quarta-feira, 21 de março de 2012

Nem às paredes confesso de António Alvarez

Capítulo I – A outra margem

O tempo estava frio e ali parado, no cais daquela velha estação de comboios, sentia o corpo ainda mais arrepiado. Bem puxava a gola do velho sobretudo para cobrir a face, mas a aragem que corria penetrava por todo o seu corpo causando-lhe desconforto. Naquele corpo magro o sobretudo baloiçava à menor aragem e dava-lhe um ar caricato, quase de “espantalho”. É verdade que já lhe chegara às mãos depois de muitos invernos passados noutras costas, mas era o único agasalho que tinha para dias como este.
Enquanto andara para a frente e para trás calcorreando o cais, parecia não estar assim tão desagradável. Mas agora que parara sentia mais o frio. Tirou uma das mãos do bolso e olhou o relógio. Marcava 7,26h, mais dois minutos que o velho relógio da estação. Bateu com os pés uma vez mais para aquecê-los epuxou de um cigarro para ajudar a passar o tempo. O comboio partiria às 7,40h. Ainda pensou em ir beber mais uma bica mas hesitou, calculando que com isso se poderia atrasar e deixar passar o comboio. Não é que o tempo de beber um café fosse assim tanto, mas, sei lá, poderia estar muita gente e depois não ter tempo de pagar. E de maneira nenhuma queria passar por “caloteiro”. Isso não!
- Bom dia! Por acaso o senhor tem lume? – rodou a cabeça para o seu lado esquerdo e deparou-se com um rapaz ainda jovem, de farta cabeleira, e com uns óculos redondos de aros cor de tartaruga na cara.
- Sim! – e passou-lhe o isqueiro para as mãos.
- Obrigadinho! – disse-lhe o jovem afastando-se um pouco mais do local onde ele se encontrava.
Olhou para o lado do castelo e observou as ruínas da “Torre da Má-Hora” lá ao fundo. Iria vê-la de mais perto quando fosse no comboio. O apito estridente efetuado pelo chefe da estação trouxe-o de novoà realidade.Pegou na mala e aproximou-se mais da beira do cais. A velha composição ronceira vinha-se chegando à velha estação e os poucos passageiros iam-se aproximando mais para o local de embarque. Dali iriam até à Torre da Gadanha, onde apanhariam o comboio vindo de Beja para o Barreiro.
Sentou-se à janela do lado onde veria a vila a ficar para trás. Os bancos não eram muito confortáveis mas a viagem também seria curta até à próxima estação. Traçou a perna e pousou a cabeça na mão, em concha, encostado ao vidro da janela.
- Custa partir não é?
Olhou em frente e era o mesmo jovem que lhe pedira lume e que agora se lhe dirigia. Pouco tinha reparado nele, a não ser talvez a sua cara. Tentava agora adivinhar-lhe a idade. Talvez 19 ou 20 anos! Vestia-se como qualquer outro jovem da sua idade. Umas calças de ganga, uma camisa de flanela azul e vermelha, tendo por cima uma camisola de lã com gola em bico, e um casaco, também de ganga, completavam a indumentária simples. Nos pés usava umas botas de carneira já com aquele castanho bem forte do uso contínuo. Ao seu lado no banco, uma mochila, daquelas que se usavam na tropa, bem ataviada.
- Eu sempre aqui vivi com a minha avó – continuou o rapaz .– Nunca conheci os meus pais! Morreram os dois num acidente e depois a decisão do tribunal foi a de me entregaremà minha avozinha – reparou que olhos do jovem brilhavam quando falava da avó. – Desculpe! Nem sequer me apresentei! Sou o João Manita – e lançou a mão na sua direcção.
- Prazer João! Eu chamo-me Álvaro Fontes – foi tudo o que acabou por lhe dizer.
- Também vai para Lisboa? – perguntou-lhe o jovem.
- Sim rapaz! Moro lá – e endireitou-se no banco do comboio.
- Mora lá? Então talvez me saiba dizer onde fica o Largo de Camões. É que eu…
- Já sei… Nunca foste a Lisboa! Não é isso? – perguntou-lhe simplesmente.
- É isso mesmo. Não conheço mesmo nada! – respondeu como se estivesse a desculpar-se da ignorância de não conhecer a capital.
- Fica descansado que dir-te-ei onde fica... Quando lá chegarmos!
Entretanto Montemor-o-Novo ia ficando para trás, cada vez mais pequeno, no que o seu horizonte visual alcançava. Não tardariam muito a chegar à Torre da Gadanha. Ali teria de esperar mais trinta e cinco minutos pelo comboio vindo de Beja.
Junto à estação havia um pequeno café que àquela hora apresentava pouca freguesia. Como não tinha tomado a sua “bica”, aproveitou o tempo de espera e dirigiu-se para lá.
- Não se importa que o acompanhe? – perguntou o seu “companheiro” de viagem.
- Claro que não. Vem daí!
Caminharam lado a lado silenciosos até ao café. A tabuleta, já gasta, indicava o nome do estabelecimento: “O Cantinho da Gadanha”. Condizia com o tamanho do lugar. Um pequeno balcão, quatro pequenas mesas e oito bancos de madeira era todo o mobiliário que possuía. Na parede um quadro do Benfica e um rádio, já antigo, cujo som deixava um pouco a desejar. Nas prateleiras garrafas de várias bebidas e em cima do balcão uma pequena vitrina, de madeira e vidro, que deixava ver alguns queijos e torresmos. Ao lado um prato com bolos, que, pelo aspeto, deveriam ser do dia anterior.
- Ora então muto bons-dias! O que é vai ser? – perguntou o dono do estabelecimento.
- Eu tomo um café. E tu João?
- Para mim pode ser também um cafezinho bem quentinho! – respondeu o jovem enquanto esfregava as mãos uma na outra.— A ver se aqueço, que isto está agreste Sr. Álvaro.
O comboio atravessava a planície alentejana em direção ao Barreiro. Calculava que por volta das 14,30h chegaria ao Terreiro do Paço. O João adormecera entretanto. Olhava para ele e vinham-lhe à memória recordações de si com aquela idade. Vivera intensamente como se o “mundo lhe fugisse das mãos”.
Um pouco antes de a composição entrar na gare do Barreiro, Álvaro deu um pequeno safanão no ombro de João.
- Estamos a chegar rapaz!
João quase que deu um salto no banco – Eh! Sr. Álvaro, isto é que foi “ferrar” bem no sono! – respondeu esfregando os olhos com as mãos. Entretanto espreguiçou-se um pouco.
- João, temos de nos despachar que o barco é daqui a um quarto de hora – disse-lhe Álvaro. Ao mesmo tempo foi tirando a pequena mala da bagageira que se encontrava por cima dos bancos.
Tinham escolhido um lugar à proa do barco. Aí podiam fumar e olhar a paisagem de um lado e do outro. Lisboa ia ficando cada vez mais perto. O seu olhar já divisava as muralhas do Castelo de São Jorge e as torres da Sé Velha.

 
- Vês aquelas muralhas lá no alto? É o Castelo de S Jorge – e apontava o dedo de modo  que o João o seguisse com o olhar.
- Eh, Sr. Álvaro, isto é que é um “mar”! É só água e mais água – observava o jovem.
- Aqui ainda não é mar! É só rio. É o rio Tejo. Mas lá grande é ele na verdade!
Um barco igual aproximava-se em sentido contrário. Vinha de Lisboa em direção ao Barreiro. As buzinas soaram quando se cruzaram: “booooooooommm…, booooooooommm..., booooooooommm”. As ondas criadas pelo rasgar dos cascos batiam de lado no barco fazendo-o oscilar. Algumas pingas bateram na face e sobre os lábios um sabor a sal que lhe trouxe à memória outros lugares bem longe dali...



Continua...

terça-feira, 6 de março de 2012

Uma Viagem de Comboio de Célio Passos


Já lá vão uns largos anos, mas, de vez em quando, este acontecimento regressa à minha memória.
As viagens de comboio sempre me fascinaram. Talvez por ter vivido uma parte da minha infância junto a uma estação de caminho-de-ferro. De noite, já alta, ouvia as máquinas a vapor a fazerem manobras e a retirarem e engatarem carruagens de mercadorias nas composições destinadas a diversos destinos e depois arrancavam, ao som de um curto silvo, e eu encolhia-me debaixo dos lençóis, como passageiro clandestino, e adormecia feliz.
Estava sentado no comboio estacionado numa das estações da linha do norte admirando, mais uma vez, os belos azulejos que revestem as paredes das estações que ainda vão resistindo à inexorável passagem do tempo, quando a composição se colocou em movimento. Eu ia mais uma vez à capital por razões de trabalho. A carruagem era a última, ia com poucos passageiros, talvez sete ou oito, o que não era normal. Tirei um livro da pasta e pus-me a ler. Apesar de o comboio ter poucas paragens até Lisboa, apercebi-me que a carruagem cada vez ficava com menos passageiros. Estranhei o facto. A certa altura era o único passageiro. Ouvi o barulho da porta a abrir-se e voltei-me. Era o revisor, que deu uma olhadela e, como já tinha revisado o meu título de transporte, saiu.
Quando me viro, estava sentada no banco à minha frente uma linda mulher, nova, toda vestida de branco, com o cabelo totalmente branco, de tez descolorida e com uns olhos de um azul profundo. Sobressaltei-me de espanto. A jovem sorriu:
- Não tenha receio que não lhe vou fazer mal! – disse numa voz a tanger o angelical.
Não respondi, mas parei de ler e fixei o olhar naquela imprevista aparição. Não a tinha visto entrar e muito menos sentar-se à minha frente. Permaneci calado.
A branca jovem tinha nas mãos um livro branco com letras douradas. Pousou o livro no assento do lado e colocou as suas alvas mãos sobre os joelhos.
- Não fique assustado com o que lhe vou dizer. Mas o senhor vai ter de abandonar o mais depressa possível esta carruagem.
- Porquê? - perguntei curioso. 
- É que esta carruagem vai desligar-se da composição e vai descarrilar. Por isso, não perca muito tempo e passe para uma das carruagens da frente.
Ouvi de novo a porta a abrir-se e virei-me, não era ninguém. Quando me voltei, a jovem de branco, de tez pálida, com cabelos brancos e com os olhos de azul profundo, tinha desaparecido.
A carruagem encontrava-se agora vazia e eu também. Aquela jovem transtornou-me, mas, na dúvida, não hesitei, peguei na pasta e rapidamente passei para a carruagem da frente, que se encontrava também com poucos passageiros.
Não tinha passado uns breves minutos, quando se ouve um enorme estrondo que trespassou todo o comboio; parte dos passageiros começou a gritar e toda a gente começou a levantar-se tentando saber o que se passava. Olhei para a porta vidrada de ligação entre as carruagens que há momentos tinha passado. Vi a carruagem que abandonara a descolar-se da composição, a perder velocidade e a distanciar-se do resto do comboio. Quando a carruagem abandonada passava sobre uma ponte de um pequeno rio, a ponte cedeu e a carruagem, com grande estrondo, descarrilou, virou-se e partiu-se em vários bocados, alguns deles perseguiam o comboio, outros espalhavam-se pelas bermas e outros foram caindo pelo desnível até ao rio.
O comboio parou uns metros adiante e os funcionários e passageiros saíram para a linha do comboio para ver o que se tinha passado. Houve os habituais comentários de todo o género, culpando tudo e todos, como é normal nestas situações.
Eu estava incompreensivelmente calmo. Não me tinha acontecido nada. Uma luz de fim de dia, amarelecida, entrava pelas janelas e, apesar dos acontecimentos, era calmante. Um raio brilhante rompeu por uma das janelas em direção ao assento que se encontrava à minha frente e focou um objeto branco: o livro com letras douradas numa língua estranha. Era o livro branco da jovem das alvas mãos. Senti que ele me era destinado, peguei nele. Segurei-o como um objeto de muito valor. A partir desse momento passou a acompanhar-me. Um dia, talvez, vou desejar saber o significado daquelas letras. 
”Mas quem seria aquela jovem vestida de branco, de tez pálida, de cabelos totalmente brancos, de olhos de um azul profundo, com um livro branco que eu segurava, agora, nas minhas mãos?”
Cogitei profundamente sobre os acontecimentos que tinham ocorrido: o aparecimento da jovem, o aviso que me fez e o facto de ter permanecido sozinho na carruagem e de ter saído no momento exato em que ela descarrilava.
Olhei pela janela, o sol no ocaso era de uma beleza extraordinária. O céu tinha tomado todas as cores de azuis. Algumas estrelas, timidamente, iam aparecendo no firmamento. Tudo permanecia, para mim, estranhamente, muito calmo. Alguns funcionários e pessoas que nas redondezas tinham casas bordejavam a linha e entre eles estava, um pouco afastada, estática, ereta, coberta com um manto brilhante, da cabeça aos pés, a jovem de branco, de tez pálida, com cabelos brancos e com os olhos de azul profundo.
Lentamente e com um ranger de metal das rodas da composição, esta colocou-se em movimento muito lento, e eu não conseguia despegar os olhos daquela sublime imagem. O comboio foi-se afastando até que a deixei de a ver. Sentei-me perplexo.
Sou um convicto agnóstico, mas sérias dúvidas abalaram as minhas fortes e inquestionáveis convicções. Pela minha mente surgiu aquela questão que a ocasião não deixou que me couraçasse numa das circunvalações do meu indescoberto cérebro.
“ Será que existe mesmo o anjo-da-guarda?”
FIM