segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Uma Visão de Fora para Dentro de Luis Fernandes

 
Era desespero o que sentia, abandono! Inventava palavras que não queria dizer. Gritava para o alto com as forças que lhe restavam, mas não se fazia ouvir — eram sons surdos o que lhe saía. Com a raiva que sempre o acompanhou, uivou de agonia e sofrimento. Sentiu-se desconfortável… estremeceu.

Encolheu-se, fechou-se em concha e cerrou os olhos. Estudava uma estratégia para abandonar aquele corpo. Corpo dorido, maltratado, destruído pela falta de senso, corroído pelas intempéries da vida que o perseguiam e pelos passos mal dados que reflectiam as suas escolhas.

Sentado na cama olhava para a sorte. Recordava o dia, lembrava os seus medos, «no entrave do sono vê-se mais negro», pensava e aguardava que as horas por ele passassem. Já com os olhos a gotejar, como tímidas nascentes, não fazia qualquer esforço para o esconder — chorava na esperança de afugentar os seus tormentos, aqueles seres ridículos, enfiados em pijamas às riscas…

Estava num manicómio… estaria? Duvidava da sentença. Tinha apenas morto dois seres ignóbeis que tinham aparecido no balcão do banco, onde trabalhava, para reclamarem acerca de umas transferências bancárias, para as quais não tinham dado autorização. Considerado psicopata? Inimputável? O que é isso? Doidos eram os outros, nas suas batas brancas com cheiro a desinfectante escondendo manchas de sangue. Mas o que era certo, era que se encontrava enclausurado, naquele quarto de paredes nuas e grades nas janelas, para conter de vez os efeitos de alguns pensamentos, menos próprios, de pôr termo à vida. Uma cama de um só corpo, assim como uma pequena mesa e uma cadeira de pau completavam o mobiliário dos seus aposentos. Não lhe era permitido ter acesso às suas roupas e haveres. Fazia a barba duas vezes por semana, sob a vigilância de enfermeiros com o corpo do tamanho de guarda-fatos, que controlavam com desconfiança o manejar da máquina de barbear.

As saídas eram cada vez mais reduzidas, confinadas ao pequeno jardim rodeado de muros com mais de três metros de altura, que lhe roubavam a liberdade da sua visão e o empurravam para as suas lembranças, já deturpadas pelo passar do tempo e pela realidade que tinha vindo a viver, completamente afastada da existência mundana que se adivinhava do lado de fora do hospital.

Não tinha amigos. Também não havia modo de desenvolver amizades num lugar como aquele, em que, apesar de a maioria lá permanecer há mais de cinco anos, todos viviam, cada um no seu mundo, em mundos desencontrados. Fala-se, barafusta-se, desenvolvem-se comportamentos de agressão e até de partilha, mas não se dá azo ao desenvolvimento de amizades. O silêncio e o vazio eram as suas companhias. Com o silêncio mantinha uma relação de conflito. Tentava apagá-lo à força de gritos, com diálogos surdos que encetava com a sua consciência, com canções desconhecidas que lhe pairavam numa memória estranhamente escondida… por trás dos seus pensamentos. Relativamente ao vazio era desprezo o que sentia. Desprezo por querer viver sem tropeçar no seu passado… oco.

Olhava para a parede e via a sua sombra crescer… crescer… crescer, como se fosse um espectro de consciência que de si emanava. Sabia que este mundo não era o dele, que aquele corpo retratado na parede já não lhe pertencia. Era de outro. De outro que ao contrário dele já não existia. De outro que dissera adeus à vida enquanto ainda vivia.

No entretanto, o som de um bater de asas envolveu o seu pensamento e desviou-o por momentos dos seus devaneios. Era um som forte, absorvente, um som de liberdade, um som de ar fresco da noite. Um bater de asas prolongado mas suave que lhe trazia ao ouvido uma lembrança longínqua de uma existência compassada e coerente. Houve tempos em que também ele voou noites dentro… dias fora. E quem batia as asas fez-se ouvir… e transmitiu-lhe calma. A calma perturbadora de uma visão desprovida de expressão. Um som desritmado, um idioma desconhecido, uma melodia de frente para trás. E, de repente, toda a sua insegurança era harmonia. A sua insónia reconfortava-o, descansava-o. Sentia-se omniausente. Desprendido da sua história sem cenário, sem argumento, sem princípio nem fim. Encontrava finalmente o seu equilíbrio, a sua sanidade e, ao sabor do acaso e do improviso, mergulhou a cabeça na almofada. Sorriu, desejou boa noite a si próprio e sonhou. E ao longe, fora daquela cela encontrou o seu destino, o desenho da sua missão. Finalmente aceitou estar ali. Estar ali… «por nada».

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