sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Alexander


I

Príncipe Alexander entrou na nossa vida era eu um pueril menino que completara o ensino primário há pouco mais de uma semana. Surgiu como se de um capricho da imaginação se tratasse. A sua voz melodiosa e tranquila apoderou¬ se de nós, qual encantamento que nos elevou até o mundo da utopia, embalados por histórias que pareciam ser reais e nos faziam acreditar no impossível. A expressão serena, o olhar distante, transmitiam uma aura de sabedoria que nos cativava e fazia desejar estar junto de si.
Era tempo de férias, do início do Verão efluíam aromas pintalgados de árvores, rio e mar, que nos incitavam a alma para a euforia e impeliam o corpo infrene a correr apaixonadamente de braços abertos para a vida. Dava vontade de guardar o ar em garrafões de 5 l e armazenᬠlo para os dias tristes do Inverno. Apetecia cortar a relva molhada dos jardins em pequenas tartes, pulverizᬠla com a areia húmida da praia e depois trincar, saborear, polir os dentes nos pequenos grãos salgados, mastigar a natureza e digeri¬ la placidamente até que os olhos cansados se fechem para mais uma noite de sonhos.
Vivia uma época da minha vida em que realmente fui feliz; a consciência não tinha peso — ou antes, apenas me sugeria ditames tão leves e insignificantes como não mentir ou respeitar os mais velhos — e o meu corpo, leve como uma pluma, pisava a terra em bicos de pés e pairava isento de gravidade. Sentia¬ me o Homem¬ Aranha! Capaz de correr veloz sobre os muros caiados do meu bairro, pinchar e pular telhados de vidro, que, como o aço, a tudo resistiam, rebolar nos paralelos gastos e, de vez em quando, sentir um tímido fio de sangue manchar¬ me a pele, ver que feridas e arranhões se curavam num instante, quase por magia, em segundos ficava pronto para mais uma correria, saltar mais um prédio, vencer mais um obstáculo e, no meio de tudo isto, ainda tinha tempo para lançar a teia à doce Maria João, que morava duas casas ao lado da minha. Adorava jogar futebol, e, também aí, os meus ídolos em nada eram inferiores ao Homem¬ Aranha; por vezes, era o Deco, o Mágico, outras, o Quaresma, o Harry Potter, outras até os dois juntos, num drible fantástico, numa felicidade incontida de quem acaba os dias com mais um golo marcado. No final da tarde refugiava¬ me em casa — o meu ninho — e de Playstation em riste galgava fantasias a golpes de karaté, rasgava o espaço com o sabre de luz, derrubava castelos enfeitiçados brandindo a nobre Excalibur, e sempre, no cimo de todas as torres, de todos os tempos e de todos os lugares, a princesa que me aguardava tinha o belo rosto e o meigo olhar da minha querida Maria João.
A minha mãe, que trabalhava no escritório de um armazém de utilidades domésticas localizado na vila onde vivíamos, todos os dias chegava a casa por volta das 19 horas e o seu primeiro gesto era o de me fazer um carinho e me beijar a face. Em seguida, beijava a minha avó — sua mãe — e perguntava:
— Então mãe, aqui o nosso terrorista portou¬ se bem? — enquanto trocava a roupa de escriturária pela de dona de casa. — Fez muitas asneiras?
— Não filha, não fez asneiras, mas também não fez nenhum dos deveres que a professora marcou para as férias. Ainda o chamei mais de uma vez, mas a tourada do futebol e os olhos azuis da loirinha que nós sabemos — um sorriso matreiro perpassou¬ lhe os lábios — não lhe deixam tempo para pensar nessas coisas.
A minha avó tinha um enorme carinho pela João e não perdia uma oportunidade para nos aproximar. Acreditava no amor eterno, que há casais que nascem predestinados um para o outro. Confiava no casamento e em ser feliz para sempre. Tinha sido assim com o meu avô, que nunca conheci. Ainda hoje, doze anos depois da sua morte, fala dele com uma ternura e enlevo que chega a comover, descreve¬ o com tantos atributos e perfeição, fica de tal forma embevecida, que quem a houve chega a ter ciúmes. Ciúmes de um amor, de um companheirismo, de uma cumplicidade e comunhão de espíritos que quase ninguém tem, mas que todos almejam. Bem me lembro de ver a saudade brilhar nos seus olhos, de como os lábios lhe tremiam quando exclamava: «O meu José! Como era íntegro o meu José! Como era lindo o meu José! Era um homem a sério o meu José!»
O meu avô sempre foi o José dela e foi¬ o com tanto ênfase e carinho, que ainda hoje, passados tantos anos, tenho uma pontinha de inveja, porque nunca consegui ser assim: o José de alguém!
— Não faz mal. Em Agosto, quando vier de férias, vamos fazer esses deveres todos e aproveitar para fazer umas revisões do ano que passou. Por agora, deixe¬ o brincar, ele precisa de gastar toda essa energia. O raio do rapaz parece que tem pilhas — disse a minha mãe num tom de voz tão meigo que as palavras vertiam amor. — Mãe, eu vou à oficina avisar o Mário que dentro de meia hora o jantar está pronto.
O meu pai trabalhava por conta própria numa pequena oficina de entalhador que tínhamos no fundo do quintal. Adorava a sua profissão, mas havia alturas em que laborava até altas horas da madrugada só para acabar as encomendas dentro do prazo prometido aos clientes.
Depois do jantar o meu pai descansava alguns minutos e voltava ao trabalho.
Sempre que fazia serão, mais ou menos à hora de eu ir para a cama, vinha ter comigo, dava¬ me um beijo de boas noites e dizia:
— Dorme bem, campeão. Que Deus te proteja.
Depois, piscava¬ me o olho, dava um beijo à minha mãe e alegremente soltava um:
— Tenho que ir e aproveitar. Hoje a madeira está apaixonada por mim.
O meu pai, embora tivesse uma profissão que normalmente era exercida por gente simples e sem grandes habilitações literárias, era um indivíduo com um razoável nível cultural e com princípios morais inabaláveis. Havia abandonado a Faculdade de Economia quando estava já no 3.º ano. Nessa altura, a empresa — fábrica de metalurgia e injecção de plásticos que trabalhava fundamentalmente para a Rover —, que era pertença do seu pai, atravessava uma crise tremenda, resultante da falência do seu principal cliente. O clima económico e social era terrível; o meu avô tentou de tudo para evitar a falência da empresa, mas quantos mais empréstimos fazia, quantos mais meses passavam, mais o fim parecia inevitável. Sempre pautara a sua vida por princípios de honestidade e integridade, já não aguentava ver e ouvir o sofrimento dos seus trabalhadores devido aos salários em atraso e às justas exigências dos fornecedores a quem tinha dívidas. Não suportava mais sofrimento! Um dia, exausto e coberto de vergonha, apontou uma pistola à cabeça e suicidou¬ se.
Nesse dia, o meu pai abandonou a Faculdade e, imbuído de nobres ideais, decidiu reunir com todos os trabalhadores e credores, com o propósito de obter o seu acordo para a apresentação em tribunal da insolvência da empresa acompanhada de um plano de recuperação económica que visava a sua viabilização e, fundamentalmente, a reabilitação do bom nome da sua família. Infelizmente, não conseguiu o acordo da maior parte dos credores e a falência foi decretada.
A paixão pela madeira — que o possuía desde pequenino — associada ao trágico acontecimento que culminou na morte do pai fez com que impusesse a si próprio que jamais teria empregados e que a sua profissão seria a que mais gostasse. Contactou um conceituado entalhador da sua zona e depois de lhe confessar que o seu objectivo para futuro era o de vir a estabelecer¬ se sozinho, fez¬ lhe uma proposta bastante peculiar: durante o tempo necessário trabalharia gratuitamente e em pagamento ser¬ lhe¬ ia ensinada a nobre arte de esculpir a madeira.
Agora, embora não obtenha rendimentos muito elevados, consegue o suficiente para viver modestamente, em plena paz — como é importante a paz! — e harmonia com a família e o trabalho.

II

Estávamos nós a jogar futebol no parque, quando, surgido do nada, ouvimos um apito e uma voz grave que, articulando as palavras com sublimado requinte, exclamou:
— Falta. É falta meus caros. É uma falta terrível que meninos tão alegres e bonitos desperdicem o tempo a dar pontapés numa bola enquanto belas princesinhas os observam entediadas.
Parámos, olhámos em redor a tentar descobrir quem falou, mas nada vimos. Repentinamente, por detrás do enorme tronco de um ancestral carvalho que existia lá no parque, apareceu um velho e elegante cavalheiro que trazia pendurado ao pescoço um apito prateado e nos braços um belo molho de rosas branco-pérola.
— Jovens, parem por favor e prestem atenção àquelas magníficas meninas que ali estão a olhar para vós. Tratem¬ nas bem. Ofereçam¬ lhes rosas. Rosas-pérola para as mais belas flores deste jardim. Bah, andem lá! Façam o favor de ser felizes. Quem sabe, vão envelhecer juntos? Quem sabe? — corri até ele, peguei numa rosa e numa correria só fui entregᬠla à Maria João. Inconscientemente, estava a dar os primeiros passos para vir a ser o José de alguém.
Depois, agarrei a João por uma mão e levei¬ a até junto do misterioso senhor. Acercámo¬ nos dele e quando me preparava para abrir a boca e lhe fazer uma pergunta, interrompeu¬ me e com alguma malícia na voz perguntou:
— Diz¬ me, meu rapaz, por acaso queres dar outra rosa a mais alguém? Tens mais alguma princesa a quem a oferecer? — sorriu e, ao sorrir, passou o polegar nos lábios e depois na sobrancelha direita. Fê¬ lo com carradas de estilo, destilando charme, assim como se fosse um misto de Martini Men e 007 Sean Connery.
— Não. Não quero mais nenhuma rosa — respondi. — Como se chama o senhor?
— O meu nome é Alexander. Príncipe Alexander, que, sem ser o Grande, tenho a grandeza suficiente para vos amar e vos fazer felizes. Um criado ao vosso dispor, nobres cavaleiros e puras donzelas.
Por essa altura, já todos os nossos amigos nos rodeavam e recolhiam flores do regaço de Alexander, que ria entusiasmado e as distribuía com um contentamento genuíno. Uma ou outra vez, como que impelido por um pequeno choque eléctrico, esticava a mão e afagava os cabelos de um de nós, passava a ponta dos dedos na nossa face, depois olhava para o céu e murmurava qualquer coisa como se estivesse a agradecer a alguém.
Alexander era um homem já na terceira idade que tinha o porte de um nobre inglês. Magro, erecto, cabelo grisalho, farto, impecavelmente penteado para trás, olhos azuis e um semblante que denotava uma mistura de vasta experiência com infantilidade latente. O seu rosto não apresentava rugas, parecia que Deus lhe tinha concedido o privilégio de não envelhecer. A sua expressão triste era a de alguém que urgentemente precisava de dar e receber, de amar e ser amado, e, por isso, quando nos juntámos à sua volta ele estava tão feliz e agradecido.
Vestia um fato azul¬ escuro de tecido tropical inglês, uma camisa branca e uma gravata em tons de azul¬ claro, ambas de seda natural. Curiosamente, não trazia calçado. Caminhava sublime e garboso dentro do seu elegante fato, mas descalço! Porquê? Porque é que um senhor tão bem vestido está descalço?
Um pouco a medo, envergonhado, perguntei:
— Príncipe Alexander, porque é que está descalço? E porque é Príncipe? — pronto. Estava dito. Custou, mas saiu.
— Meu jovem cavaleiro, não tenhais medo, colocai todas as questões que vos aprouver. Eu, Alexander, minúsculo e insignificante, não sou mais que um criado que veio até vós para vos servir. Vós, meu belo e jovem cavaleiro do presente e do futuro, sereis o meu amo e a minha salvação. É no nobre acto de vos servir que deposito toda a esperança de me salvar. Não temeis nem vos assusteis com os devaneios deste velho, porém acreditai em mim. Juro solenemente que estou aqui para vos servir — as palavras saíam¬ lhe da boca impregnadas de um sentimento tal que, apesar de não as entender e de pensar que era um pouco louco, acreditei na sua convicção.
— Eu não tenho medo de si, Alexander, e não quero que seja meu criado. O meu pai ensinou¬ me que os homens são todos iguais e que ninguém deve ser criado de ninguém. Mas diga¬ me porque está descalço?
— O teu pai deve ser um grande homem, mas isso também já imaginava. Estou descalço porque antes de vir para aqui tirei os sapatos e fui refrescar os pés na água fresca do mar. Quando voltei, já os sapatos não estavam no sítio que os deixei, pois não faz mal, assim sinto¬ me mais leve e solto, por isso, pelo menos enquanto durar o Verão, andarei sempre descalço.
Entretanto, já todos os meus colegas se tinham afastado e ido jogar futebol, apenas eu e a Maria João nos mantínhamos junto de Alexander ouvindo um pouco da sua loucura.
— Há muito tempo atrás, era eu um impetuoso e belo moçoilo, quando decidi emigrar para Inglaterra em busca de fortuna e de aventura. Alguns meses se passaram sem que encontrasse a aventura e muito menos a fortuna. Vivia do expediente, e dias houveram em que cheguei a pedir para comer. Num belo dia, em que o sol brilhava um pouco mais do que era habitual para aqueles lados, vi a rapariga mais linda de toda a minha vida. Estava acompanhada por dois cavalheiros e entrou num escritório — Rover, Ltd., assim se designava. Meti as mãos nos bolsos sujos e esfarrapados e procurei a única libra que tinha. Fui até a florista mais próxima e comprei o mais belo ramo que lá havia. Eram umas inigualáveis rosas em tom de pérola, parecidas com estas que vos dei agora. Esperei algumas horas até que ela saísse. Logo que o seu vulto se abeirou da porta, corri até ela e ofereci¬ lhe as flores dizendo que eram para a mais bela mulher que jamais vira. Ela sorriu para mim mais cintilante que o sol, porém, os seus acompanhantes não acharam graça ao meu gesto e derrubaram¬ me, estatelando¬ me no chão — Príncipe Alexander parou por uns segundos e cerrou os olhos saboreando as recordações, depois continuou:
— Levantei¬ me, baixei a cabeça e o olhar, humilhado, virei costas e ia afastar¬ me quando ouvi a voz dela: «Espera. Não te afastes já. Obrigado pelas rosas e desculpa a grosseria dos meus companheiros. Como te chamas?» Respondi que me chamava Alexandre. Ela continuou, maravilhosa: «Levanta a cabeça. És um príncipe e os príncipes andam sempre de cabeça levantada. Serás o meu príncipe Alexander.» Aproximou¬ se de mim e sussurrou¬ me ao ouvido: «Também és muito bonito.» Deixei¬ os afastarem¬ se o suficiente para os poder ver sem ser visto e…
Nesse momento, surgiu a minha avó, que, de semblante carregado, disse com severidade:
— Quem é este senhor que está aqui convosco? Que é que ele vos quer? Já vos disse que não vos quero a conversar com estranhos. Não ouvem as notícias na televisão, não! Agora, todos os dias são raptadas crianças.
— Calma, minha senhora, eu não lhes quero fazer mal. Deixe que me apresente: o meu nome é Alexander. Príncipe Alexander. Estou aqui apenas para os servir. Compreendo que a senhora zele pela sua segurança, mas creia que se for preciso darei a minha vida para os salvar. Queira por favor aceitar esta rosa. Diz bem com os seus olhos amendoados e o seu perfume terá o condão de a acalmar.
— Mas qual acalmar qual quê! O homem está maluco. Darei a vida para os salvar! Você é mas é doido. Vá embora já a correr à minha frente e não vos quero ver mais à conversa com estranhos — seguimos apressados à frente da minha avó. — Deixe que me apresente! Palerma! Olhos amendoados. Eu digo¬ lhe os olhos amendoados! — resmungava furiosa.
Estático, Alexander olhou para nós com saudade e despediu¬ se acenando melancolicamente com a mão.
A minha avó encarregou¬ se de informar os meus pais e os da João do sucedido. Nessa noite ouvimos um valente sermão e fomos proibidos de voltar a falar com Alexander. Apesar de insistentemente termos dito que ele era muito educado e que não nos quis fazer mal, que só nos quis dar flores e contar histórias, não conseguimos demover os nossos pais da proibição.
Custou¬ me imenso a adormecer. Não parei de pensar na figura de Alexander, nas suas palavras, na sua história de amor. Como terminaria? Ele era tão meigo e carinhoso, porque é que os pais nos proibiam de o ver? Não era justo. Acabei por adormecer cansado e angustiado, sem saber se algum dia voltaria a ver aquela amorável e estranha pessoa.
No dia seguinte, não fui jogar a bola com os amigos. Estive a conversar com a João junto ao velho carvalho donde surgira Príncipe Alexander. Ambos tínhamos o desejo de o voltar a ver e, por isso, ficámos por ali conversando e brincando, esperançados que a qualquer momento ele aparecesse. Mas ele não apareceu! Não apareceu nesse dia, nem nos sete seguintes.
Depois de mais um jogo de futebol, sentei¬ me cansado à sombra do carvalho. A João sentou¬ se à minha beira e perguntou¬ me:
— Achas que alguma vez ele vai voltar? — referia¬ se a Alexander.
— Esquece¬ o João. A minha avó pregou¬ lhe um susto tão grande que ele nunca mais volta.
Por detrás da árvore, uma voz familiar disse baixinho:
— Meu amo, tendes¬ me em muito fraca consideração. Alexander é um Príncipe e anda sempre de cabeça levantada. Não é um covarde que foge com medo. Quero mostrar¬ vos um sítio muito importante para mim. Só mostrarei a vós e a mais ninguém. Quereis vir?
— Sim, queremos — respondemos os dois em uníssono.
— Vinde então atrás de mim, tenho ali à frente o meu carro que nos levará até lá.
Fomos atrás dele, conforme havia dito, continuava descalço, mas também superiormente vestido.
O carro era um Rover antiquíssimo, distinto, verde¬ escuro, quase cinza, com os estofos em pele bordeaux e o tablier revestido por uma folha de madeira impecavelmente polida e brilhante.
— Entrai, meus queridos, entrai. Este carro, meus jovens amigos, é o meu passado, o sítio onde vamos é o meu presente e vós que me honrais com a vossa amizade sois, sem dúvida, o meu futuro. O que eu pretendo para o meu futuro não é mais do que morrer em paz.
Eu e a João olhámos um para o outro um pouco preocupados e amedrontados. Mais uma vez não estávamos a perceber nada do que ele dizia e agora falava em morte.
— O que quer dizer com isso, Alexander? Estamos a ficar assustados. Se calhar é melhor sairmos aqui. Os nossos pais proibiram¬ nos de estar consigo e nós estamos a desobedecer — disse eu com convicção.
— Não. Não vos assusteis. Não é essa a minha intenção. Eu sou incapaz de vos fazer mal. Vamos conhecer um local mágico: «o Esconderijo de Alexander».
Depois de cerca de vinte minutos a andar de carro, parámos junto a um farol que se erguia no cimo de uma encosta íngreme, bem colada ao mar.
— Vejam. Apresento¬ vos o Esconderijo de Alexander — apontou para o velho farol que mais parecia um granítico ancião a observar o horizonte.
Meteu a chave na porta, rodou para a esquerda e, finalmente, após um estridente ranger, entrámos.
— Venham, só um pouco mais de esforço e vão observar uma das mais belas imagens da vossa vida — disse Alexander eufórico.
Subimos até o topo do farol e boquiabertos observámos a magnificente paisagem que daquele ponto a natureza nos proporcionava. O sol pousava no horizonte, banhado por uma luz prateada pincelada aqui e ali por tons de vermelho e amarelo, o mar parecia pairar, quedo, azul-escurecido na meia¬ luz do entardecer, como se de um quadro se tratasse. Em baixo, o som das ondas a bater contra a encosta resultava num suave murmurejar que nos embalava os sentidos.
Alexander, primeiro, pegou na João ao colo e, depois, em mim, queria que nos deleitássemos com a paisagem ainda de mais alto, e, concerteza também, sentir no nosso afecto um pouco de carinho e calor humano. Mais do que nunca senti uma ternura especial por aquele extravagante homem que sem eu saber porquê fazia o favor de se dedicar a mim e à minha querida Maria João. Coloquei os braços à volta do seu pescoço e quase por instinto beijei¬ lhe a testa. Ficámos assim, alguns segundos, em silêncio observando o horizonte e, enquanto o fazíamos, encostei o meu rosto ao seu e partilhei uma pequena lágrima salgada que lhe deslizava pelo canto do olho.
— Porque está a chorar, Alexander — perguntou a João comovida.
— Porque estou feliz — respondeu.
— Não quer acabar de nos contar a história daquela rapariga que conheceu em Londres — perguntei.
— Claro que quero. Vou contar¬ vos o resto da história, lá em baixo, na minha gruta.
Descemos as escadas até a entrada. Debaixo de um velho baú havia um alçapão. Príncipe Alexander levantou¬ o e começou a descer umas escadas que estavam pregadas à parede das rochas.
— Não tenham medo. Agarrem¬ se com as duas mãos e desçam. Não são muitos degraus, nem é muito alto. Vão ver como é lindo!
Primeiro, a João e, depois, eu descemos para a gruta de Alexander.
Era um local de forma oval, com cerca de 30 m2, que tinha no centro um pequeno lago de água salgada. No lago, uma grande e florida cadeira insuflável boiava de um lado para o outro. Em cima da cadeira descansava um distinto livro que tinha o título Crime e Castigo, acompanhado de um negro MP3 da Creative. As paredes escuras da gruta estavam forradas, em redor, com quadros, fotografias, recortes de jornais, etc. Quatro candeeiros a petróleo, harmoniosamente colocados em forma de cruz, difundiam uma luminosidade que atribuía à gruta uma quietude digna do paraíso.
— É aqui, meu nobre cavaleiro e minha nobre princesa, que eu leio os meus livros, que ouço a minha música e que revejo as minhas memórias. Se colocarem as mãos na água, vêem que ela está morna. Se quiserem, podem banhar¬ se no lago, que ele tem pouca profundidade. Depois podem subir para a cadeira, que eu conto o resto da história.
Nem pensámos duas vezes, libertámo¬ nos das roupas e fomos brincar para dentro de água. Era límpida, quentinha e tranquila. Depois de algum tempo de brincadeira, já cansados, subimos para a cadeira e pedimos a Alexander que continuasse a sua história.
— Deixei¬ os afastarem¬ se o suficiente para os poder ver sem ser visto e segui¬ os até uma casa que julguei ser a sua. Era um enorme casarão situado na rua mais chique da cidade. Tomei nota da morada e nesse mesmo dia à noite deixei na caixa do correio e um pequeno bilhete escrito que dizia assim:
«Por muito erguida que esteja a minha cabeça, os meus olhos quedar¬ se¬ ão tristes se não te voltar a ver. Por favor, espero¬ te amanhã na mesma rua e á mesma hora.»
— No dia seguinte, ela apareceu, linda e altiva como sempre. Começámos a conversar e sentimo¬ nos bem um com o outro. Contou¬ me que era filha de um famoso empresário da indústria automóvel e que tudo faria para me ajudar.
— Passado um ano, já eu trabalhava no departamento de exportação da empresa do seu pai, e daí até o casamento foi um pulinho de galo. Eu sempre fui o seu príncipe e ela o anjo da guarda que salvou a minha vida — os olhos de Alexander brilhavam como uma safira, resplandecentes de amor.
— Viemos viver para Portugal. Aqui implementei uma das melhores fábricas do grupo. Vivi dois anos de felicidade intensa, infelizmente, um ano depois, a minha princesa morreu vítima de uma doença incurável.
Eu e a João olhamos um para o outro e trocamos um sorriso cúmplice. Como o entendíamos!
— Quem são aqueles dois jovens que estão naquela fotografia abraçados um ao outro junto ao carro — perguntei. Eram dois esbeltos rapazes que não deviam ter mais de 25 anos.
— Não reconheces. O carro é aquele que nos trouxe até aqui, o da esquerda sou eu e o da direita é o meu amigo de sempre. O melhor amigo que alguém poderia ter. Chamava¬ se Eduardo, como tu.

III

Anoitecera sem que nos apercebêssemos disso. As horas junto de Alexander pareciam minutos e o encantamento daquele local raptava¬ nos à realidade, como se aquele farol, aquela gruta, pertencessem a um mundo só nosso.
Por aquela altura, os nossos pais, aflitos, já se tinham dirigido à polícia e procuravam por nós em tudo quanto era sítio. Todo o bairro estava envolvido na busca; alguém dissera que nos vira entrar para um carro antigo, com um velho senhor, alto, magro e de cabelos grisalhos. A minha avó, angustiada, repetia incessantemente:
— Foi ele, foi ele. Aquele velho porco, que anda a seduzir criancinhas com flores e histórias de encantar. Ai meu Deus! Meu Deus ajuda¬ nos. Não sei o que ele lhes prometeu para os levar com ele, mas tenho a certeza que foi aquele velho tarado.
— Calma, a polícia vai encontrᬠlos rapidamente e também não resolvemos nada se entrarmos em pânico e histerismos inconsequentes — dizia o meu pai.
— Não sei como consegues manter a calma e o sangue-frio, quando o teu filho desapareceu e se calhar foi raptado — dizia a minha mãe, enervada. — Tens sangue de barata ou quê? Se apanho aquele velho indecente, desfaço¬ o à ferradela.
O clima estava, sem dúvida, descontrolado. As pessoas temiam por nós e ansiavam por vingança.
Um agente veio ter com o meu pai e disse¬ lhe que um jovem casal que passou junto ao farol viu um carro antigo lá estacionado. Que iam agora para lá e em breve lhes trariam os filhos. Os meus pais, a minha avó, os pais da João e alguns vizinhos, cada um no seu carro, dirigiram¬ se a toda a velocidade para o farol. Chegaram lá primeiro que a polícia.
Saímos do farol de mão dada com Alexander, no exacto momento que os nossos pais chegaram. Intempestivo e visivelmente transtornado, o pai da João correu na nossa direcção e desferiu um violento murro na cara de Alexander, que o estendeu no chão sangrando do nariz. O meu pai segurou o pai da João e acalmou¬ o:
— Calma, calma, é apenas um velho.
— Velho tarado é o que ele é. Bandido! — retorquiu o pai da João.
— Tarado, deitem¬ no ao mar! — gritava a minha avó.
Enquanto o meu pai tentava acalmar os ânimos, alguns vizinhos gritavam:
— Dêem¬ lhe uma coça, ele merece é uma carga de porrada.
Nós estávamos estupefactos e paralisados perante tanta violência. Alexander, no chão, sangrando, baixou os olhos, triste e humilhado. Corri para ele, abracei¬ o e disse¬ lhe ao ouvido:
— Levante¬ se, Alexander, o senhor é um príncipe. O Príncipe Alexander.
Nesse momento, chegou a polícia. Alexander ergueu¬ se muito acima do seu
1,90 m e, de cabeça erguida, piscou¬ nos o olho e seguiu em silêncio, algemado.
Corremos para os nossos pais e pedimos¬ lhes a chorar que não deixassem prender Alexander. Que ele era bom e nosso amigo. Que não nos tinha feito mal. Que o adorávamos. Mas ninguém nos ouvia. Apenas o meu pai me dizia:
— Estás bem, filho? Ele não vos fez mal?
— Não, pai, não nos fez mal nenhum. Ele é nosso amigo. Eu gosto muito dele, pai, não deixes que lhe façam mal. Por favor, pai! Não o abandones.
— Está bem filho. Em casa vais contar¬ me o que se passou e depois verei o que posso fazer por ele.
Quando cheguei a casa, sentei¬ me no sofá e contei à minha família exactamente tudo o que se passou, desde que conhecemos o Príncipe Alexander até o momento em que eles chegaram tresloucados e o maltrataram e prenderam.
Depois de me ouvir, o meu pai dirigiu¬ se apressado para o posto da polícia:
— Quero que soltem esse homem, quero retirar a queixa contra ele — disse ofegando.
— Lamento muito, Sr. Eduardo, mas o pobre homem já seguiu para o Hospital Psiquiátrico de Aveiro. Parece que não bate bem da cabeça. Desde que ele de lá fugiu que o procuram. Está dado como desaparecido desde Maio.
— Pobre homem. Obrigado — respondeu o meu pai.
Voltou a casa e contou¬ nos o sucedido. Eu, com as lágrimas nos olhos, saí de casa a correr — com o meu pai atrás de mim — e fui contar à Maria João. Os dois abraçámo¬ nos às pernas do meu pai e, a chorar, pedimos¬ lhe que nos levasse ao hospital para ver o nosso querido amigo.
A enfermeira aconselhou¬ nos a que o tratássemos com calma, que não estranhássemos a sua inércia e melancolia porque ele se encontrava sob o efeito de sedativos.
Alexander repousava de olhos fechados na cama do hospital. Aproximámo¬ nos dele e eu, de um lado, e a João, do outro, beijámo¬ lo na testa e na face. Semicerrou os olhos e sorriu feliz.
— Meu nobre cavaleiro, minha nobre princesa, como vos adoro! — olhou para o meu pai e enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto sussurrou quase sem forças:
— Peço¬ lhe desculpa por tudo. Tem um filho fascinante — apontou com o olhar para a mesinha ao lado da cabeceira. — Pegue na chave e tome conta do farol. É seu. Agora posso morrer em paz — apertou as nossas mãos pela última vez e faleceu.
Duas horas depois de muito chorar e já com muita saudade, ouvi a psiquiatra que tratava Alexander contar ao meu pai que ele morreu porque o quis. Estava convencida que morreu feliz, porque escolheu o momento da sua morte e este é um privilégio que nem todos têm. Dizia que o Sr. Alexandre foi um grande empresário, representante de uma famosa marca de automóveis que existia no nosso país e que faliu. Um dia apareceu aqui completamente fora de si gritando que tinha assassinado o seu melhor amigo. Ainda hoje não percebemos o porquê dessa fantasia, mas concerteza fora isso que o enlouquecera.
No dia seguinte à mesma hora, em mais um belo entardecer, eu, o meu pai e a João entrámos no farol, subimos ao topo, usufruímos da paisagem em silêncio e depois descemos até a gruta. O meu pai estava maravilhado com tudo o que via.
— Vem, pai, quero mostrar¬ te um quadro com uma fotografia do Príncipe Alexander quando era novo. Vem. Olha é este o quadro. Este aqui é Alexander, este é o carro dele e este era o melhor amigo dele. Chamava¬ se Eduardo como nós.
O meu pai, enternecido, mal conseguindo articular as palavras, disse:
— Esse aí, ao lado de Príncipe Alexander, é o teu Avô.

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma história sensível de um "louco" com um grande coração. Nunca conviveu bem com as suas desgraças e tentou transmitir aos mais pequenos e próximos,o "galanteio" e a forma de estar típico de um príncipe.
Um belo conto.
ALobo