sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

SONOS PARADOXAIS

O futuro pertence àqueles que acreditam na beleza dos seus sonhos.
Elleanor Roosevelt


I

Poucas são as pessoas que gostam da sua profissão. Por razões de sobrevivência, familiares ou culturais, a maioria das pessoas são, por vezes, empurradas para trabalhos que não gostam e que não idealizaram como futuro. Alguns têm coragem e arriscam a mudança, mas eu não sou excepção.
Apesar de ser licenciado em Gestão de Empresas e ter relativo sucesso na minha carreira profissional, a grande frustração foi não ter enveredado por uma profissão ligada às coisas da mente, talvez psicólogo, psicanalista ou psiquiatra. Talvez não tivesse tido tanto sucesso como na área em que me encontro, mas provavelmente sentir­‑me­‑ia mais realizado, não profissionalmente, mas em termos pessoais.
Quando andava no secundário a disciplina que mais me atraiu foi Psicologia, seduzido talvez pelo professor, um apaixonado incondicional de Freud e de Jung. Interessei­‑me particularmente pelos estudos acerca dos sonhos, a sua interpretação e as experiências que realizaram, pelo que este assunto passou a ser um hobby que veio ocupar muito das minhas horas de ócio.
Aproveitei um seminário sobre Gestão de Empresas, em Campinas, no Brasil, para me encontrar com uns amigos brasileiros, com os quais tenho mantido contacto já há alguns anos, e participei, a convite desses amigos, em reuniões de especialistas nesta matéria, conhecida pela sigla ATAS — Agrupamento dos Técnicos de Alquimia Simbólica. Aprofundei conhecimentos, troquei experiências, desenvolvi técnicas e estabeleci novos contactos, de tal modo que o assunto deixou de ser um simples hobby para fazer parte da minha vida.
De uns tempos a esta parte, um sonho tem povoado as minhas noites. Nunca fui muito solidário, os problemas dos outros, mesmo das pessoas mais próximas, nunca me preocuparam em demasia. Solidariedade era uma palavra vã, quase sem significado, até que este sonho surgiu.
Alguém pedia a minha ajuda, clamava pela minha presença, a sua voz soava do fundo desse sonho, por vezes intenso, outras vezes inconsequente, mas sempre que se ia proporcionar o que seria um encontro, algo o interrompia, e o sonho desvanecia­‑se e eu acordava. Este facto andava a perturbar­‑me.
Saí de casa mais uma vez frustrado, desci as escadas do prédio porque o elevador continuava teimosamente avariado, quando encontrei a minha vizinha, a D. Amélia, cujo marido, o Pinto, a tinha a deixado, ou ela o tinha posto fora de casa, por causa das suas bebedeiras e agressões diárias. Estava a conversar, em voz alta, com a velha surda do andar em frente. Contava maravilhas do filho Miguel, que andava a acabar um curso qualquer e na época de exames que atravessávamos passava as noites a estudar na casa de um colega e chegava de madrugada a casa com um ar que dava pena, dizia ela. Sempre desconfiei do rapaz, não parecia que aquilo fosse tudo estudo, mas como não estava interessado no assunto cumprimentei­‑as e segui o meu caminho.
Entrei no quiosque da esquina, para registar o boletim do Euromilhões, mas como estava muita gente desisti, deixando a entrega para quando regressasse do trabalho.


II

O dia foi demasiado longo. Estava ansioso por retornar a casa e voltar ao meu sonho, entrar e procurar encontrar a pessoa que me chamava.
Quando comecei a interessar­‑me por este assunto, estudei várias técnicas de activar e de enriquecer os sonhos.
O ser humano é composto por dimensões energéticas que, conjugadas, ajudam a activar os sonhos. Os recursos que se utilizam para se conseguir um maior equilíbrio energético são vários, mas o que eu mais utilizo é o recurso às ervas, mais propriamente a um banho composto de alguns ramos de arruda e alecrim, em 5 l de água, que deito sobre o corpo, excluindo a cabeça, depois do banho higiénico antes de me deitar.
Outros são as essências florais, a Star Tulip é a que mais utilizo. Foi­‑me oferecida por um dos tais amigos brasileiros de Campinas e que ajuda as pessoas a aperfeiçoar a captar os sentimentos mais sensíveis do inconsciente e promove uma clarificação interior, criando a necessária sintonia para contactar os sonhos.
Recorro, por vezes, também à automassagem, que dissolve as tensões e diminui o stress e promove uma estimulação e uma reorganização da memória corporal, o que influencia positivamente e enriquece os sonhos. Por sua vez, as técnicas de relaxamento são óptimas para aumentar a sensibilização interior e desenvolver a concentração.
Antes de me deitar, efectuei alguns exercícios de relaxamento, rememorei, dentro do possível, os acontecimentos ocorridos no sono anterior e deitei­‑me, sem antes colocar debaixo do travesseiro absinto para ajudar ao aparecimento de sonhos, e fiquei à espera.


III

Era uma enorme caverna, diria infinita, com uma abóbada situada a uns bons 50 m de altura, de cor azul, como se do céu se tratasse. A largura da caverna também era enorme, como nunca tinha visto, assemelhava­‑se a uma avenida ou um enorme boulevard parisiense.
Entre as frondosas árvores, donde saía música muito suave de grandes compositores clássicos, alguns meus preferidos, como Mozart, Bach e Beethoven, havia quadros enormes pendurados em paredes maiores dos que se podem ver nos museus, alguns com cenas de índole religiosa, outros com cenas de batalhas, onde se viam corpos dilacerados de homens e cavalos, e outros, pelo menos naquela zona da avenida, continham imagens impregnadas de simbolismo, enigmático e mágico. Por ser um apreciador da arte wicca, em particular, reconheci­‑os porque apresentavam os símbolos de Ankh, o olho de Hórus, o Pentagrama, o Selo de Salomão, a Suástica, o Tridente, o Pentalfa e outros da simbologia mágica, conhecida também como a «Arte dos Sábios» ou simplesmente «A Arte», utilizada pela feitiçaria moderna.
Os quadros percorriam as paredes desta caverna na qual não conseguia prever qual era o princípio ou o fim. Naquele momento não havia automóveis, só pessoas, uma multidão preenchia as várias faixas da avenida. Estavam vestidas com trajos multicoloridos e com as caras tapadas com máscaras de carnaval, venezianas, de teatro japonês, de heróis, negras, índias, de todas as espécies e feitios.
Percorri aquela avenida maravilhado. A certa altura reparei que havia uma ruela, mais propriamente uma quelha mal iluminada, onde se vislumbravam uns vultos. Aquele lugar atraiu­‑me. Penetrei naquele lugar esconso onde o lixo era rei. Uns quantos sem abrigo, andrajosamente vestidos, faziam camas de cartões para dormir. Ninguém mostrou curiosidade pela minha presença, a não ser um sujeito de meia­‑idade que se aproximou e agarrou­‑me o braço.
— Desculpe, não tenho dinheiro para lhe dar — disse.
— Eu não quero dinheiro — respondeu o sem-abrigo.
— Mas eu não tenho nada para lhe dar — disse de novo e tentei soltar o braço um pouco incomodado.
— Mas eu não quero nada — replicou de novo. — Só quero que você me ouça.
Estranhamente, e sem saber porquê, parei e ouvi­‑o.
— Chamo­‑me Afonso Maria Melo de Albuquerque Lencastre, sou descendente de boas famílias e já tive uma vida boa, talvez melhor que a sua. Mas o álcool apoderou­‑se de mim, não consegui resistir­‑lhe e ele atirou­‑me para esta desgraça. Aliás, quem verdadeiramente me atirou para este beco infecto foi a minha própria família, a minha mulher e a minha filha, que não suportaram mais as minhas bebedeiras. Um dia quando regressava a casa a cair de bêbado, a minha mulher e a minha filha não me deixaram entrar e puseram­‑me uma mala com algumas roupas à porta.
Por vergonha não reclamei os meus direitos e refugiei­‑me nesta vida, juntando­‑me a estes desventurados, para quem a vida também foi madrasta. Ainda tentei, mais tarde, falar com elas para regressar, mas soube que ambas tinham sofrido um desastre de automóvel e que tinham morrido.
— Não tem mais família? — perguntei.
— Sim. Um filho, que na altura estava no estrangeiro a trabalhar.
— E ele nunca o procurou?
— Não sei, talvez ! Mas como não soube o que se passou não sabia onde me procurar. Se calhar pensou que eu tivesse morrido
— O que posso fazer por si?
— Não sei. Mas sinto que você me vai ajudar.
O sem-abrigo afastou­‑se, abriu uns cartões, junto de um relógio de caixa alta, absurdamente alto, deitou­‑se, puxou uns trapos para cima de si e ignorou a minha presença, que parado fiquei a olhar para aquela estranha cena.
Voltei à avenida, a multidão continuava a desfilar. Umas crianças muito bonitas e que respiravam saúde brincavam com uns dados enormes, com estrelas desenhadas nas faces e com números no centro. Parei por alguns momentos a observá­‑las porque me chamou à atenção o facto de sempre que jogavam saíam sempre os mesmos valores ou o 2 ou o 7.
Um homem com um casaco de xadrez apareceu esbaforido e gritou­‑me:
— Aponte os números! Aponte os números! Entregou­‑me um lápis e um caderno enormes.
Não percebi o que ele queria. Entretanto a multidão agitou­‑se, foram abrindo uma clareira e vislumbrei ao longe uns ciclistas que se preparavam para um sprint final. Encontrei­‑me só, no meio da avenida, sobre uma linha traçada no solo que dizia «Meta». Os ciclistas aproximavam­‑se a alta velocidade, e num instante estavam à minha beira, e, instintivamente, apontei os números 32, 5, 17, 28, 40 e não consegui apontar mais nada.


IV

Acordei com o buzinar dos automóveis na rua. Um acontecimento inesperado e insólito tinha ocorrido. Um burro puxando uma carroça atravessou­‑a na rua, provocando um enorme engarrafamento. Teimosamente, e apesar dos esforços do dono, um velhote de cerca de 80 anos, o burro, para além defecar em plena via pública, cismou que dali não saía.
Perante os risos de um grupo de jovens, deliciados com a cena, da indiferença da maior parte dos peões mais preocupados com a sua vida e da impaciência demonstrada pelos automobilistas presos nesta situação, um taxista, de avantajada barriga, saiu resolutamente do carro, chegou­‑se à beira do burro, pousou delicadamente a mão na cabeça do animal e disse­‑lhe algo a que este acenou com a cabeça numa atitude de ter compreendido a mensagem. O burro começou então a movimentar­‑se, endireitou a carroça e prosseguiu viagem. O dono, o velhote, até teve dificuldade de subir para a carroça perante a inesperada atitude da besta. Um transeunte pasmado com o acontecimento interpelou o taxista.
— Amigo, o que disse ao burro para ele começar a andar?
— O mesmo que digo aos meus clientes quando têm atitudes de burro.
— Como assim?
— Ó amigo, se você não sabe para onde quer ir, o melhor é pôr­‑se a andar. Isto resulta tanto para as pessoas como para os burros. São todas umas bestas — disse o taxista, puxando as calças para o lugar onde a barriga permitia e entrou no carro com um sorriso vitorioso.
Assisti a este pitoresco evento da janela do meu quarto. Como já não conseguia dormir mais, decidi tomar banho e começar um novo dia.


V

Ao entrar na empresa tinha na minha secretária um cartão-de-visita de um vendedor de uma empresa de material de escritório, situação que seria vulgar, não fosse o facto do nome do referido vendedor, Rui Lencastre.
Perguntei por telefone para a portaria se se encontrava alguém com o nome de Rui Lencastre para falar comigo. Confirmaram­‑me que sim. Mandei­‑o subir de imediato.
— Rui Lencastre, da empresa Office Service Séc. XXI — apresentou­‑se mal entrou.
Era um indivíduo aparentando cerca de 35 anos, agradavelmente vestido. Começou a apresentar a empresa, sobre a qual eu não estava minimamente interessado.
— O senhor é filho do Sr. Afonso Albuquerque Lencastre? — perguntei.
— Sou. Por acaso conheceu o meu pai?
— Sim.
— Como? Foi há bastante tempo! O meu pai morreu já lá vai dez anos — disse.
Fiquei sem palavras, não sabia o que dizer, inventei algo que fosse plausível.
— Conheci­‑o por intermédio de um amigo comum — disse.
Ficou na expectativa que eu dissesse quem era o amigo comum, mas não me surgiu o nome de ninguém. Claro que não lhe podia dizer que o tinha conhecido num sonho, pois a conversa passaria para o absurdo e teria ficado por ali e eu estava interessado em saber mais.
— O seu pai era um indivíduo extraordinário mas teve pouca sorte na vida — arrisquei.
— Sim. Era descendente de uma família aristocrata mas o vício deu­‑lhe cabo da vida. A minha mãe também não foi a companheira ideal e pouco o ajudou.
— Mas a sua mãe e a sua irmã morreram num desastre de automóvel.
— Como sabe?
— Recordo­‑me ter lido num jornal — menti.
Já com ar desconfiado, Rui Lencastre continuou a falar da família. O afastamento para o estrangeiro foi a solução que, egoisticamente, encontrou para os graves problemas que se passavam no seio familiar.
Terminou com o verdadeiro motivo que ali o trouxe, o profissional. Eu é que não estava interessado minimamente no assunto, disse que ia pensar e que depois o contactava.
Voltei para casa logo que pude. Desmarquei um jantar com uns amigos, não comi nada e fui sentar­‑me no sofá do quarto, estava demasiado excitado e, desoladamente, não tinha sono.
Não resisti, fui a uma gaveta da cómoda e retirei de uma caixa um cigarro de cannabis e fumei, na tentativa quase certa que aquele psicotrópico me transportaria rapidamente para o meu sonho.


VI

Atravessei a avenida com as árvores e os quadros já meus conhecidos. Procurei o beco onde anteriormente tinha estado com o Afonso. O beco não parecia o mesmo. Os sem-abrigo tinham aumentado, levantei papelões, destapei mendigos que dormiam para não acordarem a barriga vazia, mas não encontrei o Afonso. No local onde estava o relógio absurdamente alto, que já lá não se encontrava, estavam encostados dois jovens que se injectavam. Um dos jovens reconheci­‑o, e ele também me reconheceu; era Miguel Pinto, filho da vizinha do 1.º andar.
— Viste o Afonso?
— Foi­‑se embora.
— Para onde?
— Não sei.
— E o relógio que estava aqui?
— Levou­‑o consigo. Disse que era o farol da sua vida.
— E tu que fazes aqui? — perguntei.
— Não diga nada à minha mãe, por favor. Ajude­‑me!
— Vou ver o que eu posso fazer. Voltaremos a falar — respondi.
Voltei à avenida, a multidão continuava a desfilar. De novo o homem com o casaco de xadrez apareceu e gritou­‑me de novo:
— Aponte os números, aponte os números!
A multidão agitou­‑se e de novo a cena repetiu­‑se da mesma forma e eu, como na cena anterior, apontei os números 32, 5, 17, 28, 40 e de novo não consegui apontar mais nada. O homem com casaco de xadrez não voltou a aparecer.
Tudo de repente se transformou. A avenida desapareceu, agora novas imagens apareciam e desapareciam, como flashes, distorcidas, repentinas, de difícil fixação. Tudo apontava para um novo local, onde algo dizia que eu podia encontrar o Afonso.
Uma sequência frenética de imagens sucederam­‑se, como um filme, filmado em fast motion: o busto de um poeta que não identifiquei, a estátua de um bispo que eu conheci mas não me lembrei do nome, a estatueta de uma mulher encostada a uma árvore, um lago artificial sem patos, uma torre de uma igreja cujo topo estava encoberto por uma neblina e que tinha gravado numa das suas seculares pedras «Salutat, Mariam, Qua e Multum, Laboravit, in Nobis, S. Paul AD…», tudo isto num cenário entre muitas pombas que esvoaçavam.
Deparei a certa altura com o relógio de caixa alta do Afonso junto a um banco do jardim. Senti que ele andava por ali. Dirigi­‑me a uns homens que se encontravam sentados numa escada de ferro que se riam de um modo desbragado. Perguntei­‑lhes se conheciam o Afonso, disseram que sim, onde é que o podia encontrar, disseram­‑me que ele estava ao fundo junto ao lago. Continuaram a rir­‑se e de repente transformaram­‑se em estátuas de ferro, talvez de tanto rir.
Vislumbrei ao longe o vulto da pessoa que deveria ser o Afonso. Corri na sua direcção para ver se o apanhava. Ventava, as folhas de Outono, caídas, redemoinhavam à minha volta, de repente a chuva começou a cair impiedosamente, impedindo de me aproximar dele.
A noite caiu repentinamente. Mas tão depressa caiu como clareou, mas a fisionomia daquele local, apesar de ser o mesmo, tinha­‑se alterado como por magia. Sentia que tinha recuado no tempo. Aproximei­‑me de uma mulher que entretanto apareceu como do nada, estranhamente vestida com vestes medievais, vendendo flores, a quem perguntei como se chamava aquele local.
— É o Campo do Olival, meu senhor!


VII

Acordei já o sol ia alto. Ainda bem que era domingo, dava para descansar e tentar resolver este enigma. A solução para encontrar o Afonso estava, talvez, prestes a ser resolvida. Aquela mulher tinha­‑me dado a resposta, só faltava saber onde era o sítio que ela identificou.
Fui ao roteiro do Porto e não encontrei nenhum local com aquele nome. O local podia ser fora do Porto, o que tornava mais difícil. Não! Estava convencido que era na cidade do Porto, tudo indicava que assim fosse. A família do Afonso sempre vivera nesta cidade, o Afonso não tinha dinheiro nem motivação para ir para outro local, penso que ele manteve sempre a esperança de um dia encontrar o filho.
Lembrei­‑me de passar pela polícia e perguntar, podia ser um local novo que ainda não estivesse no roteiro. Não tive sorte, a polícia em nada me ajudou por ignorância ou má vontade. Fiz alguns telefonemas a amigos meus e nenhum deles conhecia aquele local. Perguntei a pessoas conhecidas mais velhas, talvez fosse um local que tivesse mudado de nome e a antiga toponímia fosse deles conhecida, mas não tive igualmente sorte.
Deambulei de carro pela cidade, horas sem fim, na estúpida tentativa de que o local caísse do céu. Já era lusco­‑fusco quando passei junto ao Hospital de Santo António, virei para o Jardim João Chagas, mais conhecido como Jardim da Cordoaria, e vi sentado num banco o Afonso. Estava na conversa com outro colega de desventura. Parei o carro bruscamente, o condutor do carro que me precedia apitou e começou a gesticular, protestando pela minha paragem intempestiva, e tive que arrancar.
Fui estacionar o carro no parque dos Clérigos e subi a correr a rua até ao jardim. Só encontrei o colega, o Afonso tinha­‑se ido embora. Disse­‑me que ele à noite voltava, porque passava por volta das 11 horas uma carrinha de uma associação de solidariedade que distribuía refeições aos sem-abrigo, e ele estaria ali para receber a dádiva solidária, disso tinha ele a certeza. Apesar de não ter tido a possibilidade de falar com ele, não tive dúvidas que se tratava do mesmo Afonso.
Regressei a casa entusiasmado com a resolução do problema. Afundei­‑me no sofá da sala e revi os acontecimentos. Não me contive, como tinha o cartão-de-visita na carteira, liguei para o Rui Lencastre. A conversa foi breve, relatei em traços largos o que se tinha passado e que afinal o pai dele não tinha morrido e disse­‑lhe o local onde o poderia encontrar. Como seria de esperar, pairou a dúvida se eu não estaria a brincar, mas perante a natureza de tal acontecimento, óbvio seria pensar também que o assunto não era para brincadeira. Assim, e depois de um período natural de incredulidade, o filho do Afonso agradeceu e desligou. Apercebi­‑me que algo se ia passar, o quê, eu não sabia bem, mas calculava.
Já era um pouco tarde quando cheguei a casa. Ao subir as escadas, e porque o elevador continuava silencioso, encontrei a minha vizinha, a D. Amélia, chorosa, a contar à vizinha surda que o seu filho há já alguns dias que não regressava a casa, e o amigo onde passava os dias e as noites a estudar não sabia dele. Afinal, aquilo do estudo até altas horas da manhã era mentira, e o rapaz talvez até estivesse metido numa embrulhada qualquer, que ela nem calculava o que fosse, mas que às tantas até podia ser caso de polícia e podiam­‑no prender.
Perante o estado desesperado da senhora, acalmei­‑a e disse:
— D. Amélia, eu penso que a posso ajudar. Vá descansar e amanhã falamos com mais calma, não se preocupe que tudo se vai arranjar.
— Mas o senhor sabe onde pára o Miguel? Diga­‑me por favor!
— Não sei. Mas amanhã eu vou falar com umas pessoas e talvez seja mais fácil saber onde ele se encontra — disse.
Contrariada, mas com o auxílio da vizinha surda, lá consegui que a D. Amélia entrasse em casa e fosse descansar, o que eu duvidava. Na verdade, eu sabia onde procurar o Miguel, mas faltava saber se seria fácil voltar e se chegaria a tempo.
Subi o lanço de escadas que faltava para o meu andar e entrei em casa. Só foi o tempo de me despir, deitei­‑me e adormeci de imediato.


VIII

Agora na avenida onde não havia trânsito e só pessoas tudo era diferente. Em vez de uma avenida cheia de pessoas, era uma avenida cheia de automóveis, num trânsito frenético. Em vez de passadeiras para peões, haviam pontes onde circulavam pessoas e também automóveis. Ao atravessar uma dessas pontes, na tentativa de encontrar o Miguel, no beco esconso, deparei com o taxista, o da cena do burro. A cena repetiu­‑se exactamente, tal e qual como presenciei da janela do meu quarto. A realidade e o sonho cruzavam­‑se.
O beco onde pensava encontrar o Miguel deixara de existir. As imagens tinham­‑se gravado na minha mente ao mínimo pormenor, por isso, pensei que esta interacção sonho-realidade tinha o seu significado.


IX

Quando cheguei ao emprego tinha um recado na telefonista. O Sr. Rui Lencastre pedia que lhe ligasse porque queria falar comigo. Quase que não tinha dúvidas do tema da conversa.
Cheguei ao gabinete e tentei ligar para o telemóvel. Estava desligado. Como tinha o número do telefone da empresa, liguei, não estava mas tinha um recado no caso de eu telefonar: «O Sr. Rui Lencastre convida­‑o para jantar, hoje à noite, no D. Tonho, na Ribeira, em que uma pessoa muito especial vai estar presente. Aguarda­‑o pelas 20.30 horas.» Confirmei a minha presença.
Estava extremamente excitado com este acontecimento. Apesar de ser um apaixonado por estas matérias, não tinha tido uma experiência tão reveladora e ao mesmo tão inquietante como esta.
Antes de ir para o restaurante passei por casa para mudar de fato e desfazer a barba, porque um tal jantar exigia uma presença apresentável.
Como ainda faltava bastante tempo para o jantar, fui para a sala de estar e liguei a televisão, num vulgar ritual de uma pessoa que vive sozinha.
Como habitualmente a televisão tem para mim um poder, pelo menos ao fim de um dia de trabalho, de soporífero, e, passado que foram alguns minutos, Morfeu, deus mitológico grego, filho do sono e da noite, fazia­‑me companhia.


X

Zipei durante alguns momentos entre os vários canais, até que num canal algo atraiu a minha atenção. Era um programa de ajuda aos desventurados, para os quais a vida foi madrasta, aos viciados, aos abandonados, aos sem-família, aos sem-abrigo, aos que rejeitaram a sociedade ou que a sociedade rejeitou, tudo nesse programa era possível, assim dizia o apresentador.
Como o programa me estava a interessar não mudei de canal. O apresentador introduziu um novo entrevistado e pediu que se identificasse. A princípio não estava a ver quem era, mas logo que ele disse chamar­‑se Miguel Pinto, vi que se tratava do filho da D. Amélia. Eu tinha­‑lhe prometido que ia encontrá­‑lo, na altura pensei no beco onde tinha estado com o Miguel, mas esse beco já não existia. Agora uma existia nova solução. Fiquei surpreendido, ou talvez não, com tanta coincidência.
Miguel contou que tinha fugido de casa porque não conseguia dizer à mãe que era um drogado e que não passava as noites a estudar. Não tinha coragem e vinha pedir ajuda. Alguém que o ajudasse a deixar a maldita droga, para depois de recuperado procurar de novo mãe. Recebeu muita simpatia, muita gente disse que o queria ajudar, inclusive instituições prometeram ajuda. Apesar de todas estas boas intenções, fiquei preocupado, Miguel para mim não era um estranho.


XI

Acordei assarapantado. Estava ainda com as últimas imagens do sonho na mente. Seria fácil encontrar o Miguel, bastava saber qual era aquele estúdio de televisão. E na volta ao sonho a produção do programa televisivo dar­‑me­‑ia, com certeza, todas as indicações.
Olhei para o relógio, já eram 20.30 horas. Estava na hora que me tinham marcado para o jantar no D. Tonho.
Saí de casa com o propósito de não prolongar, para além do necessário, o jantar com o Rui Lencastre, porque tinha uma nova missão a desempenhar, assim intitulei a minha intenção de ajudar o Miguel.
Ao virar a esquina chamou­‑me à atenção o facto de no quiosque onde costumo registar o Euromilhões estarem afixados, em grandes parangonas, os números sorteados.
Meti a mão ao bolso e verifiquei que me tinha esquecido de entregar o boletim. Foi com espanto que comparei os números, 5, 17, 28, 32 e 40, e as estrelas, 2 e 7. Eram os números que eu tinha intenção de jogar, com excepção das estrelas, que eu não tinha, por esquecimento, colocado no boletim mas eram os mesmos números que saíam, repetitivamente, no jogo dos dados das crianças que brincavam na avenida.
Fiquei arreliadíssimo com o acontecimento porque eu sabia que estes sinais eram importantes, mas distraí­‑me demasiado com o caso do Afonso. Não valia a pena lamentar, tinha que encarar a realidade. Ainda pensei se estaria no sonho, mas uma topada numas pedras esquecidas na reparação do passeio pelos os trabalhadores da Câmara chamou­‑me à realidade.
Subi as escadas de acesso ao restaurante e lentamente meti a cabeça para ver se o Rui e o Afonso estavam. No fundo da sala vislumbrei os dois, que falavam animadamente. Escudei­‑me num grupo de clientes, que esperavam que os atendessem, para os observar. O Afonso estava diferente, parecia que tinha rejuvenescido, bem arranjado e barbeado, parecia que a sua descendência aristocrata tinha voltado.
O empregado perguntou­‑me se tinha mesa marcada. Disse que não, que estava a aguardar a chegada de uns amigos. Confesso que estava com medo, não sabia como lidar com esta inesperada realidade, tudo era demasiado novo.
Recuei para o patamar que dava para as escadas e encostei­‑me à parede. Umas gotas de suor apareceram nas minhas têmporas.
Tirei a carteira do bolso e retirei um cartão-de-visita no qual escrevi uma mensagem: «Há momentos da vida que devem ser saboreados na maior das intimidades e com um bom jantar. Desejo­‑lhes as maiores felicidades. Um amigo.» Pedi a um empregado para entregar o cartão.
Saí do restaurante com uma sensação esquisita. Aquele acontecimento talvez pudesse ter sido o mais extraordinário que podia ter vivido na minha vida, contudo, entendi que não devia intrometer­‑me naquele reencontro. Não sei se esta era a verdadeira razão, não sei se estava a ser sincero ou se estava com dificuldade em encarar a situação.
O sonho e a realidade ter­‑se­‑iam encontrado? Eu tenho a certeza que o Rui Lencastre amanhã vai telefonar­‑me para saber da verdadeira razão da minha atitude e será também, talvez, o desvendar das minhas dúvidas.
Regressei a casa com o sentimento da solidariedade mais desperto e que esteve esquecido dentro de mim e que agora se revelava com uma força inesperada. Miguel era agora o centro das minhas atenções. As dúvidas iam com certeza voltar com outro sonho, mas, segundo dizem os poetas, a vida é feita de sonhos e realidades que por vezes se encontram.
De uns tempos a esta parte um novo sonho tem povoado as minhas noites. Uma criança de 9 anos desaparecida da casa dos pais, acontecimento a que a comunicação social deu relevo, apareceu­‑me num sonho, por detrás de uma janela, algures num prédio de vários andares, numa cidade que eu não identifiquei. Apesar de…

FIM

1 comentário:

Anónimo disse...

A vida real mistura-se com o sonho. Com contos assim, vale a pena sonharVale a