Vinte e quatro são quantos anos fez o João no mês de janeiro.
Com licenciatura em Economia, mestrado em Contabilidade e Finanças pela FEUC e
pós-graduação em Gestão, estava desempregado.
Após sete meses a enviar o seu curriculum vitae para várias instituições, sem nunca se lhe abrir
qualquer porta, resolveu tirar o seu certificado de Inglês, mandar traduzir e
reconhecer o seu diploma pela embaixada e pedir o seu registo criminal para
depois partir por essa Europa fora.
Foi ao banco, formalizou o que tinha a formalizar,
arranjou cartão de crédito e multibanco e estava a postos. Foram os avós
paternos (lembram-se em “Atrás dos tempos…”?) que o ajudaram na conta bancária,
depositando o suficiente para viver uns meses fora, desde que não fossem
cometidos excessos.
Colocou dentro da mala-trolley roupa desportiva e prática, alguns objetos pessoais, um
fato de linhas modernas, duas camisas e uma gravata de seda Armani (1.ª gravata a sério oferecida
pelo pai), não fosse o diabo tecê-las e serem precisos para alguma entrevista.
Na mochila colocou dicionários de Inglês/Português/Inglês e de
Francês/Português/Francês, os “canudos” e acabou de a encher de sonhos.
Primeiro os sonhos maiores e, depois, para preencher os espaços livres, os
menores. Assim, tinha a certeza que todos os ‘espacinhos’ eram ocupados.
E no dia tantos de março lá partiu de encontro ao
desconhecido, mas com conhecimentos e direcionado ao Luxemburgo, onde tinha
tios e primos.
A partir deste dia mudou os seus hábitos: enrolou-se na
sua solidão e nos seus medos e o pai estaria longe para os poder partilhar. E
ele (pai) que gostava de ser sombra dele (filho) teve que se contentar em ser a
sua sombra.
Eram treze horas quando o foi levar ao aeroporto.
- Levas tudo o que te pode fazer falta? - perguntou-lhe o
pai.
- Penso que sim, disse com uma lágrima rebolona a
escorrer pela face abaixo.
Chegaram cedo, embora no respeitante ao bilhete estivesse
tudo tratado. Feitas as formalidades legais, aguardaram, por ali, cerca de uma
hora. O pai mudo, o filho calado, parecendo até que já fora dito tudo o que
tinham para dizer. E de facto já!
Aquela hora de silêncio doeu muito a ambos. E a ausência
de palavras também!
Chegou a hora do abraço imenso. A voz embargou-se-lhes,
os olhos ficaram rasos de água e o coração ficou empedernido. Nenhum deles
conseguiu articular palavra. Depois do João passar para o outro lado, então
sim, já sabiam o que não disseram e mereciam dizer. O telemóvel serviu para
isso. Foi o pai quem ligou primeiro, estava um vidro imenso a separá-los! E por
isso viam-se.
- Amo-te filho, ouviste? Amo-te. Depois ligo-te para
saber como estás.
- Também te amo, pai. Vou sentir muito a tua falta.
Depois ligo-te.
O pai não arredou pé até ver o filho ir para o avião. Só
depois de ele partir tomou a resolução de ir para casa. Ao menos lá poderia
chorar à vontade.
Depois de ver o avião levantar nos ares, deu meia volta e
algumas passadas, sentou-se e nos momentos que se seguiram abandonou-se ao
sofrimento. Precisava estar consigo nem que fosse para se perder em si.
Instintivamente e como que por magia, cotovelos sobre os joelhos, corpo
inclinado para a frente e com as mãos em forma de cálice apoiou a cabeça nelas
com o queixo espetado bem lá no fundo como se invocasse os santos. Fez-se
silêncio na sala! E assim esteve que tempos!
Não sabe sobre o que divagou, mas sabe que o poder
instituído, defendendo com determinação e arreganho a emigração, como forma de
atacar o desemprego, tinha ultrapassado as marcas. Sabe também que foram momentos
de angústia e enfastiamento aqueles por que passou. Agora e a seguir! É que os
governantes tinham ultrapassado as marcas dando sobejas provas de insensatez,
absurdidade e, sobretudo, falta de maturidade política. De incongruência
também!
Esta política do aqui caio, além me levanto,
atormentava-o e, pior do que isso, revoltava-o.
Durante a viagem deu consigo num emaranhado de
pensamentos de onde saiu a custo. Ter vinte e poucos anos tem a vantagem de se
ter entre mãos a grande riqueza de um futuro cheio de promessas. Hoje, quando
se olha o longe não se vê este a recuar, mas sim a desafiar. Muitas vezes um
desafio com um sorriso esperançoso.
É engraçado (sem graça nenhuma)!
Da desordem, que é a ordem ao contrário, nascem, muitas
vezes, coisas boas. E neste caso também! Passado que está aquele estado de
desgraça inicial, tudo está a confluir para um estado de graça.
Esta ausência foi um tormento! Por dá cá aquela palha,
saltava-lhe dos olhos uma torrente de lágrimas enviadas pelo coração. Mas
resistiu… Resistiram!
Nove meses depois, com o Natal à porta, o pai andava num
frenesim! No dia em que ele chegava andou num volteio e revolteio em torno de
tudo. Levantou-se muito cedo e vistoriou tudo meia dúzia de vezes. Queria ter a
certeza que o seu ‘ai Jesus’ tinha tudo o que merecia. E tudo tinha que estar
“ao consoante”!
Não tem conta as vezes que ele consultou o relógio, mas
este de tão lento parecia-lhe avariado. Sabia que ainda era cedo, mas não
conseguia esperar mais. Não era por ir cedo que o filho chegava mais cedo! Mas…
Pelo menos encontrava gente com o mesmo sentimento. A
ansiedade!
Foi para o aeroporto.
O tempo de espera foi enfadonho e lentamente inquietante,
até que o momento chegou. Parecia-lhe que não ia aguentar tanta emoção, mas
enganou-se. Logo que o avião aterrou, de repente, acalmou e … Parecia que não
era nada com ele. Via-o bonitão (tal como era), alto, elegantemente vestido e
com um desejo enorme de o abraçar também. E não se enganou! Foi tal qual ele premonizara!
Ele tinha arranjado emprego, um bom emprego, na Banque
Générale de Luxembourg (BGL), onde o seu trabalho era reconhecido e, como tal,
a preço-justo consoante a legislação local e em vigor.
[…]
Ser jovem é ser alegre, é ser otimista, inconsciente em
certa medida e aventureiro também. Pensa-se no agora, pois o tempo vai passando
e se não for vivido é tempo perdido. “Il faut boire, jusqu’a l’ivresse, sa
jeunesse - Charles Aznavour”, assegura.
A juventude não se pode guardar, e é pena! Ah como seria
bom juntar o estouvamento da mocidade e a sensatez-sabedoria da meia-idade!
É tarde quando, muitas vezes, se olha para trás e vemos
fugir, por entre as sombras, as promessas dos vinte e poucos anos.
Anteontem pelejaram uns, hoje, outros. Por motivos e com
armas muito diferentes! Talvez por isso, com motivações diferentes. Porém, o
coração dos que partem e dos que ficam dilacera da mesma maneira. Hoje e
anteontem.
Longe vão os tempos da mala de cartão e do cabaz. Dos braços
cheios de força!
Estes são os tempos
em que os pais estão emprateleirados, os avós são ostracizados e aos filhos /
netos são negadas as oportunidades tão a custo conquistadas por aqueles.
1 comentário:
A saga sobre a saída de portugueses para o mundo continua. Foi no passado,é no presente, e se calhar será no futuro.É o "fado" da nossa gente.O conto do Delmano retrata bem a situação hoje vivida. Com tão poucas palavras se pode dizer tanto.
É a triste realidade e o conto versa todas as suas vertentes. Excelente.
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