segunda-feira, 30 de novembro de 2009

DEIXEM-ME VIVER!

A partir do final do Inverno, quando o Sol começava a aparecer e a aquecer os corpos fartos de frio e das chuvas, ela começava a passar os finais da tarde naquele jardim. Senhora de uns bons 70 anos de idade, cabelos grisalhos, para muitos, o princípio do fim, para outros, um símbolo de sabedoria. Da sabedoria ganha com os anos, mais uma etapa que se vence de quem se sente a envelhecer, mas, acima de tudo, com vida.
Sentava-se no banco de ripas de madeira, pintado de verde, bem junto ao lago com a fonte no centro, e cheio de peixes vermelhos, enormes, quase tão velhos como ela, que se passeavam indolentes pela paisagem sempre igual. Levava pedaços de pão do dia anterior, e entretinha-se a alimentar os peixes, jurando a pés juntos que eles a reconheciam quando chegava. Tinha dado nomes a todos, e conseguia distinguir cada um deles, simplesmente pela maneira de nadar, ou pelas peculiaridades das barbatanas. Os cisnes e os patos-reais já a reconheciam pelo andar, e, mal a divisavam, vinham a nadar graciosamente até ela, esperando receber o pão que escapava aos peixes. Cada um deles tinha recebido também um nome, e ela acariciava-lhes suavemente a cabeça enquanto desabafava as novidades dos filhos e dos netos.
Os meninos da escola em frente vinham ter com ela no intervalo grande, esperando ouvir alguma história do tempo antigo, em que vendia gelados e balões na Feira Popular. Ela sempre adorara crianças, e agora que os netos já eram quase adultos, vinha matar saudades com estes meninos, sempre ávidos de a ouvir.
Às vezes trazia milho, e isso era o que os miúdos mais adoravam. Ela colocava uns grãos nas suas mãos abertas e enrugadas, e dezenas de pombos rodeava-os, alguns pousando inclusivamente nas mãos estendidas que se ofereciam. No princípio os meninos tinham medo, retraíam-se e fechavam as mãos e os olhos, evitando o contacto de tanto susto. Mas com o passar do tempo, habituavam-se ao toque estranho dos patinhos, e riam-se com gosto quando ficavam cobertos de pombos até à cabeça. Era uma alegria imensurável.
E todas as tardes as crianças ajudavam a mascarar a sua solidão.
Os filhos tinham vidas ocupadas, trabalhavam muito para manter um nível de vida confortável, não tinham tempo para conversar com a velha mãe e ouvir as mesmas histórias repetidas até ao infinito.
Os netos estudavam ainda e ela bem sabia como a faculdade era exigente, despendendo bastante tempo na preparação dos exames, e há que estudar muito para estar pronto para a vida adulta.
Por vezes vinham visitá-la, preocupados com a saúde. Sugeriam-lhe um lar, dos melhores, cheio de comodidades, enfermeiras solícitas e ambiente limpo, onde não teria de se preocupar com as limpezas da casa, com a preparação das refeições e onde cuidariam dela com todos os pormenores. Mas ela dizia sempre que não.
Preferia ficar na sua casa, mesmo sozinha, mas onde se sentia livre e senhora da sua vida. Livre para passear por onde quisesse, para alimentar os peixes, patos e pombos do velho jardim, para animar as crianças da escola e encher as suas vidas de sonhos, com histórias distantes de animais que só podiam ver no jardim zoológico. Ensinar os nomes de cada bicho, de onde vinham, como cada um era importante e especial, tal como cada menino que se cruzava com ela na vida.
Todas as tardes era assim, não se fartava de contar mais uma história e nessa tarde contou uma história que todos gostavam de ouvir a pedido de um dos meninos:
— Senhora, conte a história do «Pintainho Bailarino».
E todos a escutavam em silêncio e admiração.
«A ninhada da galinha Sofia tinha doze ovos. Ela estava muito contente aguardando o nascimento dos filhinhos. Numa manhã fria, os pintainhos começaram a quebrar a casca do ovo, olhando para fora muito curiosos, como vocês.»
Os meninos riram e perguntaram:
— E que mais, senhora?
A senhora retomou: «E, feliz, Sofia acariciava os filhos colocando-os debaixo das asas, para aquecê-los. Mas de repente percebeu que um ovo não havia quebrado. Esse pintainho preferiu ficar lá dentro: dobrou as pernas e resolveu tirar uma soneca. Ela começou a ficar aflita e resolveu chamar o galo Mendonça, pai da ninhada. De tão preocupado até cantou fora de horas... O ovo mexia-se para um lado e para o outro quando Mendonça cantava. O alvoroço e a barulheira chamaram a atenção de Alberto e Sílvia, os donos do galinheiro, ficando impressionados com aquele ovo que se mexia.
— Ele dança ballet — disse a Sílvia.
— Que engraçado! — comentou Alberto.
Na verdade, o pintainho só acordava quando ouvia o canto de Mendonça. Achava a melodia carinhosa e balançava-se quando o ouvia.» Só que as crianças acreditavam de verdade que ele estava dançando e, para eles, o pintainho estava tão contente dentro do ovo que aprendeu a dançar. Imaginavam que abria e fechava o bico, saltava, fazia ziguezague, inventava passinhos, ficava na ponta dos pés, dobrava os joelhos e dava um pulinho. Agitava a asa, balançava a outra. Mexia os pés para a frente e para trás.
Dizia a senhora: «No dia seguinte, o pintainho dançou tanto que o ovo acabou rolando e quebrou-se. Ele olhou pelo buraco da casca, piou um olá para toda a gente e sacudiu o resto da casca. Todos festejaram, os irmãos acharam bonito e também começaram a pular, seguindo a mãe Sofia pelo galinheiro, até pareciam verdadeiros bailarinos.»
Terminava mais um dia belo desta velha senhora. Regressava a sua casa cansada, mas feliz pelo dever cumprido, de ver aqueles meninos contentes e preenchidos de carinho.
Naquela noite a velha senhora, D. Clara de seu nome, remeteu-se aos seus pensamentos:
«Ultimamente tenho dado por mim a fugir ao pequeno mundo e a olhar para as outras pessoas. Eu tenho medos, ansiedades, desejos e sonhos, mas raras são as vezes em que olho para os outros e consigo considerar a possibilidade de que sentem as coisas da mesma forma que eu (a maior parte das vezes parecem figurantes).
O que desejam? Irão algum dia cumprir os seus objectivos mais íntimos?
Olhando para fora acabo sempre a olhar para dentro... e eu?
Sei que aquilo que mais desejo é durar mais uns anos de vida, com vontade de viver.
Gostava de ter uma máquina do tempo, quero ver mais, quero saber mais, se conseguirei aquilo que desejo, a resposta daquela dúvida que sobe acima de todas as outras.
Sinto-me jovem em pensamentos e espírito, até pareço uma adolescente de 15 anos a questionar a sua existência. Se visse e soubesse que nunca esse objectivo iria, ou melhor, irei alcançar, valeria a pena continuar a viver?
Não consigo ver o meu futuro, o meu futuro muito próximo, sempre que penso no que virá acontecer, vejo escuridão, um enorme vazio, dor, solidão. Sinto um profundo desespero.
Meti as mãos na cabeça e comecei a sentir as lágrimas a acumularem-se nos olhos, à espera da ordem para atacar, e chorei.
Mais uma noite mal dormida e um coração endurecido, os dias passam, as noites passam, os anos passam, o sonho permanece e obscura a visão do presente, mas gosto de me deixar voar, gosto de imaginar outras pessoas, outras vidas, outras tristezas, outras alegrias. Gosto de me perder enquanto penso.
Às vezes deito-me com o receio de que no outro dia não vou acordar. Será frio? Será quente? Será esse nada assim tão mau? Queria arranjar uma forma de explicar!
A ansiedade de adormecer para deixar de pensar nas coisas que nos atormentam, mas existe sempre aquele momento em que, mesmo antes de fechar os olhos, estamos sós, como se apenas existisse só eu no meio da escuridão, no meio do nada. Sinto-me amparada. Encolho-me na cama, aperto a almofada. Sinto-me em paz. É assim que me sinto. Em paz, no meio do nada, aconchegada, amparada. O mais surreal nisto é de sentir-
-me assim quando tudo me devia empurrar na direcção oposta, o vértice de pensamentos autodestruidores. Não sei porque estou a sorrir agora, ao mesmo tempo que sinto os meus olhos a ficar húmidos, não sei mesmo. Estou farta de levar os meus pensamentos para o álbum de recordações e de navegar no mar das lembranças.
Sinto-me estranha!
A minha vida enche-se de significado, de um brilho especial, quando compartilho as minhas histórias com aquelas crianças e a alegria com que as vejo a correr para mim ainda dão mais sentido e significado à minha vida, recebo e dou.

Pela manhã fui fazer umas compras ao centro e, enquanto caminhava, deparei, ao passar na frente de uma obra, com vários trabalhadores da construção civil trabalhando, na seguinte cena: dois pedreiros estavam a construir um muro. Apesar de ser o mesmo muro, havia uma diferença notável: a parte de um estava baixa, enquanto a do outro era quase duas vezes maior.
O primeiro estava com aparência resignada e carrancuda, com evidente má vontade. O outro, ao contrário, estava alegre e feliz, até assobiava, com vontade de trabalhar.
Fiquei bastante intrigada e perguntei ao primeiro o que estava a fazer, ao que me respondeu: «Não vê? Estou construindo um muro.» Voltei a perguntar: «E para quê?» Ele respondeu imediatamente: «Ora, para ganhar a vida.» Perguntei a seguir a mesma coisa ao outro trabalhador e este, com um grande sorriso nos lábios, respondeu: «Um muro que parece um castelo.»

E lá segui o meu caminho pensando: «Como é bom ter entusiasmo para continuar a viver e a desejar intensamente estar viva e feliz.»

1 comentário:

Eliane F.C.Lima disse...

Caro Dido Max,
Não sei quais as suas convicções religiosas, mas acho que a gente inventa datas, como o Natal, para poder ser, de vez em quando, fraterna, querer bem, desejar a felicidade aos outros. É isso que faço agora. Que 2010 também vá pelo mesmo caminho.
Eliane F.C.Lima (Conto-gotas, Poema vivo, Literatura em vida 2)