terça-feira, 6 de março de 2012

Uma Viagem de Comboio de Célio Passos


Já lá vão uns largos anos, mas, de vez em quando, este acontecimento regressa à minha memória.
As viagens de comboio sempre me fascinaram. Talvez por ter vivido uma parte da minha infância junto a uma estação de caminho-de-ferro. De noite, já alta, ouvia as máquinas a vapor a fazerem manobras e a retirarem e engatarem carruagens de mercadorias nas composições destinadas a diversos destinos e depois arrancavam, ao som de um curto silvo, e eu encolhia-me debaixo dos lençóis, como passageiro clandestino, e adormecia feliz.
Estava sentado no comboio estacionado numa das estações da linha do norte admirando, mais uma vez, os belos azulejos que revestem as paredes das estações que ainda vão resistindo à inexorável passagem do tempo, quando a composição se colocou em movimento. Eu ia mais uma vez à capital por razões de trabalho. A carruagem era a última, ia com poucos passageiros, talvez sete ou oito, o que não era normal. Tirei um livro da pasta e pus-me a ler. Apesar de o comboio ter poucas paragens até Lisboa, apercebi-me que a carruagem cada vez ficava com menos passageiros. Estranhei o facto. A certa altura era o único passageiro. Ouvi o barulho da porta a abrir-se e voltei-me. Era o revisor, que deu uma olhadela e, como já tinha revisado o meu título de transporte, saiu.
Quando me viro, estava sentada no banco à minha frente uma linda mulher, nova, toda vestida de branco, com o cabelo totalmente branco, de tez descolorida e com uns olhos de um azul profundo. Sobressaltei-me de espanto. A jovem sorriu:
- Não tenha receio que não lhe vou fazer mal! – disse numa voz a tanger o angelical.
Não respondi, mas parei de ler e fixei o olhar naquela imprevista aparição. Não a tinha visto entrar e muito menos sentar-se à minha frente. Permaneci calado.
A branca jovem tinha nas mãos um livro branco com letras douradas. Pousou o livro no assento do lado e colocou as suas alvas mãos sobre os joelhos.
- Não fique assustado com o que lhe vou dizer. Mas o senhor vai ter de abandonar o mais depressa possível esta carruagem.
- Porquê? - perguntei curioso. 
- É que esta carruagem vai desligar-se da composição e vai descarrilar. Por isso, não perca muito tempo e passe para uma das carruagens da frente.
Ouvi de novo a porta a abrir-se e virei-me, não era ninguém. Quando me voltei, a jovem de branco, de tez pálida, com cabelos brancos e com os olhos de azul profundo, tinha desaparecido.
A carruagem encontrava-se agora vazia e eu também. Aquela jovem transtornou-me, mas, na dúvida, não hesitei, peguei na pasta e rapidamente passei para a carruagem da frente, que se encontrava também com poucos passageiros.
Não tinha passado uns breves minutos, quando se ouve um enorme estrondo que trespassou todo o comboio; parte dos passageiros começou a gritar e toda a gente começou a levantar-se tentando saber o que se passava. Olhei para a porta vidrada de ligação entre as carruagens que há momentos tinha passado. Vi a carruagem que abandonara a descolar-se da composição, a perder velocidade e a distanciar-se do resto do comboio. Quando a carruagem abandonada passava sobre uma ponte de um pequeno rio, a ponte cedeu e a carruagem, com grande estrondo, descarrilou, virou-se e partiu-se em vários bocados, alguns deles perseguiam o comboio, outros espalhavam-se pelas bermas e outros foram caindo pelo desnível até ao rio.
O comboio parou uns metros adiante e os funcionários e passageiros saíram para a linha do comboio para ver o que se tinha passado. Houve os habituais comentários de todo o género, culpando tudo e todos, como é normal nestas situações.
Eu estava incompreensivelmente calmo. Não me tinha acontecido nada. Uma luz de fim de dia, amarelecida, entrava pelas janelas e, apesar dos acontecimentos, era calmante. Um raio brilhante rompeu por uma das janelas em direção ao assento que se encontrava à minha frente e focou um objeto branco: o livro com letras douradas numa língua estranha. Era o livro branco da jovem das alvas mãos. Senti que ele me era destinado, peguei nele. Segurei-o como um objeto de muito valor. A partir desse momento passou a acompanhar-me. Um dia, talvez, vou desejar saber o significado daquelas letras. 
”Mas quem seria aquela jovem vestida de branco, de tez pálida, de cabelos totalmente brancos, de olhos de um azul profundo, com um livro branco que eu segurava, agora, nas minhas mãos?”
Cogitei profundamente sobre os acontecimentos que tinham ocorrido: o aparecimento da jovem, o aviso que me fez e o facto de ter permanecido sozinho na carruagem e de ter saído no momento exato em que ela descarrilava.
Olhei pela janela, o sol no ocaso era de uma beleza extraordinária. O céu tinha tomado todas as cores de azuis. Algumas estrelas, timidamente, iam aparecendo no firmamento. Tudo permanecia, para mim, estranhamente, muito calmo. Alguns funcionários e pessoas que nas redondezas tinham casas bordejavam a linha e entre eles estava, um pouco afastada, estática, ereta, coberta com um manto brilhante, da cabeça aos pés, a jovem de branco, de tez pálida, com cabelos brancos e com os olhos de azul profundo.
Lentamente e com um ranger de metal das rodas da composição, esta colocou-se em movimento muito lento, e eu não conseguia despegar os olhos daquela sublime imagem. O comboio foi-se afastando até que a deixei de a ver. Sentei-me perplexo.
Sou um convicto agnóstico, mas sérias dúvidas abalaram as minhas fortes e inquestionáveis convicções. Pela minha mente surgiu aquela questão que a ocasião não deixou que me couraçasse numa das circunvalações do meu indescoberto cérebro.
“ Será que existe mesmo o anjo-da-guarda?”
FIM

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