segunda-feira, 7 de abril de 2014

O Desvendador de Célio Passos.


Nos recônditos de um vale profundo, onde o sol mal entra, existe uma pequena aldeia minhota. Um punhado de homens e mulheres, talvez trinta pessoas, resiste tenazmente à inevitável passagem do tempo. O lugar só se agita no verão com a vinda dos parentes da estranja ou quando um parente, ainda vivendo em terras lusitanas, lembra-se de matar saudades.
Cosme é ferreiro de nome e profissão. Como os tempos são outros, também se dedica a fazer uns biscates de outras artes: pichelaria, marcenaria e até de vedor. É um homem robusto, boa figura, de fibra, apesar dos seus 65 anos, mas tem um olhar desvendador, penetrante, incomodativo. Por isso, os seus conterrâneos apelidam-no de «bruxo». O «diacho do home» adivinha o que estamos a pensar, comentava D. Vitórinha, uma fidalga, carinhosamente assim chamada, que herdou dos pais a casa da aldeia, solarenga, em estado adiantado de degradação. A nobre, que já tinha vivido melhores dias e, agora, em que os pergaminhos se foram ribeira abaixo, acomodou-se a lidar com aquela gente, rude, mas sã. Cosme não faz alarde desse seu poder de adivinhar o que as pessoas pensam, diz ter herdado este dom da sua bisavó que dizia ser vidente. Depois dos 60 anos, diz ter atingindo a “perfeição”. Situações, e foram muitas, em que Cosme, pelo seu poder, descobriu segredos, desejos inconfessáveis, hipocrisias, mentiras, invejas, traições, mas também atos nobres e amizades sinceras. Solteirão inveterado, o seu dom deu para tirar partido das fraquezas da carne das vizinhas. Uma das últimas situações, deveras comprometedora, foi quando D. Ermelinda, viúva de longa duração, muito respeitada, que, ao passar pela forja do Cosme e ao cumprimentá-lo e olhá-lo, veio-lhe um pensamento: “ Se fosse mais nova, bem passava umas horas com o raio do homem.” Cosme deslindou o pensamento e de imediato respondeu:
 - D. Ermelinda, apesar de já não ser novo, ainda sou um homem por inteiro.
D. Ermelinda ficou vermelha como um tomate, deitou os olhos nas pedras da calçada e tão cedo não apareceu por aqueles lados. Cosme guardava um segredo. Constava que, em local bem recatado, tinha um cofre cheio de libras e moedas em ouro. Como não tinha outros haveres relevantes, dizia que era a herança que deixava ao filho que trabalhava em França. Certo dia, teve a visita, inesperada, do sobrinho Arturzinho, que vivia numa cidade costeira e cuja reputação não era das mais brilhantes. O sobrinho, sabendo dos poderes do tio, usava sempre, como precaução,
óculos escuros. Dizia que estava com saudades da terra. Cosme não acreditou. Mas, tantas vezes o cântaro vai à fonte..., que um dia apanhou Arturzinho desprevenido, sem óculos, olhou-o nos olhos e, a razão da visita, deslindou-se: “Aonde é que o velho terá escondido o cofre?” Cosme não se mostrou surpreendido, sabendo as dificuldades e enrascadas em que Arturzinho andava sempre metido. Não mudou o sítio do cofre, mas fez uma mudança no seu conteúdo. Encheu uma saca com as libras e as moedas de ouro e foi enterrá-la longe de casa, junto a um castanheiro centenário. Aproveitando uma rara saída noturna do tio e quando o silêncio se abateu sobre a casa, Arturzinho começou a investigação. Foi direto a alguns dos lugares secretos que sabia, por ter visto o tio utilizá-los. A pedra que se deslocava junto à lareira; a tábua do soalho da sala que estava meia solta, ou o buraco na parede por detrás do relógio. E foi logo à primeira. O famigerado cofre estava na tal pedra que se deslocava junto à lareira. A excitação de Arturzinho era enorme. A desilusão foi do mesmo tamanho: só cartas antigas, recortes de jornais, cartas de jogar, algumas moedas do tempo dos reis e um pião que se lembrava ter brincado com ele. Frustrado, arrumou tudo no mesmo sítio, não se despediu do tio e, pela calada da noite, abandonou a casa.     
Cosme andava triste. Não tinha vida própria. Passava os dias a desvendar pensamentos, alheios, da gente da terra, e a ligar aos acontecimentos ao quotidiano, a intrometer-se, involuntariamente, em assuntos que não lhe diziam respeito. Sabia de coisas graves, mas como não era autoridade não podia atuar. O sofrimento começou a consumi-lo. Decidiu não sair de casa, não ir à tasca do Manel, passava pouco tempo na forja, recusou serviços, nem à missa ia. As pessoas da vila estranharam esta atitude, mas até ficaram satisfeitas, andavam mais sossegadas. Decidiu ir falar ao convento de frades existente lá do outro lado da serra. Pediu-lhes se podia tomar conta da horta e do jardim em troca de alojamento e comida, para remissão dos seus pecados. Foi aceite. Cosme não ficou preocupado com os seus dons, porque os pensamentos dos frades, de certeza, eram todos virados para o espiritual e para o divino. Afinal, descobriu que não era bem assim. 

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