segunda-feira, 16 de abril de 2012

Epifânia de Helena João.

O badalar dos sinos soa metalicamente na minha cabeça, confundindo-se com a dor que já lá se instalou. O cortejo inicia-se e eu assisto a tudo, pairando sobre mim mesmo, numa estranha experiência extracorpórea. Dezenas de pessoas seguem atrás de mim e daquele estranho objecto onde ela foi posta. Morreu. A palavra repetida dezenas de vezes não faz qualquer sentido. Morreu. Abandonou-me. A mim e ao filho que também é dela.
Mais meia hora e está tudo acabado. Sete palmos de terra. Flores. Pêsames. Abraços sinceros e outros de conveniência. Acabou tudo. Ouve-lhe a voz que lhe diz «até já». Vê-a parada, sentada no carro, a olhar para cima, para a sua janela. A última vez.
Conhecera-a anos antes por um mero acaso. No preciso momento em que regressava a casa da entrevista daquele que viria a ser o seu primeiro emprego, a sua caixa de e-mail recebia uma notificação. Era uma notificação de uma dessas redes sociais, às quais se adere numa tarde onde não há mais nada para fazer e parece boa ideia expor assim um pedacinho do íntimo de cada um. Já há meses que não abria essa página de perfil, esse local onde meia dúzia de fotografias suas jazia. Sozinhas, isoladas, perdidas no ciberespaço. Nunca se dispôs a cancelar essa conta, apesar de não saber bem porquê. A verdade é que, por um acaso qualquer, essa conta não foi terminada e era dela que recebia agora a notificação. Alguém tinha comentado uma fotografia sua. Abriu a conta e clicou no link que indicava que havia «new comments». Debaixo daquela fotografia ela tinha escrito «Are you the king of the world?» A fotografia era uma das suas preferidas. Tinha sido tirada em Sintra, no Convento dos Capuchos, já cá fora, depois da visita ao que é o mais claustrofóbico ponto turístico que visitou. E gostava dela, não por ser uma séria candidata ao Pulitzer, mas porque essa fotografia espelhava a sua felicidade. Não se via o seu rosto, mas sabia que estava feliz. Nessa fotografia estava em cima de um rochedo, de braços bem abertos e a olhar para o céu, como que a abraçar toda a vida, toda a força que sentia possuir. De certa forma, sim, sentira-se o rei do mundo.
- É melhor deixares o menino cá em casa comigo esta noite. Para descansares, para teres tempo de arrumar tudo.
- Está bem, mãe.
Assim que rodei as chaves na fechadura e entrei, o espaço de todos os dias olhou-me pela primeira vez. Está tudo como umas horas antes, o bonsai e a orquídea, os livros na mesa da televisão, o comando esquecido no sofá, a persiana meia corrida, na janela ainda sem cortinas. Pertence tudo a uma outra casa, a uma outra vida. Sinto-me intruso.
Recorda a derradeira noite, quando ela finalmente lhe contou. Chegou a casa, sem a mochila e ele soube que algo de errado se passava. Arrastava os pés, pendia-lhe a cabeça e os ombros encolhiam-se como que a evitar o inevitável. Numa das mãos trazia um presente. Trazia sempre um presente. Um embrulho feito por ela, à pressa, mas sempre com o menino no pensamento. Desta vez era um livro.
Sentada no sofá, olha para ele e as lágrimas escorrem-lhe sem esforço. Não soluça, não produz qualquer som. Apenas aquela dor transborda sob a forma de rio salgado a desprender-se de uma nascente de castanho. E, calmamente, conta-lhe tudo. Conta-lhe como numa manhã de Abrilresolveu ir, finalmente, ao médico e investigar a dor de cabeça que já há meses a atormentava. Conta-lhe como após uma exaustiva passagem por vários departamentos do hospital, a informaram do diagnóstico. Conta-lhe o prognóstico que esse diagnóstico acarreta.
Em Abril! E a mim conta-me em Julho! Dá-me o facto como consumado. Sentença proferida após julgamento à revelia. Já não há nada que eu possa fazer. Odeio esse sentimento! Odeio sentir que me retiram o controlo dos meus sentimentos. Odeio-a neste momento. Ou quero odiá-la e não consigo. Odeio-me porque nem sequer quero pensar no que ela sente.
Negação, raiva e negociação, os três estádios em cinco minutos. Vai ficar sem ela. Não! Porquê? Resta-lhe uma eternidade para viver o quarto. Depressão.
Olha a porta do escritório, sem a abrir. Sente lá dentro a cadeira dela, o portátil fechado, mas ligado em cima da mesa. Ouve-a a pedir-lhe um café dos nossos. Entra no quarto e deita-se na cama. Fita o infinito sob a forma de tecto pintado de amarelo e assim permanece. Não sabe quanto tempo passou. O menino não ficou com a mãe apenas aquela noite, mas ele perdeu a noção do tempo. Não sabe se passaram dias, semanas ou meses. Mas sabe que o tempo nunca passa no tempo certo. Tempo que passou depressa demais quando ela era dele e não lhe morria nos braços. E agora não passa, agora não corre célere. Agora não o transporta ao esquecimento.
Já fiz tudo o que me era exigido fazer. Despejei as gavetas, coloquei tudo em caixotes e tirei-os de casa. Mudei a cor das paredes da sala e os móveis do escritório. Só a orquídea permanece.
Divide os dias entre a dor da perda e a raiva. Raiva por ela o ter deixado tanto tempo na ignorância. Sente-se traído. Talvez ela apenas o quisesse proteger. Talvez esperasse encontrar uma solução. Sente-se traído, é indiferente.
Quer desintoxicar-se dela. Reabilitar-se. Mas não sabe como. Tenta não pensar. Porque pensar é não compreender. O Mundo não se fez para pensarmos nele. Pensar é estar doente dos olhos. Que sábio sempre lhe pareceu Alberto Caeiro… E olhando à sua volta ele vê. Vê o menino que cresce sozinho, sem ela, mas, mais grave do que isso, sem ele, que é o seu pai. Vê a mãe preocupada com a vida que sente que se apaga dentro dele. Vê os amigos. Esses de sempre e aqueles, mais recentes, em esforços vãos de lhe devolver o sorriso. Vê no espelho uma pessoa que não reconhece. Vê aquilo em que não se quer tornar. E percebe que não se escolhe aquilo que acontece na vida de cada um. Mas que pode escolher-se como lidar com isso, escolher o que isso vai fazer de nós. Decide que tem de parar de procurar respostas no tecto pintado de amarelo e levanta-se da cama. Talvez não haja respostas. Talvez não tenha que ser tudo científico. Talvez seja possível viver sem perceber. Percorre novamente as divisões do T3. Falta-lhe vida. Faltam-lhe brinquedos espalhados pelo chão e risos de criança. Faltam cortinas na janela da sala. É tempo de tratar disso. E de fazer os furos na parede para as fotografias. Lentamente a dor dentro da sua cabeça começa a desvanecer-se. Vai sendo substituída por projectos de futuro. Afinal, parar é morrer. A dor no coração não se vai embora já. Mas a pouco e pouco também muda de nome. Passa a chamar-se saudade e fica arrumada numa gaveta dentro da alma.
Entro no quarto do menino. Não perdeu a aura de santuário, continua a ser o espaço protegido de brincadeiras e risos, de parede pintada com desenhos de carrinhos e super-heróis e a estante cheia de livros. Pego no casaco castanho, aquele que lhe vesti no dia em que fomos ao Zoo ver as focas.
- Anda filhote, vamos.
- Trazes uma prenda?
- Não, mas, se te portares bem, compro-te uma no caminho.
O Sol não se vai pôr ainda, não me faz uma desfeita dessas. Ainda há tempo. Nas próximas duas horas vai passar devagar, mas isso não importa. O menino corre com o cão pelo areal até caírem os dois e, a rebolarem, se confundirem com a paisagem. As gargalhadas de sempre ecoam desenterrando memórias. Afinal ainda estou vivo. Ou renasci. Juntos somos uma unidade.
No caminho de casa compra-lhe um livro. Aceitação.