sexta-feira, 5 de abril de 2013

Ponteiros desorientados numa manhã de um hoje sem data de Cristina Barbosa


Correu rua abaixo. O autocarro estava atrasado, disse-lhe um velhote sentado na paragem. Esperou de pé. Lembrou-se de ter lido um dia que, para descansar, basta depois de morto. Sorriu ao pensar nisso. Algum sentido fazia, reconheceu. Cansou-se, porém, de esperar. Os minutos sucediam-se uns atrás dos outros. O velhote, por sua vez, olhava-a com atenção, procurando, a todo o custo, lembrar-se de onde a reconhecia.
Decidiu sentar-se, finalmente. O velhote ajeitou-se no banco, para que ela se sentisse bem. As pessoas à sua volta reclamavam, baixinho, o atraso do autocarro. Ela, porém, parecia distanciar-se de toda aquela confusão. Tivesse paciência e reclamaria também. Afinal, mal dormira de noite e, na verdade, aquele atraso não estava a ser uma boa forma de começar o dia.
O velhote olhou o livro que Carla segurava sobre as pernas. Fingiu interesse, não fosse alguém desconfiar que não sabia ler. Logo ele que – como se gabava – era «um dos tipos mais espertos que as pessoas algum dia poderiam conhecer». Mal sabia que aquele calhamaço mais não era do que um livro de economia que, nem mesmo assim, poderia resgatar o seu país da miséria.
– Olhe lá, ó jovem – disse ele, aproximando-se de Carla. – Pode dizer-me as horas?
– Oito e dez – respondeu ela, olhando-o fugazmente.
– Obrigado – agradeceu ele, desculpando-se logo depois:
– É que me esqueci do relógio.
À volta, maldizia-se ainda o atraso do autocarro, a subida de preços e o encerramento da fábrica lá da zona, que empurrara para o desemprego imensas pessoas. As perspectivas negras de cada dia. E o frio, perante aquele drama negro e de arrepiar, quase nem incomodava, naquela manhã de Novembro.
– Já não sei quem nos há-de valer – desabafou o homem, na direcção de Carla. – Haja saúde ao menos – salvaguardou.
Carla estava sem qualquer vontade de responder ou de iniciar ali uma conversa. Não queria, ainda assim, ser indelicada ou parecer mal-educada. Bem sabia que ninguém tinha culpa da sua má disposição matinal. Invejou, por momentos, a vizinha do andar de cima que, logo pela manhã, quando por ela se cruzava, era já com um belo sorriso no rosto. Em casa, já devia ter vestido os miúdos, feito o pequeno-almoço e deixado roupa a lavar. Teria, por certo, ideia do que seria o almoço. Adiantara, talvez, qualquer coisa. E, depois de tudo isso, saía de casa sorridente. Apesar de correr, atrasada, entre bons-dias apressados.
À frente da paragem, um carro travou inesperadamente. O miúdo, esse, ficou plantado na passadeira. Não sabia se devia recuar, correr, chamar pela mãe. O velhote levantou-se e reclamou contra a falta de prudência na condução. O homem que conduzia fingiu ignorar os gestos impetuosos e desmedidos de algumas pessoas que reclamavam.
– Cambada de idiotas! – berrou o velhote. – Não vêem por onde andam.
O miúdo, assustado, correu para o outro lado da estrada, onde ficava a escola. Se a mãe soubesse o que lhe tinha acontecido, não o deixaria ir para a escola sozinho durante uns bons tempos. E ele que pedira tanto, porque, afinal, já era um rapaz crescido. Desejou que a cena não tivesse sido presenciada por nenhum conhecido. Não tinha sido, de facto.
O autocarro havia tido um acidente, soube-se, entretanto. No escritório, a vizinha de Carla, que todas as manhãs sorria, chorava. Fora, sorrateira, para a casa de banho. Trancara-se lá dentro, depois do aviso que, juntamente com outros trabalhadores, recebera.
Já Carla, cansada de esperar, decidiu fazer o percurso a pé. Quando a viu levantar-se, o velhote pensou perguntar-lhe se era a filha do senhor Jerónimo, o padeiro. Aquela que, dizia-se, estava a estudar para ser economista. Não perguntou. Estava convencido de que era, realmente, ela. Até tinha semelhanças com a mãe, observou ele. Arrependeu-se, porém, de não lhe ter perguntado as horas, que o tempo, esse, passava a correr.

2 comentários:

Eliane F.C.Lima disse...

Muito interessante a perspectiva que a narradora/o narrador escolhe para lançar o conto: à primeira vista, a pessoa leitora se coloca sob o olhar do ancião. Mas logo vê que esse é um olhar multifacetado, que parte de várias personagens, até de um olho socialmente crítico, que vive sua contemporaneidade histórica.
Eliane F.C.Lima (Blogues "Poema Vivo" e "Literatura em vida 2")

Associação António Fragoso disse...

Muito obrigada pela sua leitura atenta e opinião, Eliane! :)
Cristina Barbosa.