sexta-feira, 22 de junho de 2012

Nem às paredes confesso de António Alvarez


Capítulo II – Kurikutela



O barco não era o mesmo... Nem a viagem... Nem o ano. De comum tinham o Tejo como partida. O embarque fizera-se noutro cais em Lisboa – Rocha do Conde de Óbidos – e o barco chamava-se Niassa. Esse barco de passageiros que tinha sido transformado em “transporte de tropas”. Ele e os companheiros, debruçados sobre a amurada, lançavam adeus para quem ficava. Do outro lado respondiam vozes e lenços brancos acenavam: “Deus te guarde e... te traga são e vivo.” Conseguia distinguir, entre aquele aglomerado de pessoas, as figuras dos pais e, sobretudo, a de Ana Luísa. Os seus olhos brilhavam das lágrimas que tentava esconder. Acenava como tantos outros... num adeus, de coração apertado, e nó na garganta.

Tinham zarpado a meio da manhã e iam deixando a barra do Tejo cada vez mais ao longe. Já nem o Cristo-Rei se via no horizonte. Era o mar, um misto de medo e a expectativa que todos tinham pela frente.

Três andares de beliches instalados no porão, quente e húmido, quase sem luz, e casas de banho e duches improvisados no convés, com ligação directa para o mar... Todo o espaço era aproveitado. Assim viajávamos que “nem gado prá matança”. Os primeiros dias foram de adaptação ao mar. Muitos enjoos e pouca ou nenhuma vontade de comer. Quase todos tinham vindo da província e o mar só o tinham visto alguns. E mesmo esses muito ao longe. Alguns quase imberbes e de Angola só tinham visto o mapa que a “Senhora Professora” lhes mostrara na escola primária. Um mapa onde constavam todas as províncias ultramarinas de que Portugal era “legítimo possuidor”.


Diário de viagem – 26 de Abril de 1965.

Estamos no mar há quase uma semana. Já me consegui adaptar à comida e aos balanços do barco. Passámos uma grande parte do tempo a jogar às cartas e a contar anedotas. Escrevi hoje o meu primeiro aerograma para a Ana Luísa e agora irei escrever outro para os meus pais. O calor tem vindo a “apertar” e o “pessoal” já começa a ficar bronzeado. O nosso sargento é que não gosta muito de nos ver sem a farda. Não é mau rapaz mas devia compreender que nós não estamos habituados a este clima. Amanhã disseram-nos que iremos chegar à Guiné. Ficaremos ao largo, só esperando pelo reabastecimento. Sei, no entanto, que alguns dos camaradas vão ficar por lá. Por enquanto nada de grandes novidades, a não ser o mar a perder de vista. As condições de higiene e alimentação não são as melhores, mas do mal, o menos.  


Ao largo da Guiné estivemos parados mais tempo do que se previra. Qualquer problema tinha surgido no navio. A viagem iria demorar mais cinco dias, com o Niassa, a partir de determinada altura, ligeiramente inclinado para a esquerda, devido a um estabilizador avariado.


Diário de viagem – 29 de Abril de 1965.

Estamos quase a chegar ao destino – Luanda. Sinto-me bem, tal como todos os outros. Apenas um pouco ansiosos por chegar e pisar terra firme. É já mar a mais. Quando chegar a Luanda irei escrever outro aerograma à Ana Luísa a contar-lhe da cidade. Já ouvi falar tanto dela que estou curioso, apesar de não irmos permanecer muito tempo nela. Já sabemos que iremos para a zona de Nambuangongo.


A chegada a Luanda trouxe a todos o alívio de pisar terra firme. Mas quase que não houve tempo para nada. Camiões aguardavam-nos para nos levarem para o campo militar do Grafanil. Chegados lá, vimos alguns “camaradas” que sorriam para nós. Na altura não percebemos porquê, só mais tarde soubemos que eram os que iriam ser rendidos por nós, que já tinham feito a “sua guerra” e que estavam a aguardar o seu regresso à Metrópole.

Depois de formados à entrada do quartel, iniciámos o desfile até ao local onde ficaríamos alojados. 

Durante o tempo de instrução no antigo RAL 1, fomos treinando, por iniciativa do comandante da Companhia, uma espectacular forma de marchar, a que ele chamava  “ o passo de parada”. No passado tínhamos marchado assim algumas vezes, a última das quais durante o desfile no Cais da Rocha do Conde de Óbidos. Porém, o desalento naquela manhã era de tal ordem que, sem que tivesse havido combinação prévia, o “passo de parada” não saiu. Apesar das repetidas ordens, cada vez mais gritadas, o pessoal andava mais do que marchava. O nosso comandante de Companhia estava mais que descontente; estava furioso.

Foi o primeiro dia de muitos que iríamos passar longe de Portugal e da família. Estávamos longe de imaginar tudo o que iríamos viver dali para a frente. Apesar disso, estava confiante que havia de regressar...


Diário de guerra – 28 de Março de 1966.

A coluna em que seguíamos foi surpreendida pelo inimigo, que estava escondido à beira da estrada. Estivemos três horas debaixo de fogo. Valeu-nos a aviação, que, entretanto, começou a sobrevoar a zona. Não matámos ninguém, mas fizemos um ferido.
Infelizmente não tivemos tamanha sorte: morreu um rapaz que era meu amigo e alguns camaradas ficaram feridos. O ânimo nunca mais recuperou. Tivemos de o remendar com as forças esfarrapadas que ainda tínhamos.


Deitado na tarimba da caserna, enquanto aguardava a rendição do seu pelotão para regressar à Metrópole, ouvia no pequeno rádio a pilhas o Duo Ouro Negro.






Já estão chegando na terra

Toda a gente leva pressa
Para chegar na sua terra
Estão os parentes à espera
Kurikutela (comboio)

Luanda, 6 de Janeiro de 1967.

Querida Ana Luísa,
Espero que esta te vá encontrar de boa saúde em companhia dos teus pais e irmãos. Nós por cá estamos quase de partida. Faltam apenas mais duas semanas para sermos rendidos. Estamos todos cansados da guerra e desejosos de regressar ao nosso Portugal. Estou ansioso para te ver de novo. Vais de certeza achar-me um pouco mais magro mas nada que não desapareça com umas chouriças, uns queijos e um bom “tinto” da nossa terra.
O mais difícil já lá vai. Infelizmente alguns de nós já não vão ter a oportunidade de ver a família. Tenho-me perguntado muitas vezes se tudo isto vale a pena.
Quando chegar haverei de te contar, mais em pormenor, o que por cá passámos. E foi tanto que não caberia por muitos aerogramas que te escrevesse.
Despeço-me enviando cumprimentos aos teus pais e irmãos. Para ti um beijo cheio de saudades daquele que muito te ama,
Álvaro


Colocou o aerograma em cima da mesa. Deitou-se na cama fechou os olhos e sentiu que parte da sua alma ficaria ali para sempre...


- Sr. Álvaro, já estamos a chegar!...


CONTINUA

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