quarta-feira, 7 de setembro de 2011

MEMÓRIAS DE CRISTALEIRA de Helena João


Sou um copo de vinho do Porto, único sobrevivente de um conjunto de copos de cristal da Atlantis que a minha actual proprietária herdou da avó.
Nasci no ano de 1944, numa das primeiras fornadas que a fábrica da Atlantis, outrora com outro nome, fabricou. A minha família mais chegada era composta por doze copos de água, doze de vinho, doze de Porto e doze taças de champanhe.
Recordo-me, como se fosse hoje, da emoção que sentimos ao sermos embalados sem sabermos ainda ao certo o nosso próximo destino. Ditou a fortuna que fôssemos parar a uma abastada família portuense - pai, mãe e três filhos pequenos - como prenda de anos de casados. Esmiuçados, em busca de algum defeito de fabrico, pelas mãos da senhora, passámos todos. Depois fomos lavados, secos e carinhosamente expostos na cristaleira.
Naquele tempo saía da cristaleira, juntamente com os meus companheiros, uma vez por semana, aos domingos. O domingo, dia de celebrar as refeições em família, era esperado por todos nós e pelos humanos da casa, com ansiedade. A azáfama da senhora, que fazia questão de preparar pessoalmente a refeição desse dia, era contagiante. De manhã bem cedo ela punha a mesa criteriosamente. Em cada lugar eram alinhados todos os pratos, todos os copos e todos os talheres possíveis de serem usados durante uma refeição. Ficávamos, assim, expostos num palco privilegiado para assistir aos acontecimentos. A pouco e pouco iam chegando os restantes familiares. Doze elementos ao todo. Seis adultos e seis crianças.
Por ser um copo de vinho do Porto, só era usado no final da refeição e podia permanecer, durante todo o tempo que esta durava, em cima da mesa. Ah, como eu gostava de observar os convivas, ouvir as suas histórias e as suas gargalhadas. Os meus companheiros iam sendo retirados da mesa à medida que a refeição avançava.
Eu não. Ficava sempre até ao fim. E na hora de sermos lavados, mais uma vez a senhora chamava a si essa tarefa. Mesmo quando, mais tarde, surgiu a primeira máquina de lavar louça da casa. Ela fazia questão de nos lavar à mão. «A máquina estraga o cristal», dizia. «Tira-lhe o brilho.»
Os anos foram passando e, excepção feita aos mais pequenos da família, fui útil a todas as pessoas. Mas gostava mais quando ficava ao serviço da senhora. Sempre me senti apreciado quando as suas mãos, que com o passar dos anos se tornaram nodosas, mas sempre gentis, me agarravam pelo pé. Os olhos dela penetravam no âmago do meu cristal e sentia que, por mais excelente que o vinho fosse, este sabia-lhe ainda melhor bebido através de mim. Lembrança desse ano longínquo, em que eu fora prenda por ocasião feliz, talvez. Lentamente, com o passar dos anos, os meus companheiros foram sendo partidos, escanados, estilhaçados... No fervor do convívio humano, foram sucumbindo, ao longo de mais de seis décadas de uso, até restar apenas eu. Sim, agora sou só eu. Já quase não saio da cristaleira. Sem os companheiros necessários para adornar uma refeição cerimoniosa, já não me põem na mesa. Apenas me retiram para limpar a prateleira ou quando à minha nova dona apetece um solitário Porto, ao final da tarde. Mas não me sinto pouco apreciado, não. Antes pelo contrário. Acho que, nessas alturas, ela sente saudades da avó e é por isso que me escolhe. As nossas vidas são diferentes e, no entanto, há um laço indelével que nos une. Ambos somos frágeis, quebráveis, mortais. Sobre ambos pesa o fio do tempo. E ambos partilhamos um ponto na origem das nossas existências. Somos, afinal, da mesma família. Nesses finais de tarde, juntos fitamos o vazio e viajamos para lugares distantes, só nossos.

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