No
final das férias vem um tempo meio quente e fresco. Em geral sempre me habituei
a ver este tempo com alegria. Repousante tempo de fim de Verão.
Em
tempos, quando andava na escola, sabia que o fim das férias grandes estava
próximo e o cheiro dos cadernos novos, dos lápis de cores, as canetas, a mala, enfim
o regresso às carteiras, rever os colegas, aprender e também sofrer.
Hoje,
o trabalho, aturar cada chefe que me dá vontade de dizer: “Não tens mais
ninguém a quem que chatear.”
Mas
quero contar algo deste final de Verão e fim de férias. Estamos no fim de
Setembro e o Verão, esse, diz adeus. As noites esfriam, as madrugadas obrigam-nos
a puxar a cobertura na cama e a companhia tão boa nos aconchega, enfim.
Ao
entardecer, encontram-se amigos e gentes à beira de um porto piscatório que
conheço e que encontro prazer ouvindo antigas histórias e contos de pasmar.
Será mais que Nau Catrineta, mas na tasca do Zé Pescador bebe --se um copo de
vinho branco ou tinto e come-
-se
uns tremoços salgados, umas favas salgadas secas, um peixe frito, ou um
queijito da cunhada do monte. O Zé, homem do mar, tinha no rosto cores, traços
e cicatrizes de quem viu muito: peixe, ondas, mar e terror. Nas suas brancas
patilhas, no seu bigode farto e no barrete preto sentia-se que viu tanto e
muito mais do que qualquer dos mortais. Sabia que tinha, por diversas vezes,
visto a morte sobressair e alguém querido e companheiro partir. Ele sabia de
mar, de marés, de peixe, de vento e até de estações do ano, ganhos e perdas.
Um
dia, quando ele estava de feição, ouvi-o contar um conto do mar, de antigo
pescar, quase me lembrando do Velho e o
Mar de Hemingway, pois ele sabia que o mar dava e tirava e com quem
conversava numa chata ou num barco de maior ou menor porte.
«Um
dia — disse — estava eu e os meus irmãos da faina, redes aprumadas, barco
pronto e já em mar solto e largo, quando se levantou uma tempestade. Tempestade
daquelas que nem se esquece, mesmo vivo ou morto. A água, as ondas, o vento, o
céu cinzento e preto, nem Sol, nem Lua, íamos sofrer, quem sabe?, morrer. Ondas
se levantavam, molhados estávamos, mas o que sentíamos era medo, gritávamos por
Jesus — «Maria, salva-nos por favor.» Faziam-se promessas, lembravam-se pais,
filhos e mulheres, paixões, lágrimas e horror de ir talvez morrer. O barco
exigia mestria e o mestre respondia. O motor, esse, ainda nem falhava, mas a
força daquele mar, ai que dor Senhor. O mestre mandou atirar tudo pela borda
fora — redes, peixe e tudo o mais — mas queríamos viver. Ninguém tinha medo,
ninguém tinha receio, mas todos o tínhamos dentro e sofríamos ao saber o que
poderia acontecer. Dor, luta, e já tínhamos visto corpos de companheiros e
sabíamos o que mais viria. Coletes vestidos, botas tiradas, ai meu Deus, dói-me
aqui mesmo no peito. De repente o barco quebrou e afundou-se. Bóias lançadas,
tudo gritava: «Vamos, vamos gente, gosto e força, fé e Deus nos deixará sobreviver».
A descrição subia de tom e nem se piava nesse dia na Tasca, todos sabíamos que
aquilo que estava a deixar tradição, herança e ainda mais era a vida e a morte
de alguém.
O
nosso prezado amigo, que estava vivo, mas muito sofrido, contou-nos que, entre
lágrimas e dor, suspiros e mais, em mar encapelado e sublime, ele e os outros
viram a “morte”. Todos na água, todos lívidos e águas revoltas, diziam: «Vão
morrer.» Rezava-se com o coração, pedia-se perdão, pedia-se por tudo e por
todos, mas a vida ali estava por um fio. O Quim foi abaixo, perdeu os sentidos
e todos gritavam: «Força Quim, olha a tua mãe.» Ele, fraco e de carnes magras,
foi-se abaixo e perdeu a vida ali mesmo. Silêncio entre ruídos de vento
tenebroso. Quim era filho da terra, era órfão de pai morto também no mar, a sua
mãe criou-o e a mais cinco filhos. A Dona Miquelina, hoje tão velha, não iria aguentar
e nós talvez também iríamos morrer ali, em mar de sonho e terror. Na penumbra
da noite, na escuridão assombrada, surgiu uma luz, seria Deus a pedir a nossa
presença, o nosso juízo, ou seria a salvação.
Um
barco cinzento-escuro, de homens a gritar: «Aguentem, que os vamos socorrer.» Tudo
gritava e até o chão que era mar parecia querer nos tragar.
Ai
dor, ai sofrer de pescador, dar mais este brindar à vida. A marinha de guerra
foi nesse dia a nossa salvação e conseguimos levar o corpo do Quim.
Entre
choro e calor da manta e capote, bebida quente, chorávamos e dizíamos: «Arre
porra de mar, nossa alegria e morte.»
Que
contar mais o que se passou nesse dia na tal tasca? Gerou-se amizade e respeito,
chorou-se, bebeu-se à saúde dos vivos e lembrou-se quem morreu. Ser pescador é
mais que tirar peixe do mar, é saber, é também sofrer.
Um dia se passarem pela Tasca do Zé, por favor,
não digam que a descrição é e será sempre de dor e nada de rancor, mas digo-vos,
quando vou comprar peixe, lembro-me que, para além do aspecto do mesmo, se está
fresco ou bom, terá por certo homens e mulheres, crianças e velhos com alguma
dor.
1 comentário:
Um belo conto. Fez-me recordar tempos de miúdo quando assistia nas Caxinas, perto da Póvoa de Varzim, a saída do barco de socorros a naúfragos a saír para o mar (um barco enorme, puxado a remos) para tentar resgatar os pescadores. Na praia as mulheres rezavam e faziam promessas. Era e é um drama. Os tempos neste aspeto não mudaram.
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