quinta-feira, 21 de março de 2013

Paulinho co-autoria de Helena João e Maria José Azevedo


Da janela do meu quarto não a consigo ver. A lavandaria fica tapada pela azálea e pelo caramanchão. Consigo ouvi-la a trautear uma canção e sei que estende a roupa, de mangas arregaçadas pelo cotovelo e uma ou duas molas metidas na boca. As suas mãos ásperas, por uma vida inteira na água e tisnadas pelo sol, executam o ritual com a mestria de sempre. Primeiro as meias, cada uma ao lado do seu par, de seguida as cuecas e os soutiens, os guardanapos e panos de cozinha, as calças e saias, as camisolas, t-shirts e pólos e, por fim, as toalhas de mesa, as toalhas de banho e os lençóis. Tudo combina na perfeição, entre e si e com as molas. Como se, acaso a ordem fosse alterada, já não secassem da mesma forma.
Saio do quarto, fechando a porta atrás de mim. Desço as escadas calmamente. Os vinte e um degraus de sempre. Os vinte e um degraus que aprendi a contar, enquanto os subia de dois a dois. Ao fundo dos vinte e um degraus estão as malas. Já lá estão desde ontem. Prontas, fechadas e silenciosas. Contorno-as e sigo pelo corredor. Ignoro-as só por mais um momento. Vou ao seu encontro. Na certa já estendeu a roupa toda.
- Olá avó.
- Olá Paulinho.
É bom chegar aos 45 anos e ainda ser o Paulinho de alguém.
Fui muitas vezes Paulinho.
O Paulinho. Como no primeiro dia de escola. Cheguei à porta da escola pela mão da minha avó. Até ali a minha vida tinha decorrido entre o nosso pátio e o beco, entre o amor da minha avó, as brincadeiras com a rapaziada e o desatino da Pitecas, a nossa cadela coxa. A escola era a etapa incontornável. Atravessei o portão e fui rodeado pelos outros meninos que gritavam o meu nome: «Paulinho! Paulinho!» Foi a primeira vez que dei conta de ser o Paulinho fora de casa. E continuei Paulinho quando a professora me mandou sentar ali à frente, para ver bem para o quadro.
A segunda vez: «Paulinho, Paulinho, não vais passar sem levar uma boa sova, para aprenderes a não destruir os ninhos», disse D. Antónia, a catequista, naquela tarde tão primaveril, entre a recitação da salve-rainha e os pecados capitais. Nunca percebi a correlação entre o diminutivo e a força das palmadas. Afinal de contas, eram apenas ovos dentro do ninho, nem sequer havia passarinhos.
Desde aí, fui Paulinho inúmeras vezes, tantas, tantas, que não guardo especial memória, até hoje, em que ouvi pela milionésima vez o meu nome pronunciado pela minha avó. Mas não era o Paulinho de sempre, havia na sua voz um não-sei-quê de dramático, de triste, de muito triste. «Paulinho», «Paulinho». Pronunciado com tristeza e com um desalento que fazia dó. Palavra chorada. Palavra sem lágrimas. «Paulinho».
A minha avó não sabia ler nem escrever, só sabia trabalhar. Lavava roupa para fora. Dizia ela que era um trabalho limpo. Tinha a mania da ordem e da arrumação e tudo se encontrava nos devidos lugares, numa ordem obsessiva. Para a minha avó, não havia o meio-termo. Era o bem e o mal, o cozido e o cru, o cheio e o vazio. Não havia mais ou menos na sua vida, era sim, ou sopas. Ou era, ou não era. Fazia, ou não fazia, nunca fazia que fazia. Quando tomava uma decisão, estava tomada, não havia retorno. Hoje, engrenou na rotina como se fosse um dia igual aos outros. De diferente, apenas as malas ao fundo das escadas. Melhor dizendo, um pequeno saco e a mala. Uma mala pequena de couro, com fivelas. A mala que a avó tinha trazido da sua terra quando veio para a cidade e que agora ia levar para o lar, para onde nunca tinha querido ir.
- Avó, és feliz?
- Sou. Não. Era, fui. Hoje não. E a partir de hoje, mais não serei. Queres tirar-me da casa onde vivo há mais de 60 anos, onde fui feliz com o teu avô, que Deus o tenha. Queres tirar-me da casa onde fiz o teu pai, que diabos! Já sei que me esqueço das coisas mais do que antes, sei que dão a isso um nome de doença esquisita, mas ainda estou capaz de olhar por mim. Não conheço uma letra do tamanho de um boi, mas sei bem ler o que vai na alma das gentes e tu, meu menino, também não és feliz.
- Sou sim, filhinho. E tu?
A ironia no seu olhar e no tom com que pronunciou a palavra «filhinho» - que só usa em ocasiões de stress - diz-me que me está a mentir descaradamente. Orgulhosa, esta mulher que será sempre incapaz de me dizer o que realmente sente com esta mudança.
Mas tem de ser. Encontrá-la, por acaso, naquela tarde, a vaguear pela rua com ar perdido - «Eu queria ir ao cemitério, Paulinho, pôr flores ao teu avô, Paulinho» - matou-me um bocadinho por dentro. Estava a quase 2 km do cemitério e a caminhar na direcção oposta; onde iria parar, não nos tivéssemos nós cruzado? Portanto, tem de ser.
Vigia constante, ajuda e companhia, coisas que só lhe posso dar desta forma. Tem mesmo de ser.                                                 
-Também avó, também. Estás pronta?
- Estou pronta há 84 anos, Paulinho.
Entrámos no carro e arrancámos.
Eu, Paulo, miseravelmente infeliz e o corpo dela, a pálida sombra do que ontem era a minha avó. Ela, a alma da minha avó, e o Paulinho ficaram junto à azálea, a estender roupa.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Possiblidades de Eliane F. C. Lima


(Conto registrado no Escritório de Direitos Autorais - Rio de Janeiro - Brasil)

Ele se sentava num banco de praça do centro da cidade e olhava para um prédio enorme qualquer. E imaginava um corpo caindo dali. E o povo, que a princípio tinha corrido de susto, ia se aproximando para ver bem visto, curiosidade sádica de ser humano.
A mulher se chamaria Teresa, com certeza. Tinha sido traída pelo marido. A nonagésima vez, provavelmente. Nas outras, choro, gritos, no final, perdão. Para tomar fôlego, deixar o coração se recompor até a próxima. Embora passasse uns meses ainda com raiva, pensando numa vingança bem doída para ele.
A cada novo evento, o desejo aumentava, como dinheiro posto na poupança, crescia um pouquinho de nada, nunca, porém, ficava igual ao que era antes.
Dessa vez, Teresa não teria chorado. Havia passado o apartamento em que moravam e que tinha comprado antes do consórcio com o ingrato para o nome da cunhada, viúva de seu irmão, a quem Abreu não suportava e fizera um monte de desaforos, sem motivo algum, e tinha proibido a visita. Aquela não iria perdoar: sairia despejado sem dó nem piedade.
Tinha, também, raspado todo o dinheiro que tinha no banco, conta só dela, e depositado no nome do irmão de sua empregada, anonimamente, já avisada a outra do fato. Segredo entre os três. Abreu não teria como rastrear a quantia. Haveria de pagar, de seu bolso, o enterro dela.
Na imaginação do homem sentado na praça, Abreu chegaria, o safado. Viria com uma colega de trabalho – aquilo era colega, toda solicita com o susto dele e cheia de intimidade, parecia ter planos pela morte de Teresa?
Polícia, repórter, flashes, Abreu fingiria desespero e choro ao reconhecer o corpo da companheira para os policiais. A multidão, em volta, não perderia um lance, alguns não voltariam hoje de novo ao emprego, muitos retornariam no fim do expediente para conferir, o corpo ainda ali, plástico preto, que levantava com o vento, deixando ver a sandália e o pé bem-feito.
Com certeza, Abreu, iludido, contabilizaria logo a suposta herança. De seu banco de praça, o imaginador sorria, imaginando como o safardana, dali a alguns dias, odiaria Teresa ao descobrir que ela tinha premeditado tudo antes do gesto extremo.
Por enquanto, do banco, os olhos do homem seguiriam aquele nada, que, finalmente, iria em direção ao estacionamento além da esquina, já de mão dada com o outro nada, que, muito rebolativa em seus saltos altos, ousaria gargalhar, relaxada.

Agradeço ao blogue “Ai que chic” (link) a foto ilustrativa acima da Praça Paris, no Rio de Janeiro.