Conto dedicado a meu amigo José Andrade Lobo, do outro
lado do oceano Atlântico.
Era um homem quieto. Uns olhos observadores e miúdos,
guardando para si o que viam; os lábios finos, quase dois traços naquele rosto
sereno; as orelhas ligeiramente grandes, testemunhas acabadas de um ser sem
alarde. Apesar de tudo, não era feio, o todo uma harmonia das partes
irregulares.
Coisa alguma denunciava o grande respeito que sua
mulher e suas três filhas tinham por ele. Muito o amavam, as quatro.
Era ourives. Em um quartinho dos fundos da casa, não
fabricava joias, criava obras-primas, Miguel Ângelo do subúrbio: era um gênio,
coisa de deslumbrar críticos de arte, se a humanidade conhecesse o trabalho e
seu autor.
Só poucas pessoas avaliavam-lhe o valor: a família e
um dono de uma rede de joalherias, sofisticadíssimas, que vendia suas peças. Os
clientes milionários não tinham a menor ideia de onde vinham e só a cadeia de
lojas recebia as loas das revistas especializadas. Não foram poucos os prêmios
que algumas de suas peças receberam.
De nada ele soube. E a parte que recebia dava para
manter a família, com decência, é verdade, mas sem um excedente para um futuro
mais promissor.
O que lhe enchia o coração, sorriso muito econômico,
eram os louvores das suas mulheres: “Ele não deveria vender aquela, pelo menos
aquela não.” E isso sempre dito a cada nova peça. Ele admirava de todos os
ângulos e reprimindo a alma a transbordar de felicidade e orgulho, dizia,
laconicamente, que precisavam comer.
A relação entre o ourives e o, agora, seu único
comprador fora bastante ocasional, quando ainda fazia suas peças por encomenda.
Tendo ido ao fornecedor de matéria-prima, dono de um
pequeno negócio, lá encontrou o rico negociante, amigo do outro de velhos
tempos. O dono da lojinha contou que o desconhecido era ourives... e dos bons!
O visitante ilustre guardou o endereço escrito a lápis em um pedaço de papel.
Um dia, apareceu no distante bairro. Viu as joias, deslumbrado, mas não deixou
transparecer sua emoção. Como se fizesse um favor, comprou-as, dizendo tentar
“passar adiante”. Encomendou outras e, dali para a frente, o ourives só vendeu
para ele.
A mulher do ourives, desconfiada, dizia-lhe que devia
procurar saber quem era aquele comprador. Embora de táxi e vestido de maneira
bem discreta, não escapava aos olhos perscrutadores da observadora senhora a
elegância que emanava dele. Com os anos, ele já quase se tornara um velho
conhecido, mas ela ainda mantinha uma dúvida na alma.
Um dia, saiu antes da rotineira visita e ficou
esperando, perto de um ponto de táxi. Quando o veículo do negociante passou,
ela mandou segui-lo. Boca aberta, viu, no bairro seguinte, o homem saltar e
entrar em um carro particular com motorista e tudo. Sem pensar na despesa,
mandou o outro atrás.
Pagou com o coração apertado. Com muita timidez,
entrou na loja. Uma vendedora se aproximou dela e a mulher desconfiou que era
para barrar sua passagem. Agradeceu e disse só pretender olhar um pouco. Um
segurança ficou de longe a observá-la e, discretamente, ia seguindo seus
passos.
Em uma vitrine especial, as joias de seu marido. Sobre
o vidro imaculado, várias revistas abertas, em destaque, exibiam as fotos das
peças, mas era outro o nome que estava lá.
Quis gritar que sabia quem criava aquelas maravilhas,
o artista, o ser iluminado por Deus, toda exaltada. E o sofrimento escorreu
pelo rosto abaixo.
Foi embora, tropeçando pela calçada, soluçando sem
pudor pela rua, até conseguir perguntar a alguém por um ponto de ônibus.
Ao chegar a casa, encontrou o marido sentado diante da
televisão, o pijama tão limpinho quanto aquela alma singela, que não tinha o
direito de profanar. E temeu apagar de dentro dele aquele algo que ela não
sabia de onde vinha e que criava o divino. Aquelas orelhas tão amadas não
tinham sido feitas para ouvir as terríveis coisas humanas.
E se calou. Dali para a frente, trancava-se no quarto,
quando o joalheiro vinha, chorando muito, revoltada por não poder falar.
Até que um dia o marido, discretamente como viveu, se
foi. Não fosse pela presença das filhas, o imenso vazio não seria suportável.
Trancou a porta da oficina e escondeu a chave. No
velório, pensou que agora a fonte estava seca. A quem o outro iria espoliar? E,
para surpresa de todos que sabiam o quanto ela amava o marido, ela não chorou.
No dia seguinte, com a alma vestida de negro, entrou
no mundinho do ourives. Sobre a mesa, a obra em que ele trabalhava justamente
no momento do infarto. A seu lado, um caderno de desenho desconhecido. Abriu-o.
E descobriu um marido ignorado: em cada página, um desenho, feito a grafite,
magnífico, de mulher nua: era seu rosto, seus seios, seu sexo, a se contorcer
de amor. E, embaixo de cada nova posição sensual, o esboço de cada obra que ele
fizera, até a última, inacabada. Em um delírio de criação quase poética,
metamorfose do gênio, do desenho a joia surgia, como um presente a ela.
Com o peito a latejar de orgulho dele, saiu do cômodo,
trancando tudo que estava lá dentro, inclusive as joias, ritualisticamente,
como faziam os súditos aos túmulos dos faraós.
E esperou, ansiosa e deliciada, agora que o marido não
podia ouvi-la, a próxima visita do joalheiro.
(Agradeço ao site “Moacir joias” ( http://moacirjoias.com.br/blog/?p=701) –
Brasil – a foto que ilustra este conto).
Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais – Rio de Janeiro – Brasil),
2 comentários:
Eliane quero agradecer a dedicatória. O Conto, como disse,da outra vez, curiosamente foi falar na minha atividade quando estava a trabalhar, sabendo eu que a Eliane não sabia qual tinha sido a minha profissão,não exatamente esta a que se refere, mas que tem ligação.
Sinto muito prazer que esteja entre nós. O Oceano Atlântico afinal não é assim tão grande.
Aquele abraço
Lindo... Parabéns !
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