Capítulo III – Loucos de Lisboa
Iam saindo
do barco em fila indiana quais “formigas no carreiro”. Cá fora do lado esquerdo
da gare marítima avistava-se a Praça do Comércio. Os táxis perfilavam-se à
espera de alguns clientes que fossem para mais longe. Os seus condutores, junto
das bagageiras abertas, esperavam pacientemente para colocarem alguma mala que
os clientes pudessem trazer. O João, de mochila às costas, olhava com cara de
espanto a multidão bem como a ida e vinda dos autocarros e eléctricos que
cruzavam a avenida. Álvaro olhou para trás e reparou nos “olhos cheios” da
grande cidade do seu companheiro de viagem.
- Nunca
tinhas visto tanta gente… Não é João?
- É verdade
Sr. Álvaro! Isto é um “mundo” – respondeu-lhe com um tom de voz extasiada. – Já
tinha visto na televisão e já me tinham falado mas – e inspirou – isto é muito
diferente do que eu imaginara…
- Bom,
rapaz, daqui ao Largo de Camões faz-se bem a pé. Mas afinal para onde é que
vais concretamente?
- Vou para
uma pensão que fica ao pé do Largo de Camões.
Parou e tirou um papel dentro do bolso
esquerdo: “Pensão Casa de S. Mamede”, que fica na Rua da Escola Politécnica.
- Bom!
Vamos que ter de andar mais um pouco. Prepara-te, porque, a determinada altura,
é sempre a subir.
João olhou
para o Cais das Colunas, onde as águas do Tejo subiam até meio da escadaria. O
mar fascinava-o. Ainda que não fosse propriamente o mar, era uma imensidão de
água até à Outra Banda. Os barcos, de todos os tipos, atravessavam aquela
“avenida” em várias direcções. Não tinha nada a ver com o rio Almansor, onde em
criança tinha brincado lá em Montemor-o-Novo. Lembrava-se agora dos seus
companheiros de infância. O Quim, filho do “Sor” Zé Padeiro, e o Chico Cebola,
com quem brincava junto ao “campo da feira”. Esses “tempos” já lá iam... Agora
estava em Lisboa para começar uma nova vida. Iria conhecer novas pessoas, fazer
novos amigos e ter um emprego. Era essa a sua grande expectativa...
Tinham
atravessado a avenida e agora cruzavam a praça junto à estátua de D. José I. O
dia estava luminoso apesar do “friozinho” que se fazia sentir. Lado a lado iam
em direcção à Rua do Ouro. O barulho dos autocarros, dos automóveis e das motos
quase que os levava a não falarem muito. Passaram por um cego que tocava
acordeão. João, tendo ficado a olhar para trás, esbarrou num homem que vinha em
sentido contrário.
- Eh pá! Vê
lá por onde andas – disse-lhe o transeunte, que seguiu o seu caminho.
- Desculpe!
Foi sem querer… — respondeu-lhe o mais educadamente possível.
- João,
aqui está na cidade. Toda a gente anda no “corre-corre” – disse Álvaro
sorrindo.
– Depressa
te vais habituar.
A rua
fervilhava de gente que se cruzava num vaivém apressado. O João caminhava lado
a lado com Álvaro e, mentalmente, comparava a sua terra com a grande cidade. Aí
todos se cumprimentavam e o “andamento” era bastante mais pausado. Lembrava-se
quando miúdo das brincadeiras que tinham na rua. Ali de certeza seria
impossível os miúdos brincarem “cá fora”.
- Então
passa-se alguma coisa?
- O quê Sr.
Álvaro?
- Vais tão
sisudo que eu perguntei se tens alguma coisa.
- Ah não...
Não é nada – respondeu. – Estava cá a magicar com os meus botões...
- Se calhar
era melhor pararmos aí numa “tasca” e comermos alguma coisa. Ou tens hora
marcada de chegar?
- Não
tenho. E realmente também já estou a sentir alguma “lambrica” no estômago.
- Óptimo!
Então conheço ali uma tasquinha no Bairro Alto que se come divinalmente.
Chama-se As Cegonhas.
Iam subindo
a Rua do Carmo em direcção ao Chiado. Mais um pouco e estariam a almoçar
descansados da viagem.
- “Olhó 27!
Anda amanhã à roda” – o pregão do cauteleiro sobrepunha-se ao barulho
envolvente. Um “chiar” de travões a fundo e um “baque” fez voltá-los a cabeça
donde há pouco viera a voz ouvida. O corpo deitado inanimado no chão
rapidamente juntara à sua volta os transeuntes curiosos. Alguém clamava: “Chamem
o 115 depressa!” Álvaro entrou nos Armazéns do Grandela e pediu à empregada do
balcão da recepção que chamassem a ambulância. João ficara como que paralisado
a olhar a cena. Da Valentim de Carvalho, mesmo em frente, saía o som da música Chico Fininho, de Rui Veloso. Dois
jovens olhavam a montra com os últimos sucessos da música. Ao lado deles um
velho de chapéu na mão pedia esmola quase encostado aos seus pés...
- Onde eu
me vim meter!... – disse em sussurro.
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