terça-feira, 31 de agosto de 2010

PRESO NO PASSADO


Antagónicos no que à fé e política concerne, idênticos no amor pela vida. Esta dicotomia, era seguramente o mais sólido alicerce de uma amizade que cultivavam e partilhavam há mais de três décadas. As diferenças de opinião em temas tão controversos como a existência de Deus ou o modelo de sociedade que defendiam, não eram mais que o rastilho para infindáveis horas de discussão e voraz cavaqueira.

Conheceram-se adolescentes, quando frequentaram a mesma turma do Colégio dos Órfãos do Porto, o qual se propunha formar e educar os jovens para serem honestos cidadãos e bons cristãos. Apesar de usufruírem do mesmo tipo de instrução, abraçaram diferentes destinos: João tornou-se um célebre cirurgião, casado, com uma família feliz e numerosa, Manuel porém, um dedicado celibatário e ditoso clérigo que percorreu várias paróquias espalhando a palavra de Deus – como fazia questão de afirmar.

João nunca entendeu muito bem como é que um comunista convicto, rebelde que tantas vezes se insurgiu contra a rígida disciplina imperante no colégio, acabaria padre! Fora uma decisão surpreendente. Contudo, analisando alguns dos traços que àquela época melhor definiam o seu carácter, verificar-se-á não ter sido uma resolução absurda.

Manuel era inteligente, culto, leal, honesto, amigo do seu amigo, desprovido de grandes ambições pessoais, preocupado com o mundo e interventivo na comunidade em que se inseria, mas também, extremamente perspicaz e possuidor de um humor cáustico e assertivo. Pertencia à Juventude Comunista e defendia com tenacidade a utopia – ou talvez não. Será que a transformação desta ilusão em realidade será vital para a sobrevivência da humanidade? Quem sabe o que reserva o futuro? – de ser possível construir uma sociedade em que os homens fossem felizes e iguais entre si. Gostava de transgredir, experimentar, todavia, sempre ponderando e medindo os riscos em que incorria.

Neste gosto pela infracção, encontrou em João o companheiro ideal. João era alegre, impulsivo, vivaz, destemido, exuberante, detentor de uma enorme força de vontade e intelectualmente desenvolvido. Acreditava em desfrutar a vida plenamente, fruir dos prazeres que esta proporciona. Sonhava com Ferraris, cruzeiros no mediterrâneo, mulheres belas, aventura, dinheiro, e no entanto, paralelamente, era um indivíduo bondoso e fraterno que se condoía com a dor alheia. Ao invés de Manuel, jamais pensou em mudar o mundo, sequer a sua rua. Apenas vivia o momento, impulsionado pelo coração.

Enquanto apreciavam o característico movimento de uma manhã de sábado na Rua de Santa Catarina, os dois amigos que já não se viam há bastante tempo, matavam saudades e recordavam momentos esquecidos na memória, saboreando uma bebida fresca na esplanada do café Majestic.

- Não é a primeira vez que afirmas isso, aliás, não te cansas de repeti-lo: “Tu salvas almas, eu salvo vidas”, “Tu salvas almas, eu salvo vidas”. Pareces um papagaio… e idiota por sinal! – resmungava Manuel caricaturando com um esgar tonto a expressão do seu amigo.

- Calma lá. Falta aí qualquer coisa! – disse João sorrindo. “Salvas almas ou lá o que quer que isso seja”. Até hoje, apesar dos teus esforços para me convenceres do contrário, nunca soube o que isso era. Jamais vi ou toquei alguma e estou certo que não tendo elas carne à volta, serão muito poucos os que as quererão apalpar. – um sorriso maroto sublinhava o dito que não pretendia mais que espicaçar o amigo.

- Goza, mas não afirmes que desta água nunca beberás. Já vi muitos ateus mudarem de opinião! Apenas acreditas no que é cientificamente comprovado. Não crês para além da lógica, contudo, muitas das coisas que hoje são aceites pela humanidade, seriam impossíveis de admitir séculos atrás. Deus não necessita de certificação. Faz parte de nós. Parece impossível que tendo tu salvo tantas vidas, assistido a tantos dramas, não tenhas sido sequer tocado pela dúvida.

- Não te esforces Manuel. Não vale a pena. Deus é tão-somente a forma que os homens encontraram para sobreviver à sua própria pequenez, para subsistir à consciência de nada somos neste mundo, que de um momento para o outro deixaremos de existir. Deus é a prova da nossa fraqueza. Não é mais que uma bengala de que o ser humano se socorre para o ajudar a percorrer este difícil percurso que é a vida.

- Responde-me: o amor existe? Amas a Marta? – Manuel aguardou pela resposta de dentes cerrados, ansioso. Com ela provaria o seu ponto de vista.

- Que raio de pergunta! É claro que o amor existe e evidentemente que amo a Marta. O que é que isso tem a ver com a nossa conversa. Sabes muito bem que a minha mulher e os meus filhos são tudo para mim. A Marta está para a minha vida como Jesus para os cristãos, depois dela todas as deusas foram esquecidas, apenas a ela me dedico. – respondeu João.

Efectivamente, depois que a conheceu, abandonou o seu quotidiano de D. Juan boémio e consigo construiu uma família unida e harmoniosa. Apaixonara-se pela sua jovialidade, pelo carácter determinado, pelos seus princípios de justiça, pela sua beleza e fundamentalmente, pela sua naturalidade. Marta entrou na sua vida como a água de uma nascente: fresca, cristalina e pura. Era graciosa, mas também forte. Quando ria, fazia-o com vontade e do rosto ressaltavam trejeitos de criança traquina, brilhos de genuinidade, fulgores de perfeita alegria, no entanto, quando se enervava parecia que a terra tremia e que o céu ficava zangado. Hipocrisia ou fingimento eram conceitos que abominava. Se no ventre da terra se concebessem as mais belas criaturas, Marta seria obviamente uma delas. Provavelmente a mais bonita! Decerto que a esta idiossincrasia não seriam indiferentes os anos passados na sua terra natal: uma pequena e velha aldeia escondida entre encostas de granito.

João costumava dizer que Marta lhe transformara a vida num mar imenso de felicidade. Manuel sabia-o bem. Quando o questionou, já conhecia a resposta.

- Tem tudo a ver. Eu sei que o amor existe, todavia, nunca o senti, nunca o toquei, e, por muito belo que ele seja, por muito excitantes que sejam as carnes que o cingem, jamais

o apalpei. Mas apesar disso sei que é real. Embora não o tenha experimentado, sei que é parte integrante da vida do ser humano. Assim é o amor; para existir é preciso acreditar nele. O mesmo acontece com Deus!

- Não sabes o que é o amor e nem imaginas o que perdes. – interrompeu João, piscando o olho ao amigo.

Manuel deu-lhe uma amigável sapatada no braço e continuou o seu raciocínio.

- Deus convive com milhões de pessoas no mundo inteiro. Não necessita de forma nem de se submeter a comprovações científicas. A sua presença é evidente!

Por instantes, o silêncio! João deleitava-se com recordações do tempo em que conheceu a sua esposa e Manuel saboreava o prazer de uma pequena vitória. “Mais uma lança em África. Bom, talvez não seja uma lança, não será mais que uma pequena agulha, mas não deixa de ser uma picadela.”

- Acorda pateta. Repara, avião às quinze horas. – Manuel chamou atenção do amigo para uma jovem que exibia o seu estonteante corpo sob um suave vestido florido em tons de amarelo canário.

- Aquilo não é um avião senhor padre, é um extra-terrestre! – respondeu João.

Os dois riram, e continuaram atentos, comentando o que os rodeava. Por vezes Manuel parecia distraído, ausente, até sonolento. Puro engano. Era o primeiro a soltar as garras e a dilacerar as vítimas com comentários acintosos.

- Abutre de penugem azul alicia as presas com promessas de dinheiro. – disse Manuel telegraficamente e apontando com um levantar de queixo.

João olhou na direcção indicada sem entender o que o amigo pretendia.

- Queres explicar-te?

Manuel indicou um sujeito que caminhava de um lado para o outro com um letreiro azul pendurado ao pescoço que dizia: “Compra-se ouro usado. Pagamos o preço justo. Pagamos a pronto. Rua dos Bragas, 77”.

- Nunca ouviste dizer que vão os anéis e ficam os dedos? – questionou João.

- Ouvi, mas não deixa de ser triste que sempre haja quem pretenda enriquecer à custa da miséria dos outros. – retorquiu Manuel.

- Não é bem assim, não é bem assim. Não podes catalogar estas pessoas de abutres. É muito severo de tua parte. Este é um negócio como outro qualquer.

- Achas? Imagina que estás num situação difícil e vais a uma destas casas vender esse fabuloso relógio que a Marta te deu? Ou a tua aliança de casamento? Que por isso te oferecem uma ninharia. Diz-me o que sentirias?

- Sentir-me-ia explorado concerteza, mas se esse dinheiro servisse para me matar a fome, não hesi…

Ficaram calados. Admirados! A atenção desviara-se para um indivíduo que no outro lado da rua se sentara a pedir esmola. A singularidade da sua presença, suscitava comentários a quem por ali passava.

“Quem não gostava de a encontrar!”. “Não é nada burro. Não pede pouco não senhor!”. “Pelo menos este é original”. Cada observação trazia consigo uma nota de surpresa e um sorriso de simpatia que em nada pareciam afectar o excêntrico pedinte que segurava os compridos cabelos grisalhos com uma borracha preta que parecia ser a câmara de um pneu de bicicleta e exibia ao peito um velho letreiro em cartão canelado que gritava assim: “Procuro a felicidade. Por favor ajudem-me a encontrá-la”.

- Genial! – disse João.

- O ser humano não pára de nos surpreender. Esta alma merece ser ajudada. Adoraria que o fosse por ti.

As curtas palavras de Manuel foram ditas com tal sinceridade, os seus olhos expressavam tanta paixão que João se sentiu compelido a ajudar aquele homem estranho.

- Repara, – disse Manuel – o corpo está ali, mas a cabeça não. Parece ausente. Os lábios libertam um simples obrigado para agradecer a quem deixa esmola mas a sua expressão não se altera.

Efectivamente o coração do mendigo pousava num tempo e local distantes. Memória de terra, lembranças de pedra que o amparavam na busca do sonho que o fez abandonar a velha aldeia em que vivia, o seu pedaço de paraíso. Diariamente revivia no peito momentos inesquecíveis de uma infância plena de liberdade e profunda comunhão com a natureza. Uma época em que os pés tinham asas, que saltiplanava pela serra até a força se extinguir com a luz do dia, em que da noite brotavam sorrisos cintilantes que o embebiam de ternura. Um tempo em que as mãos ásperas do avô o aconchegavam no sono e lhe afagavam a existência naquele local em que Deus e a Terra se fundiram num só e os homens se limitavam a assistir tranquilamente.

Sentado na Rua de Santa Catarina, via-se escondido atrás das rochas com o seu pequeno grupo de amigos de quem tanto gostava – principalmente a pequena maria-rapaz por quem tinha um carinho especial e que o acompanhava em todas as brincadeiras – atirando pedrinhas aos bodes que marravam entre si enquanto ovelhas remeladas pastavam indiferentes, sentia a respiração cortada pela escassa água do riacho onde tomaram banho vezes sem fim, subia às árvores e baloiçava-se nos ramos, penetrava-lhe as narinas o cheiro a serrim da oficina do avô, experimentava na pele o toque macio da madeira acabada de lixar e acima de tudo fechava os olhos e arrepiava-se com o beijo fugidio que um dia aquela bela menina de cabelo à rapazinho e profundos olhos castanhos lhe deu, com o momento em que os dois, depois de mais um intenso dia de folia, deram as mãos sobre os joelhos esfarrapados e juraram que nunca se separariam.

Infelizmente, até o paraíso necessita de escolas, faculdades, hospitais, aos poucos as famílias começaram a abandonar a aldeia para procurar um futuro melhor nas principais cidades do país. Ela foi a primeira. Os pais decidiram mudar-se para o Porto. “A minha filha será médica ou professora. Um dia havemos de voltar.” Nunca mais regressaram!

Desde esse dia que a tristeza se instalou no seu coração. O avô tentava consolá-lo de todas as formas, mas com o decorrer dos anos quase todos partiram e em cada adeus era o gracioso rosto da sua predilecta amiga que se despedia de si.

Alguns anos mais tarde, estava já com os seus dezoito anos, o avô incentivou-o a que a procurasse. “ Vai meu filho. Vai. Não hesites. Enquanto não a descobrires, não terás sossego.” Trinta anos volvidos, continua vagueando pelo Porto desejando ardentemente que o acaso ou o destino permitam vê-la outra vez.

- Vais lá falar com o homem ou não. – perguntou Manuel.

- Hoje não. Tenho que ir já para o hospital, mas se amanhã ele estiver por aqui, então conversarei com ele. – respondeu João, despedindo-se em seguida do amigo.

Manuel, aproximou-se do pedinte e perguntou.

- Porque tem isso à volta da cabeça? Não é demasiado quente? Não o incomoda?

- Por vezes parece que a minha cabeça vai rebentar. Seguro-a com esta borracha e sinto-me mais confortável. – respondeu o homem serenamente.

- Sabe que o que procura é muito difícil de encontrar. Muitos são os que a desejam mas poucos os que a alcançam. – insistiu Manuel com intuito de tentar saber um pouco mais sobre ele.

- Então não sei! – respondeu com um suave sorriso nos lábios. Procuro-a há 30 anos e ainda não a vi uma única vez.

- Como se chama? – perguntou Manuel.

- Há muito tempo que ninguém me pergunta o nome! Chamo-me Pedro.

Manuel encantara-se com ele mas estava determinado a que fosse João a ajudá-lo. Tirou uma nota de cinco euros do bolso, entregou-a e disse-lhe:

- Se amanhã à mesma hora estiver por aqui, volto a dar-lhe cinco euros e ainda por cima terá uma surpresa.

Agradeceu, viu Manuel afastar-se, olhou para a nota que ainda tinha na mão e pensou que ainda existem pessoas simpáticas, não criando qualquer expectativa relativamente ao dia seguinte, pois já muitos o haviam tentado auxiliar sem qualquer efeito positivo.

Cinco horas da tarde. Como habitualmente, João sentou-se na esplanada do Majestic e pediu um café e uma água sem gás fresca. O seu rosto bronzeado brilhava ao sol, realçado pelos cabelos negros que não sendo muitos se encontravam humedecidos e bem penteados para trás. Atraente, calça de linho, camisa às riscas, tudo a combinar, sinais de alguém maduro e confiante. Dava nas vistas e gostava. Manuel não devia demorar muito. Não se costumava atrasar. No outro lado da rua Pedro mantinha-se exactamente na mesma postura, como se nunca tivesse saído dali.

- Até que enfim. Estava a ver que nunca mais vinhas. Queres tomar alguma coisa?

- Apenas um café. – respondeu Manuel.

- Estás de poucas palavras. Pareces chateado? – perguntou João.

- Não, nada disso. Apenas compenetrado. Já vi que o nosso amigo continua ali e temos que ir ter com ele não é verdade?

- Claro. Toma o teu café calmamente que vamos já falar com ele. – respondeu João rindo-se do amigo.

Pagaram e dirigiram-se ao pedinte.

- Chama-se Pedro. – informou Manuel em voz baixa.

- Boa tarde, o meu nome é João Fonseca – esticou a mão cumprimentando-o – e sou amigo, mais, sou o melhor amigo aqui do padre Manuel que provavelmente já conhece e é um ser humano extraordinário.

- Boa tarde. – respondeu Pedro receosamente, um pouco intimidado pela presença dominadora de João. Além de bem parecido, era bem-falante e emanava confiança.

- Gostaria muito de o conhecer – continuou João – e de o convidar para esta noite jantar em minha casa. Sempre é mais fácil procurar a felicidade de barriga cheia. – gracejou.

Manuel não conseguiu esconder uma mal disfarçada expressão de satisfação. Sempre se orgulhara de João e naquele preciso momento mais do que nunca.

- Verá que passará uma noite agradável. O Manuel também jantará connosco, conhecerá a minha esposa e os meus filhos. Aceite que não se vai arrepender.

- Aceite. – repetiu Manuel.

O constrangimento de Pedro era menor sabendo que Manuel era padre e que também estaria presente. Sentia-se tentado a anuir! Desde há muitos anos que não tinha um jantar realmente decente, muito menos com uma família. Apesar da simpatia dos dois, da maneira convincente como João o interpelou, não deixava de estranhar o convite.

- Não levem a mal a pergunta, mas porquê eu? Porquê este interesse repentino na minha pessoa?

- Em primeiro lugar porque consideramos extraordinário que alguém mendigue para encontrar a felicidade, em segundo porque no seu letreiro pede ajuda e nós teríamos muito prazer em o fazer. Em terceiro, porque apenas ontem o vimos e só hoje me foi possível estar consigo sem condicionamentos de tempo. – respondeu João.

- Acredite que as nossas intenções são boas. Pode ser que o consigamos auxiliar. Quem sabe? Não tem nada a perder. Aceite por favor. – disse Manuel.

- Muito bem. Passem aqui dentro de duas horas e então iremos jantar. – respondeu Pedro.

- Se quiser pudemos ir agora Pedro. – observou João.

- Não. Prefiro mais tarde.

- Tudo bem. Iremos dar uma volta e dentro de duas horas estaremos aqui.

Os dois afastaram-se levando consigo um pequeno sentimento de felicidade, não fossem as aparências, concerteza caminhariam de mãos dadas.

Passado o tempo combinado, voltaram. Pedro não estava.

- Arrependeu-se. Provavelmente ficou assustado. – observou João.

- Esperemos um pouco que ele aparece. – contrapôs Manuel.

Passaram-se dez minutos e João ficava impaciente. Não gostava de perder tempo com coisas que não dessem resultado.

- Vamos embora Manuel. Ele já não vem. Desistiu, ponto final. Está no seu direito. Cada um é dono da sua vida.

- Sê paciente e tem fé. Ele vai aparecer.

Nesse momento Pedro surgiu perto deles. Estava asseado, trazia uma roupa humilde mas limpa e havia tomado banho.

- Desculpem o atraso, fui lavar-me e arranjar-me melhor, por isso demorei um pouco mais.

- Vamos, tenho o carro no parque dos Poveiros.

João conduzia um BMW descapotável, ultimo grito. Passado algum tempo chegaram a casa; uma vivenda enorme, com um imenso terreno a toda a volta e um belíssimo jardim à frente.

Pedro estava boquiaberto!

- O João é um importante cirurgião da nossa cidade e a esposa é professora na Faculdade de Letras. Ganham os dois muito bem, mas são pessoas fabulosas, com um coração enorme. - sussurrou Manuel, como que quase desculpando a opulência da casa do amigo.

- Entre, entre, esteja à vontade. Faça de conta que está em sua casa. Não se iluda com as aparências. Nós não somos de cerimónias. Venha, vou apresentar-lhe os meus filhos.

Antes das apresentações os miúdos correram a saudar Manuel. Era notório que gostavam muito dele.

- Apresento-lhe o Manuel José que é o meu filho mais velho, tem 18 anos e é afilhado aqui deste nosso amigo – apontou para Manuel –, este é o João Paulo, o meu do meio e tem 14 anos, esta é a Matilde, a princesinha da família e tem apenas 8 aninhos.

- Muito prazer. – Pedro cumprimentou os meninos um a um.

- Meninos, este nosso amigo chama-se Pedro e hoje janta connosco.

Os pequenos não conseguiram esconder alguma surpresa e espanto quanto ao aspecto de Pedro mas mantiveram-se calados. Matilde que era mais nova e um pouco mais atrevida que os irmãos, não se conteve e perguntou:

- Porque é que tens a cabeça amarrada? Magoaste-te? Não queres antes uma ligadura? O meu pai tem muitas. Sabes que ele é médico e pode curar-te as feridas.

Pedro soltou uma gargalhada envergonhada. Há muito que não ria! A espontaneidade de Matilde fê-lo recuar ao seu tempo de menino.

- Sabes Matilde, estas feridas são muito malandras e brincalhonas. Apesar de acreditar que o teu pai é um excelente médico, elas são muito difíceis de tratar. Por vezes, saltam tanto dentro de mim que fico com a cabeça a andar á roda, zonzo e com medo de não a segurar, por isso ato-a com esta borracha que é mais forte que qualquer ligadura.

João mudou de assunto:

- Por favor, sentem-se. A mãe já chegou? – perguntou dirigindo-se ao filho mais velho.

- Não, ainda não. Telefonou alguns minutos atrás dizendo que estava a chegar. Pediu-nos para irmos pondo a mesa para o jantar.

Tendo os pais uma vida profissional tão preenchida, cedo se habituaram a desempenhar algumas tarefas domésticas. Rapidamente e com desembaraço prepararam a mesa. Só faltava chegar a mãe com a comida que tinha ido comprar ao take away.

Entretanto, João e Manuel tentavam conhecer Pedro um pouco melhor, este não era de muitas falas, mas por outro lado sentia a obrigação de retribuir a gentileza de que estava a ser alvo e tímidamente ia contando algo sobre si, como uma velha e enferrujada porta que há muito não se abria. As palavras soltavam-se a conta-gotas, arrancadas, receando a atenção de terceiros, temendo a luz que irradiava das nobres intenções dos seus novos amigos. Será que os poderia considerar assim?

Ouviu-se uma chave rodar na fechadura da porta. Os miúdos correram a abraçar a mãe. Marta entrou na sala, beijou o marido e cumprimentou Manuel.

- Marta, apresento-te o Pedro, o nosso convidado de que te falei ontem. Pedro, apresento-lhe a minha esposa Marta. – disse João.

Cumprimentaram-se; as mãos de Pedro gelaram, o rosto empalideceu, por instantes sentiu que a terra lhe fugia debaixo dos pés, os nervos apoderaram-se do corpo, as pernas começaram a tremer, o esforço para controlar aquele vórtice de sensações reduzia-lhe forças e aquele imenso segundo teimava em não terminar! Sufocava. Necessitava ajuda.

- Muito prazer. - disse Marta com um sorriso e soltando a mão. Está a sentir-se bem? Parece um pouco pálido! Não achas João? – insistiu, dirigindo-se ao marido.

A voz de Marta acordou-o daquele profundo abismo e teve o condão de lhe suavizar as emoções.

- Muito prazer também. Não se preocupem comigo, isto não é nada, já passou. – retorquiu Pedro, quase restabelecido.

Depois de tão longa demanda, ela estava ali, mesmo à sua frente! Marta, a menina por quem se apaixonara ainda criança! Inacreditável! Incontáveis anos a ansiou disperso por vãs tentativas, cedo a pendurou numa estrela e a seguiu feita sonho, fantasia de cinema, pitada de poema, doce insónia, chama crepitante que o acalentou nas noites errantes. Sempre a desejou, sempre a quis para si, mas nunca a imaginara assim, feita mulher mãe, salpicada aqui e ali pelas primeiras cores do Outono, longos cabelos manchados a ouro tombando sobre os ombros, ancas bem delineadas, voluptuosa, coxas roliças, busto erecto, rosto moreno de onde sobressaíam uns imensos olhos castanhos e uns extraordinários lábios carnudos que faziam murchar de vergonha a mais bela das rosas vermelhas.

O seu desejo jamais fora contagiado por qualquer ponta de erotismo. Para si, a sua princesa vestia calções, tinha pernas de magricela, cabelo curto e as unhas pintadas de terra.

- Preparem-se que já vou pôr a comida na mesa. Vamos ter um prato de filetes e outro de cabrito. Espero que goste Pedro.

- Gosto concerteza minha senhora. – respondeu Pedro com um sorriso.

- Não me trate por senhora, peço-lhe. Marta é muito mais agradável.

- Muito bem, tratá-la-ei por Marta.

Pedro sentou-se à mesa degustando calmamente um estranho sentimento de paz, como se algo lhe fizesse festinhas no coração. Provavelmente não era felicidade, contudo era bom. Muito bom. Terno, doce, meigo, leve, assim se sentia. Sobretudo, possuía-o uma amena e agradável sensação de tranquilidade; se pudesse fechava os olhos e dormia para o resto da vida. Talvez a palavra mais adequada para classificar aquele momento fosse: alívio.

Já não lhe pesava a cabeça. Retirou a enorme borracha que lhe prendia os cabelos, deixou que estes caíssem para a frente dos olhos e depois penteou-os para trás com as duas mãos. Todos olharam para ele. Pedro irradiava serenidade! A pequena Matilde saltou para o seu colo e beijou-o na face, João Paulo acompanhou-o à casa de banho para que melhor pudesse pentear o cabelo e Manuel José ofereceu-lhe o seu gel para que ficasse mais bonito.

Enquanto isso, padre Manuel sorria em silêncio, suportando uma pequena lágrima que nascia ao canto do olho e João acarinhava a esposa dizendo embevecido:

- Não sei porquê, não sei o que é que tens, mas fostes tu que o puseste assim.

- Também não entendo, mas efectivamente parece uma pessoa completamente diferente de há minutos atrás. – respondeu Marta.

- Já o tinhas visto em algum lugar Marta? – perguntou Manuel.

- Não, ou seja, penso que não, a cara dele não me é totalmente desconhecida, mas

sinceramente não o estou a identificar.

- Terá sido um aluno teu? Pela faculdade também passam indivíduos mais adultos. – observou João.

- Penso que não, se tivesse sido meu aluno eu perceberia.

Marta não reconhecia o amigo por trás das rugas, do semblante esquelético amassado e retorcido por anos de infrutífera e estóica missão. Há muito contaminada pela cidade, não lhe distinguira o cheiro a terra, olhava para os seus olhos e não os via reflectir uma menina arisca baloiçando nos ramos das árvores.

Voltados à mesa, iniciaram o jantar. Como era normal, Pedro era o centro das atenções, o alvo de todas as perguntas.

- O Pedro de onde é? Diga-nos de onde vem? – perguntou o padre Manuel.

- Venho de um mundo muito diferente deste em que vocês vivem. Venho de uma aldeia abençoada por Deus. Imaculada. Onde o ar que nos enche os pulmões, apenas sabe a ar, onde as crianças, as poucas que existiam, andavam descalças para sentirem o toque da terra, o fresco da erva e a dureza do granito. Uma terra onde por vezes o vento zunia tão forte que os homens conversavam em voz baixa em sinal de respeito, onde as histórias contadas junto à lareira se transformavam em lendas que nos acompanhavam para sempre.

- Belas palavras – observou Marta pensativa –, de alguma forma transportam-me para o meu tempo de criança.

- Pedro diga-me o que mais o impressionou aqui na nossa cidade? – perguntou João. Já reparou que a minha filha só tem olhos para si.

Matilde que tinha acabado de comer, devorava atentamente todos os gestos e palavras de Pedro. Mesmo não o entendendo… sorria deliciada.

- O coração das crianças nunca se engana. O senhor deve ser uma boa pessoa. – observou o João Paulo.

- Olha o senhor adulto, o meio quilo feito homem! – comentou o pai, rindo de contentamento.

- Não falemos apenas de mim – observou Pedro –, atendendo à sua profissão deve ter imensas histórias para contar.

- Bem dito, vá lá, conta-nos algo que verdadeiramente te tenha impressionado. – insistiu Manuel.

- Um dia, resultado de um acidente automóvel, tive que operar um determinado individuo. Salvou-se, mas o filho não. Quando retornou a si, tomou conhecimento do acontecido. O homem ficou louco de dor, teve espasmos violentos, o corpo contorcia-se de dor. Demos-lhe um sedativo e posteriormente foi encaminhado para o apoio psicológico. Uns meses mais tarde vi-o na rua. Fui ter com ele e perguntei-lhe como estava. Respondeu-me que ao que sucedeu só sobrevivem os animais e os cobardes; como não era animal…, foi sem dúvida a resposta ou acontecimento que até hoje mais me afectou.

- Não tinhas mais nada para contar – Marta parecia um pouco aborrecida -, estava tudo a correr tão bem.

- Pediram para contar o caso que mais me afectou e eu contei. – respondeu João.

- Sem dúvida que é uma história comovente, mas quando regressas a casa, com uma família como esta, tudo é mais fácil de suportar. – observou Manuel.

Os rapazes levantaram-se da mesa e foram jogar Play Station, Matilde porém, manteve-se firme e desperta, atenta a tudo que os mais velhos diziam. Pedro deliciava-se com as expressões da miúda. Lembrava a mãe com a mesma idade.

- Permitam-me que lhes diga que nesta casa encontrei a felicidade, não a minha, a vossa, mas mesmo assim, pela primeira vez desde há muito, muito tempo, sinto-me feliz. Agradeço imenso o jantar e o carinho com que me trataram.

- Nós é que agradecemos. Foi um privilégio tê-lo conhecido. – disse Manuel.

- Podemos ajudá-lo em alguma coisa? Teríamos muito prazer. – perguntou Marta.

- Nem imaginam o quanto já me ajudaram.

Durante mais de trinta anos, vivera com Marta dentro de si, obcecado por ela, agora estava na altura de se libertar. Sentia-se invadido por uma intensa sensação de quietude.

Matilde, sentou-se ao colo de Pedro como que querendo impedir que ele fosse embora. Tudo o que ouvia soava a despedida.

- Como vê, conquistou-nos a todos Pedro. Pode passar a noite connosco, não faltam quartos. – disse João.

Pedro recusou gentilmente.

- Pretende que o deixe em algum local?

- Sim gostaria que me deixassem novamente na rua de Santa Catarina.

João, Manuel e Pedro, prepararam-se para sair.

Pedro despediu-se de Matilde com um afago terno, cumprimentou os dois rapazes e quando se preparava para o fazer com Marta, esta abraçou-o e beijou-o na face.

- Ofereço-lhe a minha borracha como recordação. Não preciso mais dela.

1 comentário:

bravewolf disse...

Será que Pedro com o inesperado encontro que teve com o seu "platónico"amor, encontrou a felicidade que procurava?
A discussão teológica entre os amigos é um estereotipo, bem descrito zaticcom os argumentos habituais entre o crente e o não crente.
O final poderia ter sido outro ? talvez não!
Uma utopia muito bem escrita.