Da
janela do meu quarto não a consigo ver. A lavandaria fica tapada pela azálea e
pelo caramanchão. Consigo ouvi-la a trautear uma canção e sei que estende a
roupa, de mangas arregaçadas pelo cotovelo e uma ou duas molas metidas na boca.
As suas mãos ásperas, por uma vida inteira na água e tisnadas pelo sol,
executam o ritual com a mestria de sempre. Primeiro as meias, cada uma ao lado
do seu par, de seguida as cuecas e os soutiens, os guardanapos e panos de
cozinha, as calças e saias, as camisolas, t-shirts
e pólos e, por fim, as toalhas de mesa, as toalhas de banho e os lençóis. Tudo
combina na perfeição, entre e si e com as molas. Como se, acaso a ordem fosse
alterada, já não secassem da mesma forma.
Saio do
quarto, fechando a porta atrás de mim. Desço as escadas calmamente. Os vinte e
um degraus de sempre. Os vinte e um degraus que aprendi a contar, enquanto os
subia de dois a dois. Ao fundo dos vinte e um degraus estão as malas. Já lá
estão desde ontem. Prontas, fechadas e silenciosas. Contorno-as e sigo pelo
corredor. Ignoro-as só por mais um momento. Vou ao seu encontro. Na certa já estendeu
a roupa toda.
- Olá
avó.
- Olá
Paulinho.
É bom
chegar aos 45 anos e ainda ser o Paulinho de alguém.
Fui
muitas vezes Paulinho.
O
Paulinho. Como no primeiro dia de escola. Cheguei à porta da escola pela mão da
minha avó. Até ali a minha vida tinha decorrido entre o nosso pátio e o beco,
entre o amor da minha avó, as brincadeiras com a rapaziada e o desatino da Pitecas, a nossa cadela coxa. A escola
era a etapa incontornável. Atravessei o portão e fui rodeado pelos outros
meninos que gritavam o meu nome: «Paulinho! Paulinho!» Foi a primeira vez que
dei conta de ser o Paulinho fora de casa. E continuei Paulinho quando a
professora me mandou sentar ali à frente, para ver bem para o quadro.
A
segunda vez: «Paulinho, Paulinho, não vais passar sem levar uma boa sova, para
aprenderes a não destruir os ninhos», disse D. Antónia, a catequista, naquela
tarde tão primaveril, entre a recitação da salve-rainha e os pecados capitais.
Nunca percebi a correlação entre o diminutivo e a força das palmadas. Afinal de
contas, eram apenas ovos dentro do ninho, nem sequer havia passarinhos.
Desde
aí, fui Paulinho inúmeras vezes, tantas, tantas, que não guardo especial
memória, até hoje, em que ouvi pela milionésima vez o meu nome pronunciado pela
minha avó. Mas não era o Paulinho de sempre, havia na sua voz um não-sei-quê de
dramático, de triste, de muito triste. «Paulinho», «Paulinho». Pronunciado com
tristeza e com um desalento que fazia dó. Palavra chorada. Palavra sem
lágrimas. «Paulinho».
A minha
avó não sabia ler nem escrever, só sabia trabalhar. Lavava roupa para fora.
Dizia ela que era um trabalho limpo. Tinha a mania da ordem e da arrumação e
tudo se encontrava nos devidos lugares, numa ordem obsessiva. Para a minha avó,
não havia o meio-termo. Era o bem e o mal, o cozido e o cru, o cheio e o vazio.
Não havia mais ou menos na sua vida, era sim, ou sopas. Ou era, ou não era.
Fazia, ou não fazia, nunca fazia que fazia. Quando tomava uma decisão, estava
tomada, não havia retorno. Hoje, engrenou na rotina como se fosse um dia igual
aos outros. De diferente, apenas as malas ao fundo das escadas. Melhor dizendo,
um pequeno saco e a mala. Uma mala pequena de couro, com fivelas. A mala que a
avó tinha trazido da sua terra quando veio para a cidade e que agora ia levar
para o lar, para onde nunca tinha querido ir.
- Avó,
és feliz?
- Sou.
Não. Era, fui. Hoje não. E a partir de hoje, mais não serei. Queres tirar-me da
casa onde vivo há mais de 60 anos, onde fui feliz com o teu avô, que Deus o
tenha. Queres tirar-me da casa onde fiz o teu pai, que diabos! Já sei que me
esqueço das coisas mais do que antes, sei que dão a isso um nome de doença
esquisita, mas ainda estou capaz de olhar por mim. Não conheço uma letra do
tamanho de um boi, mas sei bem ler o que vai na alma das gentes e tu, meu
menino, também não és feliz.
- Sou
sim, filhinho. E tu?
A ironia
no seu olhar e no tom com que pronunciou a palavra «filhinho» - que só usa em
ocasiões de stress - diz-me que me
está a mentir descaradamente. Orgulhosa, esta mulher que será sempre incapaz de
me dizer o que realmente sente com esta mudança.
Mas tem
de ser. Encontrá-la, por acaso, naquela tarde, a vaguear pela rua com ar
perdido - «Eu queria ir ao cemitério, Paulinho, pôr flores ao teu avô,
Paulinho» - matou-me um bocadinho por dentro. Estava a quase 2 km do cemitério
e a caminhar na direcção oposta; onde iria parar, não nos tivéssemos nós
cruzado? Portanto, tem de ser.
Vigia constante, ajuda e companhia, coisas que só
lhe posso dar desta forma. Tem mesmo de ser.
-Também avó, também. Estás pronta?
- Estou pronta há 84 anos, Paulinho.
Entrámos
no carro e arrancámos.
Eu,
Paulo, miseravelmente infeliz e o corpo dela, a pálida sombra do que ontem era
a minha avó. Ela, a alma da minha avó, e o Paulinho ficaram junto à azálea, a
estender roupa.
2 comentários:
Um conto escrito a duas mãos, relatando um paradigma do nosso mundo ocidental atual, que muitos consideram “modelo”. Para a avó do Paulinho não é de certeza. Assim, como para muitas avós de muitos Paulinhos. É um conto, realista, triste, comovente de uma avó cuja a idade e a doença não perdoa. Será que a sociedade terá que ser assim?
Uma co-autoria de sucesso, também não contava outra coisa. Parabéns.
A fragilidade da velhice só pode ser compensada pelo amor que plantou pelas outras fases da vida. O conto me envia essa verdade.
Eliane F.C.Lima (Blogue "Poema Vivo")
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