quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O livro dos dias

“Agarra!”

“Ladrão!”

Os gritos seguiam-no enquanto corria pela rua de paralelepípedos escorregadios, mas prestava-lhes pouca atenção. O céu estava coberto de nuvens de tempestade e a chuva estava cada vez mais forte, não o iam apanhar, não, graças à tempestade. O livro que havia roubado momentos antes estava em segurança sob a sua roupa. Ele não sabia nada do livro ou do seu conteúdo, sabia apenas que há já muito que não tinha nada para ler. O vento fustigava-lhe os fios de cabelo negro para os olhos, turvando-lhe a visão através da chuva intermitente. Não foi fácil fugir assim às cegas, mas em pouco tempo ficou bem longe do ponto de partida, bem longe da livraria. Ali não havia ninguém, naquelas ruas desertas, enquanto a tempestade aumentava rapidamente. Entrou no beco, para dentro do buraco a que chamava casa, onde o esperava um gasto cobertor, um velho candeeiro a petróleo e uma muda de roupa seca. Suspirou numa relativa felicidade retirando o livro debaixo da velha camisa.

Foi então que o pôde ver bem. Uma capa de couro preto macio com adornos de bronze nos cantos. Estendeu a mão e acariciou o negro couro, um arrepio, uma forte sensação a pele, levou-o a retirar a mão imediatamente. Há já tanto tempo que ele não tocava em pele, na pele de alguém. As páginas ligeiramente amareladas da idade eram de um papel bom, de qualidade. Secou as mãos no cobertor, encostou-se na parede de tijolo e abriu a capa. Na primeira página o título numa perfeita caligrafia que ele impacientemente ignorou, avançando uma série de páginas. Nunca fora um “homem” de prefácios. No mesmo tipo de letra perfeito lia-se:

“Roubou-me no meio de uma tempestade. Se eu não o soubesse, diria que vinha um dilúvio a caminho. Foi um roubo básico, ninguém no seu perfeito juízo iria para a rua perseguir um ladrãozeco no meio daquela chuva e daquele vendaval. Ele agarrou-me, meteu-me debaixo da camisa e fugiu daquela livraria. Já não era sem tempo. Gostava de saber quando é que ele vai perceber.”

A frustração abateu-se sobre ele. Roubara um livro chato com uma história chata. Avançou para o final, mas encontrou-o em branco. Folheava para a frente e para trás, mas, por mais que folheasse, lia sempre a mesma passagem. Atirou-o fora, ali mesmo, para o beco e para o meio da tempestade. Afinal qual fora a ideia, mais valia ter roubado algo de útil. Ainda pensou que o podia usar para acender uma pequena fogueira para se aquecer, mas decidiu que não valia a pena. Enrolou-se no cobertor e deixou que o som da chuva a embater nas pedras da calçada o arrastasse para o sono.

Não dormiu bem naquela noite. De manhã acordou e descobriu-se com a cabeça apoiada na pele preta do livro, aparentemente sem que a tempestade o tivesse sequer tocado. Não se lembrava muito bem da noite anterior. Gemeu. Sentia-se horrivelmente mal, dorido. Mesmo com a fraca alimentação e as míseras condições de vida, raramente ficava doente. O céu era de um deprimente cinzento-chumbo, o que correspondia na perfeição à sua disposição. Esfregou as mãos para as aquecer na disposição de tentar encontrar algo para o pequeno-almoço.

Mas antes tinha de tratar do livro. Era algo que estava a começar a incomodar-lhe. Agora, plenamente acordado, lembrava-se perfeitamente de o ter atirado fora na noite anterior. Mas como é que ele encontrou o caminho até sob a sua cabeça? Parou no meio da rua e abriu-o. Um calafrio percorreu a sua espinha quando viu mais uma página cheia com a mesma caligrafia elegante. Aquilo não estava lá na noite anterior.

“Tentou deitar-me fora na noite passada. Acho que ele ainda não compreendeu que agora faço parte da sua vida, até que assim o deseje. O que mais me diverte é ele pensar que detém o controlo. Mas ele não sabe que não é o primeiro, não, não é o primeiro e definitivamente não será o último.”

Correu para o rio o mais rápido que os seus velhos sapatos conseguiram, tropeçando várias vezes ao longo do caminho. Quando chegou estava ofegante, sujo e enlameado, mas isso não importava, não tanto como esse livro sinistro e assustador.

Num gesto largo atirou-o ao ar, aterrou na água num turbilhão de salpicos de água, lama e detritos. A sua atenção no entanto foi atraída para um bando de pombos que a alguns metros dali arrulhavam em volta de qualquer coisa. Esperava que fosse um pouco de pão duro ou fruta pisada, o que daria um excelente pequeno-almoço. Avançou até lá agitando os braços e gritando para os afugentar. O que viu não só o fez perder o apetite, como o choque de tal visão o fez petrificar ainda em andamento - livro. Mas, não. Ele tinha acabado de o atirar fora. No rio, ele tinha-o visto cair, tinha ouvido o barulho, o spash...

Com cuidado pegou nele pelas decorações de bronze de um dos cantos, evitando tocar o couro da capa, como se ele o pudesse queimar.

“Tentou desfazer-se de mim outra vez. Quando é que ele vai perceber? Talvez com o tempo, mas aí já será tarde de mais... Devo descartar-me da criança. O seu tempo esgota-se, mas a questão é quando. E como. Em breve, deixará de ser útil para mim.
O rapaz está-me a aborrecer. Tentou queimar-me esta manhã e destruiu o candeeiro ao fazê-lo. Palerma. Não tenho tempo para mais jogos infantis. Acho que o rio vai ser um lugar apropriado, vou ver-me livre dele tal como tentou ver-se livre de mim.”

Tinha fome e frio e o sono queria tomar conta de si à viva força. Já lá iam três dias desde o incidente com o candeeiro e ele não tirava os olhos do livro do diabo desde que este decidira que se iria afogar. Não se afastou dele nem um milímetro, não podia, não, ele estava imerso naquela caligrafia. Leu e releu aquelas páginas, mesmo depois de o sol se pôr com a ajuda de uns cotos de vela que tinha encontrado. Folheava constantemente aquelas páginas na obsessão de encontrar algo mais quando reparou que a luz desapareceu rapidamente. De forma desastrada tentou acender um dos cotos com os pequenos fósforos, queimando-se várias vezes. Em poucos minutos ficou mais escuro, o negrume fechou-se sobre si e nem as velas ajudavam. Pegou no pequeno coto e segurou-o a alguns centímetros de distância da página, com muito cuidado para não a queimar, mal conseguia distinguir as letras, com a tinta ainda húmida:

“Fim.”

Um vento gelado soprou pelo pequeno vão de escada, arrancando um pedaço de cartão que servia de parede e apagando as pequenas velas. Ele não conseguia respirar. Se pudesse, teria gritado. Caiu nas pedras da calçada, numa inefável agonia.
O livro tombou ao seu lado. Algo húmido, suave e frio o submergiu, arrastando-o. Rezou e esperou pelo fim que lhe havia sido prometido.

Quando, três dias depois, o seu corpo sem vida foi encontrado em alto mar por um pescador, as autoridades ficaram perplexas. Não havia uma única evidência de danos físicos ou evidências lógicas para a morte deste rapaz. Segundo o pescador, a única coisa que tinha com ele era um livro. Um livro ao qual estava abraçado. Uma capa de couro preto macio com adornos de bronze nos cantos e páginas ligeiramente amareladas de um papel de boa qualidade.
O que impressionou mais a polícia, o mais estranho, era que o livro não tinha o mais pequeno sinal de ter estado na água todo aquele tempo. Estava perfeito. Perfeito até de mais.

1 comentário:

Anónimo disse...

Belo conto.
Tal conto, tal vida.
O conto tinha pouco para se ler, a personagem tinha pouco para contar.
Porque é que o livro permaneceu seco depois da vida se ter apagado?
Será que o livro iria atormentar outras vidas já que esta estava por si condenada ?