Desde muito novo que Ângelo gostava
de tatuagens. Era vê-lo maravilhado, principalmente no tempo de verão, quando
nas praias via aqueles corpos brilhantes, tatuados, com imagens, desenhos,
traços e cores, preenchendo, por vezes, grandes partes do corpo dos jovens. Foram
diversas as vezes que Ângelo pediu aos pais que o deixassem fazer uma pequena,
mesmo muito pequena, tatuagem num dos braços. Os pais, principalmente o pai,
indivíduo de outros tempos, não aceitava, de modo algum, aquelas modernices.
Contudo, quando Ângelo fez 18 anos,
sentiu-se emancipado para fazer da vida aquilo que entendia, e, ao arrepio das
ordens paternais, foi a uma casa de tatuagens fazer a sua primeira tatuagem. No
momento, a tatuagem desejada era a de um corvo de asas abertas e olho amarelo
atento, que abrangia quase as duas omoplatas. O tatuador nunca tinha feito tal
obra, mas aplicou o melhor do seu saber e técnica e fez uma obra que satisfez
Ângelo. Em casa, reduziu-se ao silêncio, sabendo quais as reações que adivinhava
por este gesto irreverente. Foi para o quarto e, utilizando dois espelhos,
admirou a obra do seu tatuador. Mas, “não há bela sem senão”, e Ângelo começou
a sentir que algo de estranho se passava com o “seu corvo”. O animal não se
acomodava quando espartilhado entre a roupa do seu dono. Ângelo sentia que a
tatuagem se queria desprender do seu corpo. Foi falar com o tatuador, que
verificou que havia partes da tatuagem que estavam levantadas, parecia que se
queria libertar. O artista nunca tinha visto tal coisa e fez umas reparações.
Contudo, de regresso a casa, a situação piorou. Foi para o quarto e pôs-se em
tronco nu. Já não aguentava com os movimentos do “seu corvo”, que parecia
querer soltar-se daquele cativeiro corporal. Assim, e perante o espanto de
Ângelo, o “seu corvo” saiu das suas costas, e, crocitando, vivo, pousou no cimo
do guarda-roupa. Ângelo nem queria acreditar no que via. O corvo agitou as
asas, voou pelo quarto e, aproveitando o facto de a janela estar aberta, saiu
num voo libertador. Ângelo fechou-se num silêncio conventual. Esperava, todos
os dias ao crepúsculo, pela volta do animal. Este obrigava o dono a deitar-se
de dorso nu sobre a cama e plasmava-se numa tatuagem perfeita e, deste modo, o
dia findava. Durante o dia não lhe punha olho em cima. O que ele fazia e por
onde andava era um mistério que aos poucos se foi desvendando. Todos os dias,
em cima da mesinha-de-cabeceira, apareciam peças de ouro, cuja proveniência
Ângelo desconhecia. Um dia, num dos seus regressos, o corvo trazia no bico uma
pulseira de ouro, que depositou no local do costume. É conhecida a atração dos
corvos pelo ouro. Ângelo ficou em pânico, como iria justificar a posse do ouro.
Não o podia entregar à polícia, seria muito complicado. Lembrou-se de deitar as
peças nas caixas do correio do prédio, os condóminos não iriam ficar com o ouro
e o mais certo seria entregarem-no ao seu legítimo dono, por um processo que
ele nem queria saber. A verdade é que, semeadas as peças pelas caixas, curiosamente,
ninguém fez referência ao insólito acontecimento, cada um guardou a sua peça
como se de uma oferta se tratasse. Mas no bairro começou a constar que umas
“mãos leves” amigas do alheio andavam a visitar os prédios do bairro, e
procuravam exclusivamente ouro, nada mais. Ângelo tinha que resolver o problema
urgentemente antes que o incriminassem como coautor dos roubos, se um dia
vissem o corvo a entrar no seu quarto portador de uma peça de ouro no bico.
Combinou com o tatuador ir ao seu atelier,
pela calada da noite, efetuar uma alteração na tatuagem original. Pensada a
estratégia, Ângelo levantou-se de noite, lentamente, para não acordar o
“corvo”, vestiu uma simples camisa e saiu de casa no maior dos silêncios. O
tatuador já o aguardava. Ângelo explicou o que pretendia fazer. Queria que lhe
retirasse o corvo e lhe tatuasse um Cristo pregado na cruz, aproveitando o
máximo possível os traços do desenho anterior. Antes de começar as operações,
pediu ao tatuador que lhe injetasse nas costas uma anestesia que trazia
consigo. Argumentou que a tatuagem da última vez foi dolorosa. A razão, porém,
era para não acordar o “corvo”. A tatuagem foi muito demorada, mas resultou em
pleno. Um Cristo, um pouco estilizado, numa cruz onde outrora estava pousado um
corvo. O tatuador, curioso, perguntou-lhe a razão de tal atitude, de gostos
muito diferentes. Ângelo riu-se e justificou, enigmaticamente:
- É que se “Este” sair da cruz das
minhas costas, o que não era a primeira vez, eu sei que “Ele” nunca mais
voltará, e se fizer coisas, decerto que serão boas ações.