Correu rua abaixo. O autocarro estava atrasado, disse-lhe um velhote
sentado na paragem. Esperou de pé. Lembrou-se de ter lido um dia que, para
descansar, basta depois de morto. Sorriu ao pensar nisso. Algum sentido fazia,
reconheceu. Cansou-se, porém, de esperar. Os minutos sucediam-se uns atrás dos
outros. O velhote, por sua vez, olhava-a com atenção, procurando, a todo o
custo, lembrar-se de onde a reconhecia.
Decidiu sentar-se, finalmente. O velhote ajeitou-se no banco, para que ela
se sentisse bem. As pessoas à sua volta reclamavam, baixinho, o atraso do
autocarro. Ela, porém, parecia distanciar-se de toda aquela confusão. Tivesse
paciência e reclamaria também. Afinal, mal dormira de noite e, na verdade,
aquele atraso não estava a ser uma boa forma de começar o dia.
O velhote olhou o livro que Carla segurava sobre as pernas. Fingiu
interesse, não fosse alguém desconfiar que não sabia ler. Logo ele que – como
se gabava – era «um dos tipos mais espertos que as pessoas algum dia poderiam
conhecer». Mal sabia que aquele calhamaço mais não era do que um livro de
economia que, nem mesmo assim, poderia resgatar o seu país da miséria.
– Olhe lá, ó jovem – disse ele, aproximando-se de Carla. – Pode dizer-me as
horas?
– Oito e dez – respondeu ela, olhando-o fugazmente.
– Obrigado – agradeceu ele, desculpando-se logo depois:
– É que me esqueci do relógio.
À volta, maldizia-se ainda o atraso do autocarro, a subida de preços e o
encerramento da fábrica lá da zona, que empurrara para o desemprego imensas
pessoas. As perspectivas negras de cada dia. E o frio, perante aquele drama
negro e de arrepiar, quase nem incomodava, naquela manhã de Novembro.
– Já não sei quem nos há-de valer – desabafou o homem, na direcção de
Carla. – Haja saúde ao menos – salvaguardou.
Carla estava sem qualquer vontade de responder ou de iniciar ali uma
conversa. Não queria, ainda assim, ser indelicada ou parecer mal-educada. Bem
sabia que ninguém tinha culpa da sua má disposição matinal. Invejou, por
momentos, a vizinha do andar de cima que, logo pela manhã, quando por ela se
cruzava, era já com um belo sorriso no rosto. Em casa, já devia ter vestido os
miúdos, feito o pequeno-almoço e deixado roupa a lavar. Teria, por certo, ideia
do que seria o almoço. Adiantara, talvez, qualquer coisa. E, depois de tudo
isso, saía de casa sorridente. Apesar de correr, atrasada, entre bons-dias apressados.
À frente da paragem, um carro travou inesperadamente. O miúdo, esse, ficou
plantado na passadeira. Não sabia se devia recuar, correr, chamar pela mãe. O
velhote levantou-se e reclamou contra a falta de prudência na condução. O homem
que conduzia fingiu ignorar os gestos impetuosos e desmedidos de algumas
pessoas que reclamavam.
– Cambada de idiotas! – berrou o velhote. – Não vêem por onde andam.
O miúdo, assustado, correu para o outro lado da estrada, onde ficava a
escola. Se a mãe soubesse o que lhe tinha acontecido, não o deixaria ir para a
escola sozinho durante uns bons tempos. E ele que pedira tanto, porque, afinal,
já era um rapaz crescido. Desejou que a cena não tivesse sido presenciada por
nenhum conhecido. Não tinha sido, de facto.
O autocarro havia tido um acidente, soube-se, entretanto. No escritório, a
vizinha de Carla, que todas as manhãs sorria, chorava. Fora, sorrateira, para a
casa de banho. Trancara-se lá dentro, depois do aviso que, juntamente com
outros trabalhadores, recebera.
Já Carla, cansada de esperar, decidiu fazer o percurso a pé. Quando a viu
levantar-se, o velhote pensou perguntar-lhe se era a filha do senhor Jerónimo,
o padeiro. Aquela que, dizia-se, estava a estudar para ser economista. Não
perguntou. Estava convencido de que era, realmente, ela. Até tinha semelhanças
com a mãe, observou ele. Arrependeu-se, porém, de não lhe ter perguntado as
horas, que o tempo, esse, passava a correr.
2 comentários:
Muito interessante a perspectiva que a narradora/o narrador escolhe para lançar o conto: à primeira vista, a pessoa leitora se coloca sob o olhar do ancião. Mas logo vê que esse é um olhar multifacetado, que parte de várias personagens, até de um olho socialmente crítico, que vive sua contemporaneidade histórica.
Eliane F.C.Lima (Blogues "Poema Vivo" e "Literatura em vida 2")
Muito obrigada pela sua leitura atenta e opinião, Eliane! :)
Cristina Barbosa.
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