segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Final de Verão de Manuel Vasquez.


No final das férias vem um tempo meio quente e fresco. Em geral sempre me habituei a ver este tempo com alegria. Repousante tempo de fim de Verão.
Em tempos, quando andava na escola, sabia que o fim das férias grandes estava próximo e o cheiro dos cadernos novos, dos lápis de cores, as canetas, a mala, enfim o regresso às carteiras, rever os colegas, aprender e também sofrer.
Hoje, o trabalho, aturar cada chefe que me dá vontade de dizer: “Não tens mais ninguém a quem que chatear.”
Mas quero contar algo deste final de Verão e fim de férias. Estamos no fim de Setembro e o Verão, esse, diz adeus. As noites esfriam, as madrugadas obrigam-nos a puxar a cobertura na cama e a companhia tão boa nos aconchega, enfim.
Ao entardecer, encontram-se amigos e gentes à beira de um porto piscatório que conheço e que encontro prazer ouvindo antigas histórias e contos de pasmar. Será mais que Nau Catrineta, mas na tasca do Zé Pescador bebe --se um copo de vinho branco ou tinto e come-
-se uns tremoços salgados, umas favas salgadas secas, um peixe frito, ou um queijito da cunhada do monte. O Zé, homem do mar, tinha no rosto cores, traços e cicatrizes de quem viu muito: peixe, ondas, mar e terror. Nas suas brancas patilhas, no seu bigode farto e no barrete preto sentia-se que viu tanto e muito mais do que qualquer dos mortais. Sabia que tinha, por diversas vezes, visto a morte sobressair e alguém querido e companheiro partir. Ele sabia de mar, de marés, de peixe, de vento e até de estações do ano, ganhos e perdas.
Um dia, quando ele estava de feição, ouvi-o contar um conto do mar, de antigo pescar, quase me lembrando do Velho e o Mar de Hemingway, pois ele sabia que o mar dava e tirava e com quem conversava numa chata ou num barco de maior ou menor porte.

«Um dia — disse — estava eu e os meus irmãos da faina, redes aprumadas, barco pronto e já em mar solto e largo, quando se levantou uma tempestade. Tempestade daquelas que nem se esquece, mesmo vivo ou morto. A água, as ondas, o vento, o céu cinzento e preto, nem Sol, nem Lua, íamos sofrer, quem sabe?, morrer. Ondas se levantavam, molhados estávamos, mas o que sentíamos era medo, gritávamos por Jesus — «Maria, salva-nos por favor.» Faziam-se promessas, lembravam-se pais, filhos e mulheres, paixões, lágrimas e horror de ir talvez morrer. O barco exigia mestria e o mestre respondia. O motor, esse, ainda nem falhava, mas a força daquele mar, ai que dor Senhor. O mestre mandou atirar tudo pela borda fora — redes, peixe e tudo o mais — mas queríamos viver. Ninguém tinha medo, ninguém tinha receio, mas todos o tínhamos dentro e sofríamos ao saber o que poderia acontecer. Dor, luta, e já tínhamos visto corpos de companheiros e sabíamos o que mais viria. Coletes vestidos, botas tiradas, ai meu Deus, dói-me aqui mesmo no peito. De repente o barco quebrou e afundou-se. Bóias lançadas, tudo gritava: «Vamos, vamos gente, gosto e força, fé e Deus nos deixará sobreviver». A descrição subia de tom e nem se piava nesse dia na Tasca, todos sabíamos que aquilo que estava a deixar tradição, herança e ainda mais era a vida e a morte de alguém.
O nosso prezado amigo, que estava vivo, mas muito sofrido, contou-nos que, entre lágrimas e dor, suspiros e mais, em mar encapelado e sublime, ele e os outros viram a “morte”. Todos na água, todos lívidos e águas revoltas, diziam: «Vão morrer.» Rezava-se com o coração, pedia-se perdão, pedia-se por tudo e por todos, mas a vida ali estava por um fio. O Quim foi abaixo, perdeu os sentidos e todos gritavam: «Força Quim, olha a tua mãe.» Ele, fraco e de carnes magras, foi-se abaixo e perdeu a vida ali mesmo. Silêncio entre ruídos de vento tenebroso. Quim era filho da terra, era órfão de pai morto também no mar, a sua mãe criou-o e a mais cinco filhos. A Dona Miquelina, hoje tão velha, não iria aguentar e nós talvez também iríamos morrer ali, em mar de sonho e terror. Na penumbra da noite, na escuridão assombrada, surgiu uma luz, seria Deus a pedir a nossa presença, o nosso juízo, ou seria a salvação.
Um barco cinzento-escuro, de homens a gritar: «Aguentem, que os vamos socorrer.» Tudo gritava e até o chão que era mar parecia querer nos tragar.
Ai dor, ai sofrer de pescador, dar mais este brindar à vida. A marinha de guerra foi nesse dia a nossa salvação e conseguimos levar o corpo do Quim.
Entre choro e calor da manta e capote, bebida quente, chorávamos e dizíamos: «Arre porra de mar, nossa alegria e morte.»
Que contar mais o que se passou nesse dia na tal tasca? Gerou-se amizade e respeito, chorou-se, bebeu-se à saúde dos vivos e lembrou-se quem morreu. Ser pescador é mais que tirar peixe do mar, é saber, é também sofrer.
Um dia se passarem pela Tasca do Zé, por favor, não digam que a descrição é e será sempre de dor e nada de rancor, mas digo-vos, quando vou comprar peixe, lembro-me que, para além do aspecto do mesmo, se está fresco ou bom, terá por certo homens e mulheres, crianças e velhos com alguma dor.

1 comentário:

Célio Passos disse...

Um belo conto. Fez-me recordar tempos de miúdo quando assistia nas Caxinas, perto da Póvoa de Varzim, a saída do barco de socorros a naúfragos a saír para o mar (um barco enorme, puxado a remos) para tentar resgatar os pescadores. Na praia as mulheres rezavam e faziam promessas. Era e é um drama. Os tempos neste aspeto não mudaram.