segunda-feira, 4 de outubro de 2010

AS PINTURAS DE UMA VIDA


Quando os primeiros raios de sol do dia que despontava ameaçavam entrar pelas frestas das persianas do atelier de pintura, Miguel Ângelo parou de trabalhar. Tencionava acabar a pintura, pelo menos no essencial, deixando os retoques finais para quando regressasse de Nova Iorque, onde pensava passar o Natal na companhia dos tios.

Fechou-se no atelier, equipado com uma iluminação especial que substituía a luz natural, já nem se recordava, se um, dois, ou mais dias, como era seu costume quando tinha uma obra em mãos e se aproximava do seu epílogo, e só a tia Eva é que entrava para lhe trazer, com muito carinho, algo para beber ou de comer; ninguém mais se atrevia a importunar o pintor.

Os progressos que o sobrinho vinha a fazer na pintura alterava o humor da tia, até que só de relanço conseguia olhar para o quadro. Miguel Ângelo pensou que a tia não estava a gostar desta sua obra, não compreendia esta atitude, ela que era uma fanática incondicional pela sua pintura, talvez a tia não andasse bem de saúde, teria de dizer ao médico de família para a ver. Deslizou a cadeira de rodas para junto da enorme janela e correu a persiana para deixar entrar a luz.

O quadro era uma paisagem campestre; uma casa de campo, invadida por trepadeiras que adornavam as fachadas, um alpendre com tecto de madeira, um celeiro, uma eira onde se adivinhava uma noite de desfolhada, uns instrumentos de trabalho rurais abandonados depois de um dia de árdua labuta, um moinho de vento com um cata-vento a encimá-lo, virado a norte, como a dizer que o bom tempo ia continuar, e um velho carvalho de enormes proporções junto a um riacho que serpenteava perto da casa. A pintura tinha aquela luminosidade quente dum pôr-do-sol de Outono. A contemplar esta calma paisagem, estava sentado, de costas, numa pedra, um velho, vestido de preto. Apoiava as duas mãos sobre um cajado e sobre elas o queixo, ligeiramente inclinado, o velho contemplava o cenário.

Miguel Ângelo deslocou a cadeira de rodas, sua companheira de há trinta anos, para o centro da sala. Um acidente rodoviário tornara-o paraplégico. O porquê deste acidente, as condições em que se deu, nunca lhe foi devidamente explicado, nas muitas tentativas que efectuou ao longo dos anos para saber a verdade. Algo de estranho havia neste acontecimento; mesmo passados tantos anos, vinha-lhe à memória, de uma maneira muito vaga. Recorda-se de ouvir um barulho enorme e estranho, gritos e pessoas a correrem, uma sirene de ambulância, umas pessoas de branco, deviam ser enfermeiros, não sentia o corpo, falavam com ele, mas não conseguia falar, sentia o sabor dum líquido estranho na boca, que devia ser sangue, muitas luzes, e depois desmaiou. Acordou numa cama de hospital, com os tios, o médico e uma enfermeira à volta da cama. Lembra-se de ter chamado pela mãe, mas ninguém disse nada, depois pelo pai, mas igualmente não obteve resposta. Depois, a sua memória não registou mais nada. É tudo que se lembra do acidente.

A tia veio-lhe dizer que o Dr. Mário de Sousa, o advogado da sua firma, queria falar-lhe. Miguel Ângelo disse para que ele entrasse.

O advogado entrou na sala e cumprimentou o pintor.

– Você não descansa? Ainda acaba por adoecer – disse

– Tem razão. Tenho dedicado muito tempo a este quadro – respondeu.

Mário de Sousa começou a observar a pintura, e algo lhe pareceu familiar.

– Aonde é que se inspirou para fazer este quadro?

– É fruto da minha imaginação. Tenho esta paisagem na minha memória desde sempre. Acha estranho?

O advogado continuava a observar o quadro, deslocava-se de um lado para outro, ora aproximava-se, ora distanciava-se, cruzava e descruzava os braços, colocava a mão no queixo numa atitude de meditação.

– Acha estranho? – perguntou de novo Miguel Ângelo

– Não. Só que parece que já vi este quadro! – disse o advogado.

– Não me faça rir. Está a dizer que estou a plagiar um colega.

– Não. Não quero dizer isso. Mas digo-lhe francamente que diria que já vi uma pintura parecida em qualquer sítio – afirmou a medo. – Diga-me aonde, porque eu quero ver – disse a rir-se.

– Claro, claro. Devo estar enganado, deve ser algo mesmo muito parecido – rectificando a sua opinião.

Sente-se e diga-me novidades – disse Miguel Ângelo.

O advogado sentou-se mas ainda ficou breves momentos a olhar para o quadro.

Miguel Ângelo McWhistler Lencastre era filho único do engenheiro Jorge Lencastre, industrial, e de Mary Anne McWhistler, professora, de ascendência escocesa. Depois de passar pelas Belas – Artes e tirar o curso de Pintura, com brilhantes notas, estagiou em Paris e Nova Iorque, aderindo muito cedo ao impressionismo. Como Manet, deixou-se fascinar por Velásquez, de Degas recebeu o sentido da composição e a serenidade do conjunto, mas foi de Monet que conseguiu a harmonia das cores que as suas paisagens, que compreendia a maior parte das obras do seu acervo artístico, se transformavam em verdadeiras sinfonias de cor. Ângelo McWhistler, era assim que gostava de ser conhecido no meio artístico, para o associarem ao do pintor impressionista que antes da I Guerra Mundial gozou de grande estima na Europa e do qual era um fervoroso adepto. Não sabia se o apelido tinha qualquer ligação com o referido pintor, nunca procurou saber talvez por falta de curiosidade ou mesmo com medo de vir a concluir que era somente uma coincidência. Como pintor os seus quadros sempre foram muito apreciados e atingiram, desde muito cedo, cotações muito altas.

O destino proporcionou dedicar-se ao comércio da arte, outra componente da sua vida profissional, revelando-se também, e desde muito cedo, um hábil e conhecedor do negócio e, como andava sempre rodeado de experts na matéria, a subida no mundo dos negócios foi fulgurante. Era reconhecido pelos seus pares como um dos melhores negociantes de arte mundiais. Se no princípio a sua fortuna pessoal, que recebeu de seus pais quando atingiu a maioridade, tutelada até essa altura pelo seu tio, foi importante para atingir o sucesso, agora o dinheiro que recebia das galerias de arte e das suas pinturas tornou a sua vida ainda mais fácil, sem dificuldades, se é que algum dia as teve.

Desde o desastre que vitimou os seus pais e ele sobreviveu, apenas com 3 anos, ficara paraplégico e por tal motivo continuava a viver com os tios, não por necessidade material, mas por evidente necessidade afectiva. Possuía várias galerias de arte. Começou por ter uma no Porto e outra em Lisboa, mas por influência do seu amigo pintor Michel Julien, que conhecera em Paris quando de um estágio que fez num atelier em Montmarte, atravessou fronteiras e abriu uma galeria no sul de França, em St. Paul de Vence, terra de artistas, por conselho do amigo, um local ideal para mostrar e comercializar as suas pinturas, onde ia amiudadas vezes não só para ver como ia a galeria mas para se instalar na Hospedaria La Colombe d’Or, que fora ponto de encontro de celebridades e que tinha também como suas referências, casos de Picasso, Chagall e Matisse.

Era uma noite de um fim de verão, quente, perfumado dos cheiros típicos duma desfolhada. Na eira, na quinta de uns amigos dos tios que os convidaram, amontoavam-se as espigas prontas a serem despidas da folhagem. As pessoas falavam alto, riam-se e preparavam-se para o acto campestre, numa alegria própria do momento. A concertina do Ti Manuel enchia a noite e os rapazes e as raparigas sentavam-se ao redor da eira, os mais velhos colocavam-se estrategicamente para receber, se a sorte os bafejassem, o beijo do milho-rei.

O criado empurrou a cadeira de rodas de Miguel Ângelo para junto da eira, colocando-o num sítio em que pudesse facilmente participar da festa. Alguns rapazes aproximaram-se dele dando-lhe umas palmadas nas costas à guisa de cumprimento, o que lhe deu uma certa satisfação. Uma rapariga de nome Júlia aproximou-se, cumprimentou-o dum modo infantil, apesar dos seus 16 anos. Andara com ela na escola e já não a via há muito tempo. Estava emigrada com a família em França, e a mesma decidira vir passar as férias a Portugal. Quando miúda e colega da quarta classe, sempre foram muito chegados. Como Miguel Ângelo estava impossibilitado de participar nos jogos de futebol, do “passa” ou do “mata”, ficava junto dele a conversar ou simplesmente a ver os outros a brincar.

Recordaram esses tempos, de coisas simples e fúteis, que é o que se proporciona estes encontros de circunstância. Falaram do que faziam e do que não faziam, dos gostos, dos projectos de vida, e, quando a conversa se esgotou, inevitavelmente falaram do tempo, que é muito diferente do que faz em França, dizia ela.

As espigas saltavam entre as mãos dos moços e das moças perante o olhar atento dos mais velhos. Um grito soou na noite – milho-rei! – Júlia tinha-o desfolhado.

Era da praxe dar o beijo. Distribuiu beijos pela roda dos presentes e, quando chegou a vez de Miguel Ângelo, o beijo foi mais na boca que na face, o que lhe provocou um bater descompassado do coração. Júlia não enrubesceu mas também não ficou indiferente ao acontecimento. A partir dessa noite, passaram a vê-los muitas vezes juntos, a conversar no jardim perto da casa, no café, junto ao rio, em passeios pelo bairro, nas mais diversas circunstâncias.

Júlia simulou uma doença para não regressar com os pais a França, convenceu-os a deixá-la ficar em casa dos avós até estar em condições de fazer a viagem. Contrafeitos, os pais abalaram para a “estranja”, ficando Júlia entregue aos avós e aos amores de Miguel Ângelo. Pouca gente ou mesmo ninguém compreendia a razão desta paixão de Júlia pelo menino rico, ou fosse somente isso que era compreensível; o facto de ele ser herdeiro duma fortuna. Para Miguel Ângelo não lhe passava pela cabeça que essa fosse a razão por que Júlia não fora com os pais. Para Júlia, apesar de ele ser rico e ela pobre, não era impeditivo dos dois se gostarem. O facto de ele ser um deficiente físico e ela uma rapariga bonita e saudável era algo que as pessoas não compreendiam, principalmente os jovens que “arrastavam a asa” a Júlia.

Os avós de Júlia não encaravam bem o romance entre os dois, e, sempre que podiam, colocavam entraves à relação. Inventavam coisas para ela fazer, questionavam-na quando é que pensava regressar para junto dos pais, até conseguiram transporte gratuito para França com gente emigrante conhecida e de confiança. Perante as constantes investidas dos avós, Júlia passou a refugiar-se, quando não estava com Miguel Ângelo, no seu quarto, melancolicamente e só se encontrava com os avós às refeições.

Começou a ter febres e mal-estares preocupantes que o médico confirmava, mas não entendia, mandou fazer umas análises, que Júlia, por razões estranhas, adiou, argumentando motivos fúteis para não ir à clínica.

Por sua vez, Miguel Ângelo vivia este amor intensamente. Não pensava noutra coisa senão estar com Júlia, deixou-se até de se interessar pelo seu hobbie preferido, a pintura. Mas a situação começou a piorar; os avós de Júlia passaram a proibir as saídas, porque o médico dizia que não era aconselhável, e os recados enviados por Miguel Ângelo não lhe chegavam. Até que uma manhã, quando a avó entrou no quarto, estranhando o facto de ela se encontrar ainda deitada, aproximou-se da cama e reparou que ela dormia, mas a sua cara estava muito pálida. Abanou-a, uma, duas vezes suavemente e Júlia não acordava, depois com mais impetuosidade e o resultado foi o mesmo. No chão, junto à cama, caído, encontrava-se um frasco vazio de um barbitúrico. Júlia tinha cometido voluntariamente, ou não, um acto desesperado, irreflectido que talvez lhe custasse a vida. Foi levada para o hospital, mas o médico de serviço, muito amigo dos pais de Júlia, veio informar os avós que ia fazer o que fosse possível, mas não garantia nada. Algo correu mal, não era previsível que o caso tivesse um desenlace inesperado.

Quando contaram a Miguel Ângelo o triste acontecimento, este chorou, gritou, insultou meio mundo, entrando num estado de desespero. Os tios chamaram o médico, que lhe ministrou uns calmantes que o deixaram adormecido. Não a deixaram ver e muito menos assistir ao enterro. Constou-lhe que ao enterro só foi permitida a presença dos avós, os pais não se deslocaram de França, só mais tarde vieram para visitar a campa, situação estranha e que foi alvo de muito crítica da gente da terra, profundamente religiosa.

A este choque emocional, Miguel Ângelo respondeu inicialmente com uma apatia preocupante, seguido de um ataque frenético de criação artística. Passou a dedicar-se ao seu hobbie de um modo entusiasmado. Pintava horas e horas a fio, sem parar, pedia telas, tintas, pincéis e tudo isto, e os tios proporcionavam-lhe tudo. Miguel Ângelo olhou através das frinchas das persianas a neve que caía sem cessar por entre os arranha-céus de Nova Iorque e as sirenes dos carros dos bombeiros e da polícia que não deixavam de se ouvir.

A cidade estava profusamente iluminada, movimentada como sempre, e as pessoas deslocavam-se de um lado para outro nas habituais compras de Natal. Aficionados do exercício físico, alguns já não muito jovens, deslizavam de patins em linha, desafiando as leis da gravidade, enquanto outros na pista gelada do Wollman Rink do Central Park, que avistava do apartamento do hotel, que teve de recorrer para estas férias, pelo facto do seu flat estar em obras, treinavam passes e figuras de estilo. Gostava muito daquela época do ano, a cor, os sons, os cheiros da Big Apple. Quando tinha oportunidade não se furtava de vir a Nova Iorque. Este ano proporcionou-se trazer os seus tios que sempre ao longo da sua vida se dispuseram a acompanhá-lo, sempre que ele quisesse, não pelo prazer da viagem, mas somente para não o contrariar, nem que isso os obrigasse a sacrifícios pessoais. Como Miguel Ângelo não tinha dificuldades económicas, a presença dos tios proporcionava-lhe um certo conforto familiar, pelo facto de não ter tido oportunidade de constituir família.

Embebido no que se passava na rua a uns bons andares abaixo, nem deu pela presença dos tios que entretanto tinham entrado na sala de estar e instalaram-se num sofá junto à lareira. Quando se apercebeu, viu que os tios estavam com um ar de quem queria contar algo, um acontecimento, talvez um segredo. Miguel Ângelo apercebeu-se disso e, facilitando a conversa, perguntou:

– Digam lá o que têm a dizer. Estão para aí com um ar de pasmados. Desembuchem, meus queridos!

Os tios ficaram surpreendidos com a perspicácia do sobrinho e ficaram nervosos.

– Ângelo, o que te temos para contar talvez não vás gostar, mas há muito tempo, mesmo muito tempo, que andamos para te dizer – disse a tia.

– Estou a ver que não vou gostar mesmo! – respondeu.

– Talvez, mas esperamos que compreendas – disse o tio.

Entretanto, entrou na sala o secretário de Miguel Ângelo informando-o que tinha em linha o secretário do mayor de Nova Iorque que queria falar com ele, e que no escritório já se encontrava Mr. John O’Brien, um importante negociante de arte a quem ele tinha marcado uma reunião de negócios para aquela hora.

– Queridos tios, vão-me desculpar, mas esta conversa vai ficar para mais tarde. Entretanto pensem na maneira mais agradável de a contar – disse Miguel Ângelo.

Enquanto percorria a distância que o separava do escritório, Miguel Ângelo sorria por causa das preocupações daqueles dois velhos. Com certeza era mais uma das suas histórias de quem não tem que pensar na vida.

Era manhã cedo quando o telefone tocou. A criada atendeu. Era o Dr. Mário Sousa, que pretendia, com urgência falar com Miguel Ângelo. A criada disse que ia ver se o senhor podia atender.

– Sr. Miguel Ângelo é o Dr. Mário de Sousa, diz que tem urgência em falar com o senhor.

– Eu atendo – disse.

A criada passou-lhe a chamada.

– Sim – disse Miguel Ângelo.

– Bom dia, desculpe estar a falar tão cedo, mas gostava que fosse comigo ver uma quinta que um cliente meu pretende comprar. É um sítio extraordinário e você vai gostar de a ver, e vai saber a razão por que estou a dizer isto, eu passo já por aí. Pode ser?

– Claro. Perante esse mistério todo, não posso resistir – respondeu Miguel Ângelo.

– Então eu estou aí dentro de meia hora. O advogado desligou o telefone.

Pararam o carro junto ao portão da quinta. O advogado tirou a cadeira de rodas da bagageira e abriu a porta a Miguel Ângelo, com a ajuda deste, passou-se para a cadeira. Abriram o portão e percorreram o caminho de terra saibrada que ia até à casa. Um velho, vestido de calças e colete, por cima duma camisa branca, e um chapéu, tudo preto, aguardava-os sentado numa grande pedra, perto da casa. Quando os viu chegar, levantou-se e com grande dificuldade, devido à sua idade e inevitáveis artroses, veio ao encontro de ambos.

– Eu sabia que um dia o menino voltaria – disse o velho.

– Desculpe, não estou a entender – respondeu Miguel Ângelo.

– Eu sei. O menino não me conhece, mas eu conheço-o desde pequenino, e tenho acompanhado o seu sucesso – disse o velho.

– Cada vez estou a perceber menos – respondeu.

– Eu sei. O menino não sabia da minha existência. Mas eu vivo aqui quase desde que nasci, e desde sempre soube que um dia o menino regressaria – disse o velho numa voz que trespassava a emoção.

Miguel Ângelo estava estupefacto com tal acontecimento. Olhou para o advogado como à procura duma explicação que ele pudesse dar, mas o advogado ficou calado, percebeu que ele também nada sabia. Os olhos do velho começaram a lacrimejar. Miguel Ângelo e o advogado começaram a ficar perturbados com a situação. O silêncio que a situação proporcionou foi interrompido pelo velho.

– O menino Ângelo de certeza que nunca ouviu falar de mim, do António, que foi caseiro desta quinta no tempo de seu pai, que Deus lá tenha, pois não? – perguntou.

– Não, nunca! – respondeu Miguel Ângelo.

– O menino não conhece esta casa? – perguntou o velho.

Miguel Ângelo, no inesperado do encontro e da conversa que se proporcionou, ainda nem tinha reparado na casa. Deslocou-se para um sítio do qual pudesse ver melhor a casa, e o velho e o advogado seguiram-no. O que viu chocou-o. A casa que tinha na sua frente era, com algumas insignificantes diferenças, a casa da sua última pintura. Tinha a certeza que era a primeira vez que estava ali, pelo menos desde que se conhece. Todos os outros elementos que constavam do quadro, estavam ali presentes, intactos. A eira, o moinho de vento, até o carvalho estava frondoso. Miguel Ângelo olhava para o amigo admirado. O velho limpava os olhos lacrimejantes.

– Esta casa era do seu avô, e o menino e os paizinhos vinham sempre, no fim do Verão, para as vindimas. Os seus tios moravam todo o ano aqui, apesar terem a casa aonde vivem hoje com o menino, até que se deu aquilo – diz o velho.

– A que se refere? – pergunta Miguel Ângelo, curioso.

– Ao desastre que matou o seu paizinho e a sua mãezinha, e o menino ficou preso nessa cadeira de rodas – diz o velho.

Miguel Ângelo começou a ficar alterado, nervoso, olhou para o advogado, que mostrou perplexidade. O velho continuou:

– O seu paizinho tinha tido uma zanga com o seu tio, e saiu daqui tão mofado, com a sua mãezinha e o menino, que o carro que conduzia com tanta pressa teve um desastre e... o resto é o que o menino sabe.

– E qual foi o motivo da discussão, você sabe? – perguntou

– Na altura só consegui ouvir algumas coisas e, apesar de falarem tão alto, mesmo que não quisesse, tive de ouvir. Mais tarde soube pelo Dr. Souto, que era o advogado da família que me fez algumas confidências, o que se tinha realmente passado.

– Mas por que é que eles discutiram? – perguntou

O seu avô tinha morrido, mas a casa, mesmo antes dele morrer, já não era dele. O seu avô gastava muito dinheiro no jogo e em negócios mal sucedidos. Uma das pessoas a que ele devia dinheiro era o sogro do seu tio, que tinha como única filha a sua tia. Como não podia aguentar mais a situação, o seu tio sugeriu que o seu pai vendesse esta casa com a quinta ao sogro do seu tio, por uma ninharia, para pagamento das dívidas. O seu avô não disse nada ao seu pai do que tinha feito. Quando foram fazer o inventário pela morte do seu avô, o seu pai soube a verdade. Como o sogro do seu tio tinha falecido também, a casa era dos seus tios.

– Então por que é que os meus tios não vivem aqui? – perguntou Miguel Ângelo.

– Eles tinham um filho, o seu primo Artur. Era um moço muito esquisito. Na altura estavam na moda os hippies, ou lá o que era. O seu primo era mais velho que o menino para aí uns quinze anos e gostava muito de si, adorava-o. Quando soube o que pai tinha feito, saiu de casa, disse que ia “pôr umas flores na cabeça” e que ia para América, para São Francisco, se não me engano. Nunca mais voltou.

– E isso que é que tem com esta casa?

– Como o menino ficou nesse estado e sem pais, os seus tios tomaram conta de si. Talvez por remorsos, venderam a casa e a quinta, e aplicaram o dinheiro na sua educação, e, sejamos justos, por sinal cuidaram bem de si – disse o velho.

Perante o desvendar destes segredos, bem guardados e ocorridos há mais de quarenta anos, Miguel Ângelo não sabia o que pensar. Estava abatido perante estas revelações em que ele foi envolvido e sofreu na pele a consequência das desavenças entre os seus pais e os seus tios, estes, que durante estes últimos quarenta anos, foram os seus pais adoptivos.

– Esta casa continua à venda? – perguntou.

– Sim, ainda não houve quem a quisesse – disse o velho.

– Dr. Mário, saiba quanto querem pela casa – disse Miguel Ângelo

Passara mais de um ano e Miguel Ângelo olhava satisfeito para a recuperação que a casa sofrera. Estava totalmente remodelada. Uma parte da casa estava destinada à habitação, outra era uma galeria de arte.

Era o dia da inauguração do espaço. Os convidados estavam a chegar aos poucos, estacionando os automóveis na eira transformada em parque. A casa estava festivamente iluminada e a noite estava amena. Miguel Ângelo estava rodeado do advogado, do secretário e de dois dos seus mais directos colaboradores, gerentes de duas galerias suas. Individualidades cumprimentavam o pintor e elogiavam a casa-galeria agora inaugurada. Na galeria estava exposto em lugar de destaque o quadro que foi motivo do reencontro com o passado, para além de outros quadros que Miguel Ângelo tinha pintado em diferentes fases da sua vida. Quadros de outros pintores de nomeada enchiam outras salas, juntamente com revelações descobertas por Miguel Ângelo, tanto nacionais como estrangeiros. Negociantes de arte e críticos desfilavam perante este manancial de arte.

A vernisage estava a correr acima das suas expectativas e Miguel Ângelo sentir-se-ia totalmente feliz não fosse o acaso dos seus tios terem recentemente falecido, quase simultaneamente, de ataques cardíacos. Recordava-os com saudade, lamentando que não os tivesse ali para partilhar com eles aquele momento. Apesar do que acontecera no passado já distante, Miguel Ângelo perdoou e não guardava qualquer rancor. A vida apesar de tudo reservou-lhe momentos de extrema felicidade, compensando-o de algum modo dos infortúnios que ela mesma provocara. Lamentava o facto de não ter ninguém da família para continuar a sua obra, cada vez mais enriquecida.

A festa continuava muito animada e altas individualidades do mundo da política, das finanças e das artes chegavam a todo o momento, cumprimentavam e felicitavam Miguel Ângelo por aquele belo local e pela sua carreira de artista plástico.

Chegou-se à altura dos inevitáveis discursos, e no palco improvisado ouviu-se primeiramente o vereador da cultura da Câmara Municipal a traçar rasgados elogios ao autor daquela obra que ia proporcionar uma mais-valia para a cidade, depois um negociante de arte, de origem americana, a fazer uma exuberante declaração sobre as qualidades de galerista e homem de negócios que era o elogiado, e, por fim, o Secretário de Estado da Cultura fez um discurso muito curto e muito político. Por fim emocionado. Miguel Ângelo agradece os elogios de que foi alvo e a presença de todos.

Os convidados iam abandonando o local. Miguel Ângelo assistia aos empregados a efectuarem as limpezas das mesas, acompanhado dos seus fiéis colaboradores, alguns que nunca o tinham deixado, outros mais recentes, apesar de tudo isto e das manifestações de afecto de que fora alvo, Miguel Ângelo sentiu-se só.

Momentos antes e ainda no decorrer do convívio, convidou alguns a ficarem na casa naquele fim-de-semana, mas por afazeres profissionais ou porque não estavam mesmos dispostos, muito elegantemente os convites foram declinados.

A melancolia que se tinha instalado há uns tempos a esta parte tinha-se vindo a adensar. O médico receitou-lhe uns antidepressivos, mas estava a ser insuficiente.

Deslocou-se para o seu atelier, um novo quadro andava a preencher a sua mente de um modo obsessivo, talvez fosse essa a razão do seu mal-estar. Tinha feito os seus primeiros esboços, mas a obra não saía. Sentia que o quadro, como aquele que veio a desvendar a sua infância e a razão da sua paralisia, tinha um significado especial.

Como por mágica, o momento inspirador surgiu. Miguel Ângelo deslocou a sua cadeira de rodas para junto do cavalete e a obra arrebatadoramente surgiu. Era de novo um motivo campestre. Uma eira cheia de espigas e mulheres batiam com malhos ou manguais no cereal. Uma jovem sentada na beira de um carro de bois mostrava a uma criança uma espiga de milho-rei. O cenário estava a ser pintado com umas cores quentes de Outono e dava um ar festivo ao desenrolar ao acto campestre. Miguel Ângelo sentia-se feliz apesar de o quadro em termos artísticos mesmo comerciais pudesse não vir a ter grande relevância, mas sentia que aquele quadro significava muito para ele, apesar de não ainda não saber ainda exactamente o quê.

Carolina, a sua fiel empregada que veio substituir, de certo modo, a sua saudosa tia nas tarefas mais importantes, veio-lhe comunicar que se encontrava na sala uma senhora acompanhada de um jovem que queria falar com ele.

– Quem são? Identificaram-se? – perguntou

– Não. Não quiseram dizer os nomes – respondeu Carolina

“Nem era preciso”, pensou Miguel Ângelo.

Miguel Ângelo sai do atelier radiante de alegria como há muito Carolina não o via.

Na sala encontrava-se Júlia acompanhada de seu filho.

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