terça-feira, 15 de outubro de 2013

Só, numa estrada só sua de Cristina Barbosa.


Adelaide convencia-se cada vez mais que a vida era feita de pequenos nadas. Coisas nas quais nem sempre reparava, mas que, sabia, faziam sentido. Teve a certeza disso enquanto se dirigia para o consultório médico.
Estava sentada à espera, há minutos, numa sala que era ponto de encontro de alívios, para uns, e de dramas e angústia, para outros. Para uns, “esteja tranquilo, que não morre disto”. Outros tinham menos sorte. Descansar e sobreviver eram coisas bem diferentes, separadas por uma grande distância. Qualquer resultado que ali fosse transmitido aos pacientes não era necessariamente sinónimo de vida ou de morte. De medo, apenas. E receio. Incerteza também.
De repente, a sala fora-se despindo de pessoas. Só restava ela. Ela e o recepcionista. A televisão interrompia um silêncio algo incómodo. Ela temerosa. Ele imaginava a mágoa dela. Não se preocupava muito, contudo. O seu trabalho, pensava ele, não era consolar ninguém. Não havia, por isso, olhares constantes de compreensão, de apoio. Alguns sorrisos, apenas. E indiferença fingida. Os problemas dos outros não eram os seus problemas. Também ninguém lhe perguntava se estava bem e, tantas vezes, precisava de sentir alguma preocupação, verdadeira preocupação, da parte daqueles que se cruzavam consigo diariamente.
O homem pôs a televisão um pouco mais alto. O silêncio incomodava-o também, afligia-o. Já lhe bastava em casa. Um silêncio de consentimento, que era mais aprovação sem discussão. E, do pouco que passava em casa, havia sempre mil e uma ocupações a desviar a sua atenção dela. Quase pareciam incomunicáveis. Havia entre eles metros e metros de coisas por dizer. Pareciam viver, frequentemente, dias em que o mundo lhes virava as costas. Nada diziam, nada perguntavam, nada parecia ter importância.
Adelaide, inquieta, levantara-se, entretanto. Olhava, pela janela, o jardim ali perto. Aquele que, dizia com frequência, era o jardim mais bonito que conhecia. Mesmo a caminho do Verão, uma chuva miudinha caía de um céu cinzento. Lá fora, a vida parecia continuar. Na rua, meia dúzia de pessoas apanhadas de surpresa pelo tempo menos simpático apressavam o passo, outras cobriam a cabeça com o capuz, outras não revelavam qualquer incómodo.
O telemóvel tocou, de novo. Adelaide ignorou a chamada, como fizera minutos antes. Depois desligou-o, por fim. A paciente anterior saiu do consultório. Ela avançou timidamente, a medo. Aquele momento era, na verdade, um pedaço de memória que se atravessava na sua vida. Um pedaço de memória que era sinónimo de tristeza. De medo também.
– Olhe, desculpe.
Face à ausência de resposta, a mulher, Matilde, chamou-o, de novo:
– Desculpe, senhor. Tenho consulta marcada, mas atrasei-me um pouco.
O recepcionista disse que não havia problema e sorriu; depois preencheu uma série de dados na ficha de Matilde.
A paciente anterior tinha já saído. Adelaide, até então última paciente do dia, tinha já entrado. Naquele momento, o médico dizia-lhe que os resultados não eram, de todo, animadores. Ninguém sabia que ali estava. Ninguém – familiares ou amigos – desconfiava dos seus medos e receios. Ninguém sabia que temia pela vida. Decidida, não queria fazer ninguém sofrer por antecipação.

Se tudo corresse bem, a uma distância segura, contar-lhes-ia, tudo. Para já, sofria ela, unicamente. Só.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Fuga de Célio Passos.


«Esta madrugada, na estrada nacional junto à Urbanização Sol Nascente, foi encontrado sem vida o empresário Almiro Norte Sobrado. O conhecido empresário do ramo de transportes da construção civil e vereador da câmara municipal foi encontrado sem vida pelo pessoal da ambulância da emergência médica que passava naquele local. O delegado de saúde que se deslocou ao local disse ao nosso jornal que a morte teria ocorrido entre as 2 e as 3 da madrugada, sendo a causa da mesma um traumatismo craniano, por ter embatido, violentamente, com a cabeça na berma do passeio. Era evidente que se tratava de um atropelamento com fuga do condutor. O caso está entregue à polícia», lia-se na primeira página do jornal da vila A Nossa Terra.
Cassiano Fortes dobrou o jornal e bebeu o café que o empregado colocara à sua frente. Estava nervoso e apreensivo. Na noite anterior tinha bebido um pouco demais, no jantar que realizou com o pessoal da sua firma, para aumentar a auto-estima dos seus colaboradores, depois de um ano que não tinha corrido conforme os seus desejos. Um dos seus empregados, vendo o estado eufórico do patrão, ofereceu-se para levá-lo a casa, mas este recusou, dizendo que estava em condições de conduzir. Meteu-se no seu BMW azul-escuro, e rumou em direcção à sua moradia, numa urbanização uns quilómetros à frente da Urbanização Sol Nascente.
Como já era tarde e não havia trânsito, conduzia demasiado depressa. O álcool tomara conta da condução. A zona era pouco iluminada e o BMW ia com os faróis nos mínimos. Por entre os carros estacionados, alguém atravessou a estrada. Talvez apanhado desprevenido ou por distracção, não se apercebeu de um carro que se aproximava a alta velocidade. Cassiano travou, com violência, a destempo. A reacção ao imprevisto, devido ao excesso de álcool ingerido, foi lenta, deixando marcada no asfalto a borracha dos pneus. O peão não teve tempo para recuar, bateu mesmo na frente do carro, sendo projectado por cima da capota, e saiu pelo lado esquerdo, voando até bater no passeio. Cassiano parou o veículo, saiu do BMW, aproximou-se do atropelado e verificou que este sangrava abundantemente da cabeça e saía sangue pelos ouvidos. Deslocou um pouco o corpo para verificar melhor o estado da vítima, e viu que se tratava de Almiro Sobrado, seu concorrente industrial e adversário político na câmara. Não se via vivalma, o trânsito era inexistente. Almiro já não se mexia e Cassiano ficou petrificado. O pânico tomou-o de assalto. Correu para o carro, colocou o veículo em marcha e fugiu. Não seguiu para casa, deixou o BMW frente à firma, num lugar meio esconso, e foi levantar um jipe. Seguiu para casa por outra estrada. Sentimentos contraditórios afloravam-lhe o espírito. Uma morte é sempre de lamentar, mas ele não teve culpa, o Almiro não tinha tomado as devidas precauções. Não gostava dele, mas nunca desejou a sua morte, para mais nestas condições. Reconhecia-lhe qualidades como empresário, como político deixava muito a desejar. Apesar de ser um colega da concorrência, reconheceu que a sua morte facilitaria a sua vida profissional, bem como a sua vida na câmara. Era o lado negro do seu ser a aflorar. Abanou a cabeça como para afastar pensamentos tão perversos.  
Na morgue e depois da autópsia, a polícia começou a averiguar. Um elemento encontrado num dos sapatos do cadáver foi um bocado de tinta azul-escura, arrancada provavelmente do veículo, aquando do embate, porque testemunhas visuais não existiam. A polícia pôs-se em campo fazendo o levantamento de automóveis de cor azul existentes na vila e encarando a hipótese de o condutor viver na vila, o que podia não acontecer.
Sete foram os automóveis identificados. A polícia começou a fazer as suas diligências. Seis dos proprietários dos automóveis tinham álibi, e, verificados os veículos, nenhum apresentava qualquer amassadela que pudesse tido provocado um atropelamento com as características do caso em apreço. Faltava verificar um veículo. Na lista da polícia, faltava peritar o automóvel do Sr. Cassiano Fortes. Prevendo que tal viesse a acontecer, Cassiano, no dia seguinte após o acidente, ainda o sol mal tinha aparecido no horizonte, foi buscar o BMW e deslocou-se ao stand na cidade, distante da vila trinta quilómetros, onde comprara recentemente o BMW. Alegando que tinha atropelado um animal junto à sua moradia, solicitou que lhe reparassem, na hora, os estragos. Como bom cliente que era, substituíram as partes amolgadas por novas, restituindo ao BMW o aspecto como saindo daquele momento do stand. Sendo um alvo preferencial da polícia, por saberem que os dois tinham motivos de sobra para desejar o mal um do outro, aprofundaram mais a investigação e foram interrogar os empregados que na noite anterior tinham jantado com ele, para saberem em que veículo se deslocara para o jantar. Nenhum dos empregados conseguiu responder, porque o patrão foi o último a chegar e o primeiro a sair. Podia ter sido o BMW ou um jipe que utilizava a maior parte das vezes. O único aspecto relevante, dito por vários dos seus funcionários, era que o patrão, contra o costume, só apareceu no dia seguinte na firma, já a meio da tarde. A polícia, ao peritar o BMW de Cassiano, não encontrou indício nenhum que o incriminasse e, como continuava com suspeitas, o processo ficou a aguardar melhor prova.

Cassiano passava os dias no gabinete, o que não era normal. Os empregados estranhavam a apatia do patrão. Saía da firma e ia directo para casa. Quando algo corria mal nos transportes, não resmungava nem queria saber a razão do serviço ter sido mal efectuado. Um dos camiões teve um acidente e ficou bastante danificado, foi como nada se tivesse passado. Em casa não falava, só se fosse forçado a tal. Faltou à sessão da câmara. A sua consciência balouçava. Sabia que um atropelamento com fuga era considerado crime, mas, por outro lado, foi involuntário o que aconteceu. Faltava saber se as autoridades acreditavam nele. Nunca era tarde para assumir responsabilidades. Dirigiu-se à GNR da vila, estacionou o automóvel do outro lado da rua e ficou a olhar para o posto. Ponderou as vantagens e desvantagens do passo que ia dar. Por um lado, sem concorrência, os seus negócios iam melhorar consideravelmente e na câmara era mais um vereador que deixava de incomodar; por outro, sentia a consciência pesada por não assumir o atropelamento, apesar de não ter culpa nenhuma. Começou a suar abundantemente e no peito uma dor começou a incomodar. Teve uma tontura, fechou os olhos. Um guarda que estava à porta viu-o a chegar e estranhou o facto de Cassiano estar imóvel dentro do carro já há bastante tempo. Algo se passava. Avisou o chefe e dirigiu-se ao automóvel. Cassiano estava como adormecido. Quando o guarda abriu a porta, tocou com a mão no ombro de Cassiano e este caiu sobre o volante. Pediu auxílio médico de imediato. Quando chegou a ambulância, foi só para confirmar o óbito. Cassiano tinha tido um ataque cardíaco fulminante.