dia de 4 de Novembro de 1956, o exército soviético invadiu a Hungria, entrando em Budapeste e semeando o terror e a morte. Entre os 20 000 mortos jaziam os pais de Anselmo. A Europa Ocidental condenou este acto de agressão e levantou-se uma onda de solidariedade para com aquele povo e os seus órfãos. Anselmo e muitos como ele tiveram famílias portuguesas que os acolheram; Anselmo teve, para além de uma família, uma fortuna à sua espera.
Como o casal que o acolheu, já nada novos, não tinha filhos, Anselmo foi o herdeiro universal de uma fortuna colossal e de uma mansão recheada de obras de arte, local que adoptou como sua principal residência.
Possuidor de uma inteligência acima do normal, tirou várias licenciaturas, mas a sua habilidade nata para os negócios fez aumentar o seu património empresarial e imobiliário de forma considerável, mas em especial aquele que mais se dedicava com maior paixão — a arte.
Possuidor de obras de arte, em especial quadros, era também conhecido pelas suas variadas colecções de porcelanas, cristais, selos valiosíssimos, esculturas e livros. Tinha uma espectacular biblioteca, com algumas primeiras edições mundialmente cobiçadas.
E era na área da literatura que a sua paixão ocupava os momentos mais predominantes. Foi autor de alguns romances e, como não conseguiu que lhos editassem, as suas incursões na arte da escrita foram publicadas como obras de autor, numa editora em que tinha uma quota, cujo lucro, se houve, foi investido na editora para garantir a possibilidade, caso quisesse, de novo publicar.
Com tantos interesses em jogo, e difíceis de gerir, Anselmo decidiu formar um grupo empresarial, a que chamou “Grupo Anselmo A”, e, para administrar esta panóplia de empresas, nomeou administradores os seus três filhos: Herculano, economista, Pedro, engenheiro, e Catarina, licenciada em Gestão de Empresas, ficando ele como administrador geral.
Os filhos foram fruto de amores descontinuados de Anselmo. Apaixonado por cruzeiros e pelos idílios marítimos que daí resultaram, Anselmo envolveu-se, em três dos cruzeiros realizados pelas ilhas gregas, Caraíbas e países nórdicos, com três jovens, cada qual mãe de um dos seus filhos, paternidade que assumiu sem titubear, ficando a sua relação amorosa por este assumido acto.
Com os destinos das empresas entregues nas mãos dos filhos e as mães destes com chorudas pensões, Anselmo ansiava dedicar a vida à literatura. Renascia-lhe novamente o desejo incontido de escrever. Ansiava voltar de novo passar ao papel ideias que retinha na memória há vários anos. Não eram temas sociológicos, que era a sua especialidade, desses ainda fez alguns artigos para revistas da especialidade, mas contos principalmente que fugissem ao quotidiano das pessoas, talvez surrealistas, góticos ou fantásticos. Mas recentemente surgiu-lhe uma ideia que o estava a apaixonar; um conto voyeur, no sentido lato ou extensivo da palavra, e não só no significado restrito da palavra francesa, talvez isso até não chegasse a acontecer.
Escolheria um indivíduo, seguiria os seus passos, perscrutaria os seus gostos — os sexuais e os outros —, buscaria nos meandros da sua vida os seus segredos, qualidades e defeitos. Seria isto possível? Tinha fé que sim. Seria um conto diferente.
Aonde é que poderia encontrar a personagem que pretendia para o seu conto? Tinha que ser uma personagem real, acontecimentos reais, locais verdadeiros, nada de ficção. Era um desafio à sua capacidade de observador. Iria transformar-se num espião, ou melhor, num detective particular, não um Sherlock Holmes ou um Poirot, que desvendavam mistérios, mas um daqueles indivíduos que perseguem as pessoas sem serem vistos, vigiando na sombra, atrás de um jornal, com uns óculos escuros, usando uns binóculos, uma câmara fotográfica ou um bigode postiço. A ideia estava a seduzi-lo e a transformar-se numa sombra que perseguiria a sua personagem, noite e dia. Teria com certeza de recorrer a outras pessoas para seguir os seus movimentos quando ele não pudesse ou para recolher informações de interesse.
Na sua mente as estratégias estavam a tomar forma. Precisava de tratar de arranjar a personagem. Seria uma pessoa real, extraída da massa humana que circula na rua, no dia-a-dia, com os problemas, alegrias e tristezas do comum humano.
Iria procurá-la, talvez, num terminal de um aeroporto, numa estação de caminhos de ferro ou de autocarros, num restaurante, num café, numa livraria, num cinema, num espectáculo desportivo ou simplesmente na via pública. A única coisa que seria fictícia era os nomes. Não podia arriscar que a pessoa escolhida e outros intervenientes, que de qualquer modo se envolvessem com ela, sentissem que estavam a devassar as suas vidas sem autorização. Isto podia criar-lhe problemas. O nome da sua personagem já tinha sido escolhido: Vasco Rei.
Pediu ao seu motorista que o levasse ao aeroporto. Talvez um local óptimo para começar a sua busca.
Dirigiu-se para as chegadas. As partidas, pensou, não valia a pena, porque, nas partidas, a personagem que escolhesse, talvez, o mais certo, seria levantar voo.
Vários voos estavam a chegar: Rio de Janeiro, Nova Iorque, Caracas e outros destinos do outro lado do continente. Sentado no bar do aeroporto, Anselmo observava quem chegava; homens de negócios, turistas, um inevitável grupo de orientais, com certeza japoneses. Não escolheria, por razões óbvias, um estrangeiro e por isso debruçou-se a analisar os portugueses. Um casal de noivos, sem interesse; um par de rapazes dos seus 25 anos, quase de certeza estudantes, numa universidade americana, de férias, igualmente sem interesse; um casal de idosos que vinha visitar alguém, esse alguém apareceu, excitadíssimo a acenar-lhes, sem interesse; um grupo de turistas portugueses vindos de uma visita à Big Apple, sem interesse; uma equipa desportiva com atletas de alta estatura, provavelmente de basquetebol, também sem interesse. Anselmo estava quase a desistir por aquele dia, quando reparou num homem dos seus 35 a 40 anos, impecavelmente bem vestido, fato escuro de marca, cabelo bem aparado, bem barbeado, camisa branca, sem gravata, óculos escuros de marca, sapato polido, nem parecia que tinha efectuado uma viagem transatlântica. Talvez fosse uma personagem a explorar.
O indivíduo parou no meio do átrio do aeroporto como à espera de alguém. Anselmo aproximou-se discretamente, ficando a uma insuspeita distância da personagem. Esta retirou do bolso um telemóvel, marcou um número e aguardou. Anselmo também aguardou. Ouvi-o a falar em português, mas, como passavam uns italianos perto deles a falarem, como costume em voz alta, não conseguiu ouvir o teor da conversa. Desligou o telemóvel e dirigiu-se para a saída, na direcção da postura dos táxis. Anselmo seguiu-o e comunicou por telemóvel ao motorista para o ir buscar ao mesmo local.
Quando a personagem já tinha saído da aerogare e estava perto da paragem dos táxis, um indivíduo, vestido totalmente de preto, de óculos escuros e de forte compleição física, veio ao seu encontro, cumprimentou-o respeitosamente e, pelos gestos que fez, apercebeu-se que este ia buscar o automóvel. Saiu a correr enquanto a personagem aguardava, Anselmo dirigiu-se para o seu automóvel, que já estava à sua espera.
Um Mercedes 350 SL parou mesmo atrás do seu e a personagem entrou, o automóvel ultrapassou o seu, e ele mandou o motorista segui-lo à distância. Apontou o número da matrícula, achou oportuno, talvez mais tarde fizesse jeito.
O automóvel dirigiu-se para o centro da cidade. A uma distância que não levantava suspeitas, Anselmo seguia-o.
O automóvel da personagem, curiosamente, parou a um quarteirão da sua casa, num prédio de construção moderna, conhecido na zona por ser onde viviam gente de dinheiro, homens de negócios, empresários, políticos, pessoas que não tinham dificuldades na vida, pelo menos aparentemente. A personagem saiu do carro e este arrancou. Anselmo disse ao motorista para parar. Saiu do carro e ainda deu para ver qual a caixa de correio que ele abrira para recolher o correio. Como a porta da rua não se fechara totalmente, deu para entrar e ver qual o apartamento: apartamento 7-B. Não tinha indicação do proprietário.
No dia seguinte, tentaria saber o número do telefone e nome do proprietário.
Depois de jantar, Anselmo sentou-se à secretária, ligou o computador e começou a escrever.

«Vasco Rei desceu do avião que o tinha trazido de Nova Iorque. À espera encontrava-se o seu segurança particular ao volante de um Mercedes 350 SL. Vasco Rei entrou no automóvel no lugar junto ao motorista e deu indicação que o levasse para casa. Morava no centro da cidade, num vasto apartamento, numa zona residencial, escolhida pelos empresários, políticos e outros indivíduos, cujo dinheiro não fazia parte das suas preocupações. Berto, o motorista e guarda-costas, deixou-o à entrada do prédio de apartamentos e arrancou. Antes de subir no elevador foi levantar a correspondência que estava na caixa do correio.»

Anselmo entrou na pastelaria onde, por coincidência, a personagem se encontrava a tomar o pequeno-almoço. Cheirava a tinta fresca, o dono tinha dado um refrescamento ao estabelecimento, dos altifalantes, estrategicamente colocados nas paredes, saía o som de uma canção dos Coldplay muito em voga. Anselmo abriu o jornal comprado momentos antes na tabacaria da esquina e pôs-se a ler. A personagem estava a falar ao telemóvel. Tentou apurar o ouvido para tentar ouvir a conversa mas não foi possível. Concluída a conversa, chamou o empregado, pagou a despesa e saiu. Como tinha alguma confiança com o dono da pastelaria, arriscou a fazer-lhe uma pergunta:
— Sr. Sousa, desculpe, conhece aquele sujeito que acaba de sair?
— Muito mal. É frequentador há já algum tempo da pastelaria, mas nem sei o seu nome nem o que faz. Mas porque é que pergunta?
— Simples curiosidade, tenho impressão que o conheço de qualquer lado, mas não consigo lembrar-me.
Solícito, o Sousa, que até gostava de bisbilhotar a vida dos outros, ofereceu-se:
— Mas, se quiser, eu tento saber alguma coisa.
— Não, não vale a pena.
— Se eu souber alguma coisa, digo-lhe — acrescentou.
— Está bem. Se souber alguma coisa, agradeço.
Anselmo saiu da pastelaria, olhou por cima do ombro e reparou que o Sousa estava a olhar para ele com ar desconfiado. Atravessou a rua para tentar disfarçar, e, logo que sentiu que estava fora do alcance do olhar inquisitivo do Sousa, acelerou o passo e ainda conseguiu ver a personagem meter-se num BMW 3Z, cuja matrícula fixou. Tinha um amigo que trabalhava nos registos de automóveis e talvez conseguisse saber o nome do proprietário do veículo.
Nesse dia tinha destinado ir a um leilão de arte nos arredores da cidade. Entre muitas peças de valor que gostaria de adquirir, encontrava-se um quadro de Vieira Portuense. O leilão estava concorrido, muitos dos seus amigos e frequentadores destes leilões estavam presentes. Trocou algumas palavras de circunstância com alguns deles, pegou num catálogo e foi sentar-se quase no fundo da sala. Para seu espanto, a personagem também estava presente. Sentiu o coração a pulsar mais rápido perante este acontecimento. Felizmente que foi sentar-se longe dele. O leilão começou com as licitações de várias peças de cristal, depois de porcelanas, e Anselmo reparou que a personagem não fazia qualquer licitação. Distraído a observá-lo, Anselmo quase que ia deixar passar o objecto que ali o tinha feito ir. O quadro começou a ser leiloado, e Anselmo tinha fixado um valor até ao qual iria. Não foi preciso esperar muito tempo, o último lanço que fez desmobilizou a concorrência, os presentes acharam que o quadro não merecia aquela quantia, e o leiloeiro rematou o quadro a seu favor. No final do leilão, Anselmo foi efectuar o pagamento e, como era normal, deixava a sua morada para que a leiloeira entregasse o objecto comprado em sua casa, porque esse transporte era efectuado por empresas de segurança. Mas desta vez decidiu levar o quadro consigo. Um empregado da leiloeira transportou-o até ao parque de estacionamento e depositou-o no porta-bagagem do automóvel. Anselmo agradeceu, meteu-se no automóvel e saiu do parque de estacionamento.
O seu motorista tinha um problema familiar para resolver, com certa urgência, e Anselmo disse que o deixasse na casa da filha e que fosse à sua vida que depois ele mesmo levaria o automóvel para casa.
Foi deixado na casa da filha Catarina, que morava muito perto de si, para cumprir a missão de dar de comer à gata Sissi, porque a filha tinha-se ausentado, por duas semanas, para realizar um cruzeiro de férias.
Abriu a porta de acesso ao átrio e subiu de elevador até ao sétimo andar. O apartamento estava em silêncio absoluto e teve que chamar pela gata por várias vezes até que esta se lembrou de aparecer, ronronando.
Foi até à janela da sala de estar e abriu a cortina. A sala dava para os jardins do condomínio, por sinal uma paisagem magnífica. Quando se apercebeu que em frente ao andar da filha, e segundo as suas contas, rememorando a localização do prédio da sua personagem, estaria exactamente frente ao seu andar, cerca de cinquenta metros. Esta situação deixou-o excitadíssimo, porque dali podia bisbilhotar a vida da sua personagem. O andar era amplo, tinha três enormes janelas com cortinados abertos, onde se podiam ver as divisões. Tudo às claras, a sua personagem parecia não querer guardar segredos. Tinha em casa uns binóculos que iriam ajudá-lo muito.
Em pensamentos, ensaiou vários esquemas, mas todos lhe pareciam demasiado audaciosos. Abandonou o apartamento mas voltou atrás porque se tinha esquecido de dar de comer à gata.
Quando chegou ao automóvel notou algo de esquisito. O porta-bagagem parecia mal fechado. Pressionou o comando da chave que abria as portas e o porta-bagagem e o sinal característico de abertura acendeu. Quando o abriu, reparou que o quadro tinha sido roubado. Quase que desfalecia, não só pelo valor do quadro, mas por ser um quadro que há muito procurava para preencher uma parede de uma suas salas que só tinha quadros de autores portugueses. Fechou a mala do carro, com o auxílio de um lenço, e não tocou em nada. Chamou um táxi e foi à Polícia Judiciária apresentar queixa. A Polícia deslocou-se ao local para retirar possíveis impressões digitais. Feito o serviço, Anselmo foi para casa desanimadíssimo com a promessa da Polícia de que logo que tivessem novidades o informariam.

No dia seguinte levantou-se cedo e foi tomar o pequeno-almoço à pastelaria do Sousa. Fez de propósito, talvez o Sousa tivesse alguma novidade. Entrou e sentou-se no fundo da sala num sítio bastante recôndito. A sala estava com mais dois clientes que liam o jornal. O Sr. Sousa mal o viu, saiu do balcão e veio ter com ele.
— Bom dia. Antes de mais, Sr. Anselmo, pretende beber e comer alguma coisa?
— Um café e uma torrada, mas com pouca manteiga — disse Anselmo.
Antes de ir satisfazer o pedido do cliente, Sousa disse:
— Tenho novidades sobre aquele assunto que ontem me falou.
Enquanto aguardava pelo pedido, Anselmo tentava adivinhar o que o Sousa teria para lhe dizer.
Sousa regressou com o pedido, colocou-o sobre a mesa, puxou de uma cadeira e sentou-se. Parecia muito excitado.
— A empregada doméstica que trabalha na casa do tal senhor, que se chama Samuel Queirós, dá-se muito bem com a minha mulher e por vezes vem fazer umas tarefas aqui na pastelaria e eu pedi-lhe para saber algumas coisas sobre o dito cujo, claro, sem levantar muitas suspeitas. Mas a empregada é um livro aberto, até desconfio que disse mais do que é na realidade. Resumindo: o Queirós é casado, mas a esposa vive nos Estados Unidos, em Chicago, é raro vir a Portugal. Claro, o Queirós tem todo o caminho aberto, é um mulherengo de alta classe, só coisa fina. Tem na Baixa, num dos melhores locais, uma óptima ourivesaria, com clientela da melhor, e ao lado tem uma perfumaria, também de grande categoria. Aparentemente, isto é o que se sabe, mas a vida que leva não pode ser proveniente só dos ganhos da ourivesaria e da perfumaria, não acredito. Viaja muito entre Portugal e os Estados Unidos e, por vezes, é visto com uns indivíduos de aparência muito pouco recomendável. Anda sempre com um guarda-costas, isto quer dizer que a sua vida deve andar sempre em pleno sobressalto. Deve ter outros negócios pouco recomendáveis, penso eu, mas não consegui saber mais nada.
— E já foi muito — respondeu Anselmo. — Isto é mesmo de detective — acrescentou
O Sousa ficou embevecido com a lisonja.
— Como lhe disse era simples curiosidade, conheço-o de qualquer lado, mas não sei de onde. Espero, pelo que o Sr. Sousa me disse agora, que ele nunca se cruze comigo.

Anselmo saiu da pastelaria com uma ideia na cabeça; ir a casa da sua filha Catarina, mas com o objectivo de dar de comer à gata.
Sentou-se num sofá, na sala de estar da filha, com os cortinados entreabertos, com a luz apagada e os binóculos numa mesinha junto ao sofá. Colocou um computador portátil ligado sobre os joelhos. No apartamento da personagem havia movimento.

«O dia estava muito quente, o apartamento de Vasco Rei estava todo aberto, com as janelas corridas, que davam para uma varanda ao correr de todo o apartamento. Havia luzes no interior do andar, e pressentia-se movimentos. Passados nem dez minutos, Vasco apareceu numa das janelas. Vestia um roupão branco, andava descalço e estava a beber, pelo formato do copo, seria um uísque. Acendeu a luz da sala de estar, fechou a janela, ligou a televisão e deitou-se num dos sofás. Mal se tinha deitado, a campainha tocou. Vasco foi abrir a porta. Era uma jovem, loura, alta, com cerca de 25 anos, trajando um vestido preto de alças, justo ao corpo, realçando as belas formas que se adivinhavam por baixo. Ao pescoço trazia um adorno de ouro e no decote, bastante atrevido, tinha o seu nome — Miranda — desenhado com pequenas pedras brancas. A jovem trazia um embrulho, que pousou no sofá. Vasco deu um beijo na cara da jovem. Sentaram-se no sofá e Miranda abriu o embrulho. Tratava-se de um cofre de prata, de certeza muito antigo, uma obra-prima em filigrana. Vasco pegou nele e ficou a olhar maravilhado. Miranda cruzou as pernas e a saia subiu perigosamente, mas não fez caso. Vasco pousou o cofre numa cadeira à sua frente, olhou para Miranda, aproximou-se e pousou um beijo nos seus lábios. Miranda riu-se e agarrou amorosamente a cabeça de Vasco. Audaciosamente, Vasco puxou a alça do vestido para baixo e beijou o pescoço e o ombro de Miranda. Atrevidamente Miranda meteu a mão por baixo do roupão de Vasco e este deu um salto. Miranda levantou-se e Vasco agarrou-a pela cintura e beijou-a apaixonadamente, a que esta respondeu. Vasco pegou em Miranda ao colo e levou-a para o interior da casa.»

Anselmo desligou o computador. Deu de comer à gata e deixou o apartamento.
Olhou para o relógio, era quase meio-dia e tinha um encontro marcado com o Ventura, que era um detective particular. Eram amigos de há longos anos, empregou os seus filhos numa das suas empresas, e já tinha feito uns serviços para ele de natureza vária. Contudo, neste caso, era bastante diferente. Tinha-lhe pedido que soubesse o que fosse possível sobre a personagem e as razões porque o pretendia saber, facto que Ventura estranhou pela sua bizarria.
O encontro deu-se na casa de Anselmo. Ventura apareceu pontualmente.
— Ventura, você nem parece português com esta pontualidade inglesa — elogiou Anselmo.
— É uma questão de princípio. Eu até acho um vício a minha mania de cumprir escrupulosamente os horários — respondeu Ventura.
— Eu penso que é uma questão de educação — disse afirmativamente Anselmo. — Vamos então às novidades.
— Tenho algumas, mas existem muitas falhas na investigação. O indivíduo é uma caixinha de surpresas, é difícil fazer o trabalho. Chama-se Samuel Queirós. Movimenta-se muito, tem muitas actividades, algumas estranhas, tem uma série de homens e mulheres a trabalhar para ele, penso, que até fazem de «testas-de-ferro» para certas actividades. Como actividade legal visível tem uma ourivesaria e uma perfumaria.
— Isso já eu sabia — disse Anselmo.
— Interessa-se por arte, a mulher tem uma galeria de arte em Chicago, nos Estados Unidos, e muitas das peças expostas vão daqui de Portugal e da Europa. A Polícia Judiciária anda a investigar, mas o indivíduo é como uma enguia, é escorregadio. Mulheres não lhe faltam; três delas fazem parte do ciclo de interesses, uma loura esbelta, uma morena e uma brasileira de parar o trânsito, não consegui saber, ainda, o nome delas. O que elas fazem, para além do óbvio, são uma espécie de «colaboradoras». Talvez o termo não esteja muito correcto, mas francamente não arranjei melhor. Consta que a tal loura frequenta o jet-set e subtrai peças de valor das casas para onde é convidada; tem umas mãos de fada. Depois ele deve despachar rapidamente o material, fica aqui em Portugal ou vai para Chicago. A brasileira tem um bar, montado por ele, já foi visitado várias vezes por entidades fiscalizadoras e pela polícia, mas não apanharam nada. Não se trata de um bar de alterne, até é muito bem frequentado, consta que é droga e da pesada. Como ele faz não se sabe. O homem continua limpo. A outra loura é colaboradora na parte da ourivesaria, não como empregada, desloca-se frequentemente ao estrangeiro, dizem, para fazer encomendas para a loja. Ele por vezes vai com ela, mas o segredo destas viagens é tráfego de peças de arte ou lavagem de dinheiro. Mas também nada de concreto, somente suspeitas. O indivíduo é muito seguro.

Estava Anselmo no seu posto de observação, na casa da filha, escrevendo ao computador algumas passagens do conto, quando viu movimentos no apartamento da personagem. Para melhor observar o que se passava, pegou nos binóculos e perscrutou o ambiente da sala de estar.
Tocou o telemóvel, era o Ventura. Disse que sabia mais alguns pormenores, mas que não eram muito relevantes, contudo, tinha tido a informação que a personagem ia ausentar-se do país, dentro em breve, para contratar um especialista para a realização de um golpe que ia efectuar no nosso país. Qual era a natureza do golpe andava a tentar descobrir, que seria difícil, mas, logo que soubesse algo mais, o informaria de imediato. Desligou o telemóvel e recomeçou a observação.


«Vasco Rei vestia umas calças azul-escuras, uma camisa cor-de-rosa sem gravata. Preparava uma mala de viagem. Introduzia nesta peças de vestuário interior, algumas camisas, uma camisola, um par de calças de cor escura, o estojo de toilette, um livro e uns embrulhos cujo conteúdo era impossível identificar. Entretanto Berto, o motorista e guarda-costas de Vasco Rei, aguardava que o patrão terminasse as operações. Vasco vestiu o casaco e enrolou uma gravata grená, que meteu no bolso. Berto fechou a mala, pegou nela, apagou as luzes do apartamento e ambos saíram.»

O motorista de Anselmo estava à porta do apartamento da filha aguardando ordens do patrão. Anselmo arrumou rapidamente o computador e saiu do apartamento. Alguma coisa se ia passar com a sua personagem e não queria perder a oportunidade de observar.
Entrou no carro e deu indicações ao motorista, que rapidamente deu a volta ao quarteirão para fazer a perseguição à distância. Quando entraram na rua onde estava localizado o apartamento, o automóvel da personagem pôs-se em movimento. O motorista de Anselmo, por sua indicação, seguiu o automóvel. Pela direcção que tomava, tudo indicava que o destino ia ser o aeroporto. Assim aconteceu. Estacionado o veículo num parque, a personagem e o seu guarda-costas dirigiram-se à aerogare. Anselmo disse ao motorista que o deixasse numa das entradas.

«Vasco Rei, acompanhado de Berto, dirigiu-se aos balcões do check-in. O placard indicava como destino Bogotá (Eldorado), com escala em Newark. Vasco retirou do bolso uma papelada, que entregou à funcionária. Berto depositou a mala no local destinado à pesagem das bagagens e afastou-se. A funcionária colocou a cinta de papel na mala com o destino, esta movimentou-se no tapete rolante e desapareceu para o interior, Vasco recebeu o bilhete e deu lugar a outro passageiro. Vasco e Berto trocaram algumas palavras, foram até a um dos bares do aeroporto e sentaram-se numa mesa. Vasco pediu a Berto que fosse comprar um café e umas águas com gás e que para ele comprasse o quisesse.»

Anselmo não queria deixar de observar mas uma necessidade fisiológica premente obrigava-o ir aos lavabos. Iria num pé e voltaria noutro. Mas apesar de ter feito a operação no menos tempo possível, quando chegou, Vasco e Berto tinham desaparecido. O café e as águas continuavam na mesa, intactos, assim como o sumo que deduziu que era para Berto. Olhou para todos os lados e não os viu. Dirigiu-se para a porta de embarque e, apesar de naquele momento estarem poucos passageiros, não o viu na zona de controlo da alfândega. Correu para a zona dos bares e observou, a pente fino, pelos vidros que davam para a zona das portas de embarque, mas também não o viu. Estava desolado, voltou aos bares, cirandou pelos espaços prováveis e improváveis que pudesse estar mas nada resultou. Estava atento ao que os altifalantes anunciavam, na tentativa de ouvir o nome da personagem ser chamado para se apresentar rapidamente na porta de embarque. A hora de saída do avião com destino a Bogotá chegou. No televisor que anunciava as saídas lia-se «Voo fechado». Passados alguns momentos, o destino de Bogotá desapareceu, dando lugar a outro destino. Foi à companhia que procedia a esses voos e arriscou perguntar se o passageiro Samuel Queirós tinha embarcado no voo para Bogotá. A funcionária, muito simpática, foi consultar no computador a listagem dos passageiros e informou que o Sr. Samuel Queirós não tinha embarcado. Ficou perplexo perante esta notícia e pediu à funcionária para conferir, e ela confirmou o que anteriormente tinha dito.
Anselmo, desolado, abandonou o aeroporto e uma pergunta bailava-lhe na cabeça: onde se teria metido a sua personagem?
O seu conto estava já muito adiantado, com todos os ingredientes, reais, que entendia serem necessários, agora com este desaparecimento inopinado iria atrasar um final que esperava encontrar em breve
Quando chegou a casa, a empregada informou-o de que tinha telefonado da Polícia Judiciária o inspector Mendes, que disse que tinha urgência em falar com o Sr. Anselmo, hoje mesmo, se possível, e tinha apontado o número do telefone.
Anselmo dirigiu-se para o escritório, ligou para o inspector e este pediu-lhe se podia dirigir-se à Polícia. Perante a insistência, Anselmo não hesitou, dirigiu-se para lá de imediato, especulando durante o percurso o que se estaria a passar que justificasse esta chamada urgente.
Quando entrou na sala de estar que antecedia o gabinete do inspector, encontrou sentados a sua personagem e o seu guarda-costas. Ambos fixaram Anselmo, que se sentiu constrangido. O inspector nem o deixou sentar, introduziu-o de imediato no seu gabinete.
— Sr. Anselmo, faça o favor de se sentar — disse o inspector.
Anselmo sentou-se um pouco nervoso porque passou-lhe pela cabeça que a sua personagem ter-se-ia sentido, possivelmente, vigiado, perseguido e como tal, como qualquer cidadão, apresentou queixa.
— O Sr. Anselmo conhece algum daqueles senhores que estão ali fora sentados.
— Penso que já os vi em qualquer lado, mas, para falar francamente, não me recordo muito bem — resposta enviesada dada por Anselmo.
— Para já informo-o de que o seu quadro apareceu — disse o inspector.
— Fico satisfeito em saber. E onde o encontraram? — perguntou.
— Foi encontrado na casa de uma senhora chamada Adriana Teles, colaboradora de um dos senhores que se encontra aí fora e que se chama Samuel Queirós.
«A Miranda, pensou Anselmo.»
— E como foi possível? — perguntou Anselmo.
— Andávamos a uns tempos a vigiar a vida deste senhor. É um traficante, burlão e ladrão de alto gabarito. Ao senhor o roubo do quadro seria o primeiro golpe. O seu gangue preparava-se para assaltar a sua moradia, para roubar tudo o que fosse possível. E o assalto estaria para breve. A ida a Bogotá era para ir contratar um especialista em sistemas de segurança, porque sabia que a sua moradia tem um sistema sofisticado de alarmes e ele sabia de um especialista colombiano que conhece estes sistemas muito bem. Talvez aproveitasse para fazer, também, outros negócios.
Anselmo estava sem palavras. Afinal estava a ser alvo de um «voyeurismo» ou, «portuguesmente» falando, de um acto de «mixoscopia», pensando que era ele que estava assumir esse papel.
O inspector disse que não precisava, de momento, de mais nada, que se podia ir embora e que depois telefonava-lhe para lhe entregar o quadro. Foi encaminhado para a saída, mas por outra porta, para não se encontrar com a sua personagem.
Anselmo nem queria acreditar no que estava a ser preparado contra si e contra o seu património, contudo, uma coisa o tornou feliz, tinha finalmente um final, inesperado sem dúvida, para o seu conto.

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