sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

HISTÓRIA DE UM SORRISO de Gaspar Morais


Raras são as emoções que evidenciem a elegância de um sorriso. O seu brilho – contido como o das estrelas que ponteiam a noite com uma graça inocente – amorna a alma humana pincelando-a a doces momentos de mel e chocolate. Qual gota de água deslizando em folha de ramo verde, o sorriso imprime ao rosto a frescura que o torna atraente e apetecível. Com singeleza, exprime na perfeição diferentes estados de espírito e dá forma aos sentimentos sem recorrer à infindável tarefa de juntar consoantes e vogais na busca da definição correcta.

Naquela época eu era o mais afortunado de todos! Vivia contente no radiante rosto de um endiabrado garoto que contagiava quem com ele convivia. Inchava de vaidade sempre que elogiavam o rapazinho dizendo que tinha o sorriso mais bonito do mundo e que quando sorria o seu rosto resplandecia de alegria.

Sorriso de Alegria, assim me chamavam. Era sem dúvida um bonito nome! Sentia-me vivo! Adorava a vitalidade emanada do jovem menino que partilhava comigo a fantástica experiência de existir alegre, de aceitar o que a vida oferece como uma dádiva, de retirar prazer das coisas insignificantes ou simplesmente eliminar-lhes o significado desfrutando as genuínas sensações produzidas nos sentidos.

Naquele rosto seria imortal! Eterno! Jamais me extinguiria. Era essa a minha convicção.

Por vezes, durante o sono, abandonava o meu querido amigo e procurava outros sorrisos conhecidos para partilhar histórias e experiências. Nem todos comungavam do meu entusiasmo. Enquanto o Sorriso de Paixão e o de Felicidade vibravam com as minhas emoções e diziam viver momentos de excitação idênticos, o Sorriso de Tranquilidade sempre colocava água na fervura avisando-nos que a alegria, a felicidade e a paixão não são eternas. «Nada é imortal! Tudo é efémero. Tudo se transforma. Ouçam o que vos digo: para sobreviver é necessário aceitar a mudança, talvez até a metamorfose.»

Detestava o seu pessimismo! O que mudaria? Com que propósito? Para quê mudar se tudo é perfeito? Enfim, não passavam de fracas palavras saídas da boca de um sorriso sem fulgor. O Paixão e o Felicidade comentavam que ele andava cansado e sem chama, o que me irritava um pouco, visto que sempre o conheci assim: um mosca-morta cujo principal atributo era o de – disfarçado de relaxamento – adormecer quem o rodeava. Faltava-lhe sonho! Faltava-lhe utopia, coração! O que não era de estranhar, considerando que desde sempre vivera no rosto de um ancião que mais não fazia do que ler livros empoeirados e contar histórias de tempos idos. O meu menino preferia o pó que se levantava aquando das nossas correrias, à passagem dos cavalos, ou mesmo aquele com que as tempestades do deserto nos forçavam a ficar em casa. Alimentávamo-nos de ar, de terra, de vento, de sol, de fogo, mas sobretudo do incondicional amor da família.

Pertencíamos a uma geração de ferreiros que sobrevivia, principalmente, das encomendas provenientes do exército romano: espadas, armaduras, ferraduras, consertos diversos. Eram artesãos respeitados por manufacturarem com qualidade e serem cumpridores dos prazos de entrega, o que proporcionava um rendimento que lhes permitia viver sem passar fome ou necessidades. O pai e os três irmãos mais velhos trabalhavam de sol a sol, zelando para que nada faltasse, especialmente ao pequeno benjamim que era a alegria da casa. A mãe falecera ainda ele era bebé, pelo que não tinha memória dela, no entanto, embevecia-se sempre que ouvia o pai falar a seu respeito. Imaginava-a uma bela princesa de tez morena, longos cabelos negros, profundos olhos castanhos e uma voz melodiosa que enfeitiçara o pai para sempre.

Alguns anos passaram e o meu menino transformou-se num jovem bonito e saudável, todavia a sua alegria não era a mesma! Aos poucos, sentia-me enfraquecer… talvez modificar.

O pai, que era a pessoa que ele mais amava no mundo, adoecera. Todos os dias a sua debilidade aumentava e a minha também. Lentamente a alegria que vivia exuberante no peito daquele filho foi azedando, amargando, como se uma acidez invisível a corroesse. A sombra negra do desgosto fez ninho no seu coração. Temi por mim! À velocidade a que a tristeza o devorava, provavelmente eu desapareceria primeiro que o pai.

Lembrei as palavras do Sorriso de Tranquilidade: «Nada é imortal! Tudo é efémero. Tudo se transforma. Para sobreviver é necessário aceitar a mudança, talvez até a metamorfose.» Neste momento faziam outro sentido, tinham outro peso, o da experiência feita saber; contudo recusava-me perder a alegria sem nada fazer. Simplesmente desistir? Desaparecer com os braços caídos? Não resistir? Jamais! Lutaria pela eternidade até o limite das minhas forças. Eu, o Sorriso de Alegria que a todos fascinava, haveria de perdurar no tempo!

Decidi pedir ajuda ao Sorriso de Felicidade. Este abrilhantava a face da mais linda rapariga da aldeia conferindo-lhe a graça e a delicadeza de um pássaro que saltita de ramo para ramo, mas também o porte elegante e altivo de uma rainha. Eu sabia que o meu rapaz nutria por ela uma simpatia especial, pois foram várias as ocasiões em que, ao vê-la, imediatamente eu iluminava o seu semblante.

– O pai está doente, muito doente. Provavelmente não sobreviverá e o rapaz está a sofrer bastante. Sem o saber vai acabar comigo. Sinceramente não sei quanto tempo aguentarei mais. Penso que só tu me poderás acudir.

– Como? Em que posso ser útil? – perguntou o Sorriso de Felicidade.

– Penso que secretamente ele alimenta um sentimento especial pela rapariga em que tu vives. Podias dar um empurrãozito e fazer com que ela o notasse. Quem sabe se começaria a gostar dele? É um jovem com o coração do tamanho do mundo, trabalhador, jovial, honesto, leal, melhor companheiro não poderia encontrar – notei um esgar de dúvida na expressão do Felicidade. Garanto-te. Acredita em mim, este rapaz é uma pérola. Estou convicto de que é a única maneira de ele voltar a sentir alegria. Sabes que só assim perdurarei?

– Compreendo a tua preocupação e admiro o teu empenho. Acredito piamente que ele goste da minha menina, o que também não é difícil, e creio sinceramente que ele seja o jovem extraordinário que dizes ser, porém, o coração da minha princesa já tem dono. Desculpa, não te posso ajudar.

– Tens a certeza? Quem é ele? – perguntei, desanimado.

– É aquele moçoilo onde vive o Sorriso de Paixão. Só têm olhos um para o outro! Não se largam. Sabes que quando a felicidade e a paixão se juntam é impossível separá-los. Lamento meu querido amigo, parece que o teu tempo está a chegar ao fim! Não imaginas como lamento!

– Sabes Felicidade, quem tinha razão era o Tranquilidade. Eu menosprezava as suas palavras, mas parece que realmente nenhum sorriso é eterno! Provavelmente também tu e o Paixão não o serão. Mesmo assim e apesar das evidências custa-me aceitar que o fim se aproxima. Adeus prezado amigo.

– Adeus Alegria, até qualquer dia.

Regressei a casa. Entrei no corpo do jovem que dormia em sobressalto, preocupado com o seu pai. Também eu não tinha paz. Passei a noite tentando descobrir, em vão, a solução para o meu terrível problema.

Manhã cedo, ainda mal o sol se levantara, o irmão mais velho aproximou-se de nós e comunicou a horrível notícia: o pai acabara de falecer.

Permaneceu em silêncio durante algum tempo, sem emitir um som, um gemido, uma palavra – estátua-mola pronta a explodir. Não suportava os gestos de compaixão e solidariedade com que o tentavam confortar. Eram zunidos que lhe agulhavam o cérebro contraído pela dor, que o sufocavam, que impediam o corpo de absorver a morte do pai em exclusividade. O sofrimento que lhe agrilhoara a alma não era partilhável!

Repentinamente, levantou-se e estourou numa correria desenfreada. Correu, correu, correu, correu, como se não existisse amanhã, até a exaustão. Com o coração desfeito em água, parou extenuado junto ao lago Estrela da Tarde – denominado assim porque, no início da tarde, quando o sol se apresentava mais forte, a sua superfície cristalina reflectia a luz do astro-rei como se fosse uma estrela. Penetrou naquela água onde em tantas ocasiões nos banhámos, onde vezes sem fim brincámos alegre e irresponsavelmente, e, finalmente… chorou. Chorou a morte do pai em silêncio; num mutismo líquido e salgado.

Impotente, dissolvido em lágrimas, escorreguei suavemente pelos cantos dos seus olhos e acariciei uma última vez aquele rosto que tanto amei. Misturado na água do lago contemplei o meu menino afastar-se pesaroso. Nunca mais o vi.

Surgido o pico do calor, os raios do sol incidiram tão fortemente que eu me elevei ao céu transformado em vapor de água. Por lá permaneci algumas horas dormitando volúvel ao sabor da brisa do vento, até que a temperatura diminuiu, o sol desapareceu e acordei aconchegado por uma nuvem densa e fofa. Iniciava a noite.

Sobre mim, bem distante, uma pequena estrela sorria e piscava como se quisesse falar comigo. À medida que o tempo avançou, muitas despontaram cobrindo a escuridão com um manto de brilhos, luzes e reflexos fulgentes, no entanto, apenas aquela pequenina apontava directamente para mim.

Na esperança de a conseguir alcançar, levantei-me e comecei a pinchar em cima da nuvem: um, dois, três, quatro, cinco, seis saltos e finalmente encontrei-me sentado no colo da simpática estrela.

– Olá, como te chamas? Perguntei-lhe eu.

– Estrelita Rita. E tu? Quem és tu? Como chegaste aqui?

– Isso são muitas perguntas para responder de uma vez só. Eu sou um sorriso que… – fui interrompido pela gaiata voz de Rita.

– Que és um sorriso já eu vi. Quero conhecer o teu nome, de onde vens, que idade tens, o que pretendes daqui, enfim, deixemo-nos de tretas e falsas cortesias, quero bisbilhotar um pouco a tua vida, senão…

– Senão? – interroguei preocupado.

– Senão, deixo-te cair e vais novamente direitinho para a nuvem. Se te deste ao trabalho de saltar tantas vezes para chegares até mim é porque tens algo para me dizer.

– Já vi que não precisas de óculos – respondi tentando introduzir uma pitada de humor na conversa. Se me viste a saltar de tão longe é porque vês bem. Eu sou um sorriso que viveu muitos anos no rosto de um rapazola que adorava. Chamavam-me Sorriso de Alegria e diziam que era contagiante. A nossa união e cumplicidade era tão intensa que eu imaginei que seria imortal.

– Idiota presumido! O que aconteceu para não estares com ele agora? – questionou a Estrelita troçando de mim.

– O pai dele adoeceu e passados alguns meses faleceu. Ele foi perdendo a alegria e eu fui transformado em gotas de água salgada que depois se transformaram em vapor e… enfim o resto tu já sabes.

– As gotas de água salgada a que te referes chamam-se lágrimas e são muito apreciadas aqui pelas redondezas.

Fiquei surpreendido com a resposta.

– Como sabes o que são lágrimas e quem as aprecia aqui no céu?

– Sei que são lágrimas, porque, tal como tu, também eu passei muito tempo na terra – respondeu num tom saudoso.

– Onde vivias? O que eras tu? – perguntei.

– Eu era uma linda estrela-do-mar que vivia rodeada de amigos no oceano Pacífico, perto de uma ilha maravilhosa. Olhava para as estrelas do céu e sonhava ser uma delas. Um dia montei um belo arco-íris e… aqui estou.

Tendo notado alguma falta de entusiasmo na forma como me contou a sua ascensão ao céu, decidi questioná-la novamente:

– Diz-me Rita, sentes-te realizada sendo uma estrela? Cumpriu-se o teu sonho?

– Sim e não. Se, por um lado, sou agora uma estrela reluzente que vagueia pelo universo infindo onde brilharei por milhões de anos, por outro, sinto saudades dos meus amigos, da beleza da terra, do mar, das árvores e, acima de tudo, daquela fantástica sensação de vitória que me acompanhava a cada dificuldade ultrapassada. Viver é um privilégio!

– Por que é que as lágrimas são assim tão apreciadas?

– Não são apenas as lágrimas que aqui tanto estimam. São as emoções que são admiradas, as lágrimas são somente uma das muitas maneiras de as manifestar. Nós, as estrelas, sentimos especial atracção por todo e qualquer acto de amor. Por vezes, quando o mundo está em paz e a terra descansa envolta nos quentes sussurros dos amantes, as estrelas – que são as maiores malucas que conheço – transformam-se em estrelas cadentes e descem à terra para observar atentamente – coscuvilheiras! – todos os beijos, todas as carícias, gestos de amor. Ouvem as histórias de encantar com que as crianças são adormecidas, e, sem querer, absorvem o seu sorriso inocente; por isso, iluminam a noite como velas num jantar romântico. Claro que moi-même, a excelentíssima Estrelita Rita, sou uma das mais malucas – cintilou na última frase, como se fosse uma gargalhada.

Fiquei maravilhado com o que acabara de ouvir, contudo o meu objectivo era voltar a ser um sorriso vigoroso e assim viver eternamente.

– Diz-me Rita, existe no céu algum rosto, algum corpo, onde eu possa viver feliz, ou quem sabe… alegre para sempre?

– Vem comigo. Vou levar-te a um local onde encontrarás muitos corpos e rostos que, sendo etéreos e indefinidos, são facilmente reconhecíveis. Eventualmente verás alguns conhecidos, provavelmente até imortais, mas sinceramente duvido que consigas viver em algum deles.

Penetramos na imensa escuridão do universo! Senti pavor! Foi como se entrasse num tenebroso abismo, mas ao contrário, virado para cima!

– Repara como é espectacular! Nesta negrura absoluta, apenas eu irradio luz! Este momento é uma das razões por que adoro ser estrela: eu sozinha iluminando o universo. Fenomenal! E tu, como te sentes?

«Deve ser doida!», pensei.

– Diria que me sinto estarrecido! Abismado! Perdoa-me Rita, não tenho coragem para avançar mais. Se fosse humano, morreria de medo. Quero voltar à terra. Nesta viagem entendi que imperecíveis devem ser os momentos da nossa vida, não nós. Se morrer, pelo menos sê-lo-á no meu meio ambiente.

– Muito bem. Finalmente entendeste que viver sem fim à vista não é para qualquer um. Vou então levar-te de volta. Depois de transformada em estrela cadente não sei exactamente onde vou cair, no entanto pode ser que tenhas sorte e, quem sabe, uma segunda oportunidade. Agarra-te bem pois vamos descer a uma velocidade incrível.

– Regressemos a casa – disse eu.

Após vertiginosos minutos, aterrámos junto de um velho estábulo. Vacas, burros e ovelhas olhavam especados sem se saber para onde. Mais ao lado, um homem de aparência serena observava atentamente, não sei bem o quê, mas tinha estampado no rosto um sorriso idiota. O estábulo, as roupas que ele vestia, o ambiente em volta, eram em tudo idênticos ao da aldeia em que vivi, contudo era pouco atraente e eu, depois de tudo o que passei, estava sem energia para procurar um ser mais encantador.

A Estrelita Rita não parava de tremeluzir, como se estivesse com soluços.

– Que é que se passa contigo? – perguntei.

– Desculpa, não consigo parar de rir.

– Ai é assim que tu ris! Então qual é a graça?

– Foste transformado em água, depois em vapor, subiste aos céus, viajaste pelo universo – cada vez tremeluzia mais –, arrependeste-te, voltaste à terra mais morto que vivo, e, atendendo a que o rosto do homem está ocupado com aquele sorriso pateta, só te restam os animais. Se fosse a ti escolhia o burro; não é imortal mas sempre vive mais tempo que os outros – cada vez ria mais.

– Não sei qual é a piada – disse aborrecido.

– Não vês a ironia? Bom, vou embora, não tenho mais nada a fazer aqui. Até qualquer dia Sorriso de Alegria, ou antes, até sempre, pois nunca vi nenhum burro a passear no céu. Adeus Sorriso de Alegria, gostei de te conhecer – afastou-se lentamente, volitando como uma borboleta luminosa.

Senti-me triste e sem ânimo. Seria preferível desaparecer para sempre, deixar-me ir ao abandono! Valeria a pena um último esforço?

Arrastei-me com dificuldade para dentro do estábulo; para minha surpresa vi um belo menino recém-nascido deitado num montinho de palhas, junto ao colo de sua mãe, que carinhosamente o beijava na testa. «Por isso o homem tinha aquela expressão. Deve ser o pai.» Aproveitei um momento em que ele abriu a boca para chorar e num derradeiro esforço saltei para dentro dele.

– Vamos chamar-lhe Jesus – disse o pai embevecido.

– Sim, é um lindo nome. Viste que já sorriu! Tenho muita fé neste menino – respondeu a mãe com ternura.

Dois mil e dez anos passados ainda vivo no seu corpo e todos me chamam Sorriso de Esperança.

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