sexta-feira, 19 de junho de 2009

Só como sempre

Sexta-feira, dia da…

Ele dorme ao meu lado, o braço dele livremente drapejado sobre mim como a sobrecapa de um livro. Sinto os pêlos do seu braço misturados com os do meu estômago, mistura que aumenta com cada respiração. Uma centena de vezes que isto aconteceu exactamente desta forma, eu a acordar antes dele, sentindo o seu hálito quente contra a parte de trás do meu pescoço. Ele está tão perto de mim, tão perto fisicamente.
No entanto, estou sozinho, como sempre.
O sentimento de isolamento provoca coisas estranhas em mim e, embora eu saiba isso, ainda sucumbo à minha própria loucura. Ele, especialmente nestes momentos de irrealidade no período da manhã, parece não existir. Ele é um simples fantasma de seu antigo eu, um holograma, uma lasca de madeira do homem por quem me apaixonei. Sempre, uma centena de vezes, pelo menos, eu na cama, sob o peso do seu braço.
Mas esta manhã é diferente. Eu posso sentir o outro corpo no quarto. Ela é uma forte presença, tão vigorosa quanto eu desejo. Fitada em mim, ela sabe que eu não estou a dormir, mas os meus olhos estão bem fechados. Ao abri-los ela está mais próxima, bem pé perto de mim, olhando-me. Como se o seu olhar pudesse confirmar a minha realidade, a prova de que eu preciso para saber que eu existo.
Ela curva-se para sussurrar alguma coisa no meu ouvido, ignorando a minha nudez. As suas unhas passeiam pelo meu queixo e estou estranhamente excitado.
– Temos de fazê-lo agora…
A sua respiração está quente como o seu leve toque. As suas palavras são minúsculas brisas sobre mim. Ele pode senti-la também? Antes de os ecos de sua voz terem morrido na minha cabeça, ela foi-se embora.
Ele desloca-se ao meu lado.
Hum - diz ele, esfregando os olhos. - Que horas são?
– Sete, oito horas - digo eu, mas não posso ter a certeza.
– Merda- diz ele.
Lança-se para fora do seu lado da cama, estica os braços e boceja.
– Levantas-te? - pede ele, correndo os dedos através do seu cabelo.
Não espera pela minha resposta. Anda à volta do meu lado na cama, encosta-se e beija-me na face. Pausando ligeiramente, com um olhar de piedade nos olhos, acrescenta:
– Fazes-me o pequeno-almoço? - e com uma palmada na minha coxa sai em direcção ao chuveiro.


Domingo de manhã. Cinco dias antes de…

Eu estava lá fora, quando ela chegou num automóvel branco, usando óculos escuros.
– Desculpe-me - chamou-me, mas eu sabia que ela era do tipo que nunca pede por favor nem com licença.
– Esta é a Rua Diogo Arruda?
– Não! - houve um ligeiro tremor na minha voz, como uma criança que é chamada à frente na sala de aula para responder a uma pergunta.
– Esta é a Gualdim Pais. A que deseja é aquela ali, só tem de contornar - apontei com o dedo.
– Depois deste edifício?
– Sim – disseram meus lábios, mas o meu coração gritou:
– Por favor, não vá!
Ela não ouviu. Num segundo, já se tinha ido embora.
Como se nunca ali tivesse estado.


Segunda. Tarde. Quatro dias antes de…

Era uma noite fria de Outono e eu estava enrolado no meu cobertor favorito com um livro, quando ouvi a campainha tocar. Instantaneamente meu coração disparou. Normalmente a campainha não despertava um tal sentimento de inquietação, mas eu estava sozinho. Fui até a porta e espreitei pela vigia.
– Quem é? – perguntei, desnecessariamente. Reconhecendo-a instantaneamente.
A voz dela soou lá fora. Reconheceu-me também.
– Conhecemo-nos ontem. Lembras-te?
Como poderia esquecer? Abri a porta, mas só um pouco.
– Lembro-me… – disse eu, e as minhas palavras timidamente escorregaram para fora de mim, por detrás da porta.
– Perdeu-se outra vez? – perguntei, lamentando a estupidez da questão, no instante em que as palavras passaram os meus lábios.
– Sempre – ela sorriu para mim e riu um pouco. – Na verdade eu só queria agradecer-te. Estava cheia de pressa ontem à tarde e não te agradeci.
– É fácil perder-se aqui. Ainda bem que pude ajudar. Já agora, chamo-me Sebastião.
– Carmo. Bem, eu deveria ir. Tenho de estar amanhã cedo em Sintra.
Ela era um tal mistério. Quem ou o quê esperava por ela na Diogo Arruda ontem e amanhã de manhã em Sintra?
– Tem certeza? Porque não entra e toma um café comigo? – perguntei. – Vai precisar de cafeína, para conduzir a noite toda.
Abri a porta, mas realmente estava a abrir muito mais. Ela sorriu e atravessou o limiar entrando na minha vida.
Chamando a sua atenção para o sofá, dirigi-me para a cozinha. Quando voltei com as duas chávenas de café, ela estava sentada confortavelmente.
– Interrompi a tua leitura – disse ela, quando viu o meu livro em cima do cobertor.
– Oh, não. Eu estava a ler a mesma página vezes sem conta.
Nossas mãos tocaram-se brevemente ao entregar-lhe o café, o frio da nossa pele contrastando com o calor das chávenas.
– Açúcar, Carmo? – foi a primeira vez que eu disse o nome dela e vi seu sorriso quando ele rolou na minha língua. Ela abanou a cabeça e sentei-me a seu lado.
– Vives sozinho, Sebastião? – ela disse meu nome, como se estivesse a retribuir um favor.
– Não. Com o meu namorado, mas… ele não está… saiu por uns dias.
Ela olhou para mim como se soubesse que minhas palavras significavam mais do que elas diziam.
De repente fiquei consciente do perigo de ter um estranho em minha casa e de lhe dizer que estava sozinho. Mas estranhamente não tive medo.
Uma pausa embaraçosa, durante a qual nervosamente cada um acariciou a sua chávena de café.
– Posso usar a casa de banho? – perguntou.
– Claro. Ao fim do corredor.
Ela levantou-se e dirigiu-se na direcção indicada, com os meus olhos a seguirem cada movimento seu.
Só podia estar louco, para pensar o que pensava naquele momento. No entanto, aquele pensamento aflorava cada vez mais vivo na minha mente.
Ao fim de algum tempo e como nunca mais voltava, comecei a duvidar da sua existência. Seria um sonho? Esperei o mais que pude e fui procurá-la. A caminho da casa de banho passei pela porta aberta do quarto. Mantenho a porta sempre fechada, mas o Jorge deve tê-la deixado aberta. Agarro a maçaneta da porta na intenção de a fechar e lá está ela, de pé, perto da minha cama, olhando a fotografia na minha mesa-de-cabeceira. Limpo a garganta para anunciar a minha presença. Depois do embaraço inicial e pegando na moldura com ambas as mãos, pergunta:
– É ele? É bonito. Um homem cheio de sorte…
– Obrigado – respondo, sem saber se me sentia invadido ou seduzido.
Avançando pego na moldura e mais uma vez as nossas mãos tocam-se. Os nossos olhares tocam-se e, sem mais para onde fugir, os meus lábios seguem os dela.


Terça. Manhã, três dias antes de…

Dormiu ao meu lado, o seu braço livremente drapejado sobre mim como a sobrecapa de um livro. Sinto os pêlos do seu braço misturados com os do meu estômago, mistura que aumenta com cada respiração. Uma centena de vezes que isto aconteceu exactamente desta forma, mas hoje é diferente. O seu braço parece mais leve. Suave. O seu corpo desloca-se ao meu lado, desperta e pergunta-me:
– Que horas são?
– Sete, oito horas… – digo eu, mas não posso ter certeza eu mesmo.
– Posso tomar um duche? – pergunta saindo completamente nua de debaixo dos lençóis.
Primeiro pensei que sonhava. Tinha de ser um sonho. Então tentei acordar, desta vez para a realidade da água a correr na casa de banho.
Entrei e, em vez do Jorge estava uma mulher, nua, nua no meu chuveiro. Uma mulher que rapidamente se aprumou, vestiu e me beijou.
– Não estou a fugir. Mas tenho mesmo de ir.
Ela percorre toda a casa como se fosse a sua casa.
– Deixei o meu número na mesa-de-cabeceira – mas antes que o pudesse confirmar, ela beijou-me de novo e saiu porta fora.
Tudo o que ficou foi o gosto dela na minha boca.


Sexta. Tarde, no dia de…

Hoje de manhã depois de fazer o pequeno-almoço, três torradas com manteiga sem sal, uma caneca de café com leite e um sumo de laranja acabado de espremer, sentei-me a assistir enquanto ele comia tranquilamente. Sei que não devia, mas não suportava fazer muito mais. Vi-o ir para o trabalho e fique de novo sozinho, só mais uma vez, com os meus pensamentos. Não me lembro de nenhum deles. De repente são horas, oiço a porta a abrir, é ele que chega. Corro para a casa de banho e ao inclinar-me para a gaveta do lavatório atinjo um vislumbre de mim mesmo no espelho, fico impressionado com o quão terrível me pareço. Mal me conheço. Há algo de familiar neste rosto, por baixo dos hematomas e das lesões, tudo me parece pior, os lábios cortados, o olho direito inchado, quase fechado. Abro a gaveta, no interior o brilho metálico de uma arma. Eu sei que é uma arma e não me importo. Encaixa perfeitamente na minha mão e isso é razão suficiente para pegar nela. Um gesto mecânico, familiar, como se já o tivesse repetido um milhão de vezes, embora não me lembre. E muito alto, bem dentro da minha cabeça, algo grita. Quero colocar o meu dedo no gatilho.
O homem no espelho observa-me. Ele também tem uma arma. Coloca o dedo no gatilho e eu também. Ele sorri.
– Estás em casa?
Silenciosamente conto os seus passos até ao quarto, vai despir-se e depois vem para aqui. Conheço a sua rotina sem sequer o ver. Tirou a gravata e atirou-a para cima da cama. Despiu a camisa e a caminho da cadeira onde a vai pendurar descalça os sapatos. Depois avança para aqui. O meu dedo ainda está no gatilho.


Terça-feira, três dias antes de…

Futebol na TV. Ele quer outra cerveja e eu vou buscar. O telefone toca no instante que abro o frigorífico.
– Sou eu – disse ela ao ouvir a minha voz. – Quero ir aí.
– Hoje não – sussurro no desespero de a querer ver de novo.
– Amanhã, então?
– Sim, ele vai para fora.
– Onde é que ele está agora?
– Na sala, a ver futebol.
– Quero-te agora.
– Eu já disse…
– Toca-te para mim.
Fiquei chocado, tanto pelo meu pudor como pela sua petulância.
– Carmo!
– Por favor, faz de conta que sou eu.
Abro as calças e deixo a minha mão percorrer o meu corpo.
– Já estás?
– Sim… – respondo, afogueado e embaraçado. A minha mão encontra o alvo, primeiro por fora dos «boxers», depois no interior.
– Preciso de te ver.
– Amanhã à noite – digo entre respirações ofegantes.
– Mais rápido – ela sussurra e eu obedeço, movendo a minha mão para a frente e para trás num movimento ritmado.
– O que diabo estás a fazer?
Largo o telefone. Ele avança pela cozinha com um sorriso nos lábios, ao ver-me seminu. Ao ver o telefone, o sorriso desaparece abruptamente. Apanha-o do chão.
– Está? Está? Quem fala? Está aí alguém? – a sua fúria vira-se para mim. – Mas que merda é esta? Com quem é que estavas ao telefone?
Eu não respondo. Eu não posso.
– Com quem é que estavas ao telefone?
Eu não respondo. Eu não me lembro. Eu já me esqueci. Esqueci ainda antes de o seu punho atingir o meu rosto pela primeira vez.


Quarta-feira, dois dias antes de…

Não vi o Jorge em todo o dia. Passei a manhã, passei a tarde, passei a hora em que o sol se põe, ocupado em fazer nada olhando o relógio de minuto a minuto, não porque não pudesse esperar por ela, mas porque cada vez se aproximava mais a sua chegada. Não que não a quisesse ver, mas sim porque não queria que ela me visse, não assim. Não neste estado.
O quarto estava quase totalmente escuro e silencioso, eu deitado, coberto até ao queixo e completamente vestido debaixo dos lençóis. A mensagem era contraditória mas eu não me importava. Ela chegou, abriu a porta, chegou ao quarto e acendeu a luz.
– Apaga por favor – obedeceu e deslizou até mim, até junto à cama.
– Que se passa? – a sua mão acariciou o meu rosto. – Pareces zangado, ou com medo.
– Estou confuso. Confuso sobre tudo o que aconteceu entre nós.
– Mas o que é que há de confuso entre nós? – a sua voz era seca e magoada.
– Não sei. Eu… Não me lembro.
Era verdade, eu não me lembrava. Tinha vagas recordações de ter feito amor com ela. Mas eu não me lembrava. Quando estava sozinho não me lembrava. Eu não me lembrava de nada.
– Não te lembras ou não te queres lembrar?
Eu não conseguia explicar. Nem para mim próprio eu conseguia explicar. Pareciam duas realidades. Quando ela não estava eu duvidava de tudo e com ela aqui eu não duvidava de nada. Era como se a minha mente não aceitasse o que o meu corpo sabia ser real.
– Desculpa… É como se tu não fosses real. Como se eu estivesse sonhando.
Ela arrancou o lençol.
– Eu sou real – começando a desabotoar-me a camisa. – Eu sou mais que real.
Eu senti as suas mãos enquanto ela me despia, a sua boca no meu corpo. Eu sentia o seu corpo no meu. Eu sentia o meu corpo dentro do seu. Eu sentia tudo. Eu sentia tudo com se fosse a primeira vez.


Quinta, um dia antes…

Quando acordei ela estava aos pés da cama. Olhava-me com os seus profundos olhos castanhos. Eu sorri. Levantei-me inclinando-me para a beijar. Impediu-me.
– Quando é que me ias dizer?
– Dizer o quê?!
– O que ele te fez – não percebo. Não percebo do que fala. Não percebo o que quer saber.
– O que ele fez à tua cara – diz ela calmamente.
Subitamente entendi, eu já não me lembrava. Habituámo-nos ao ponto de esquecermos. Esquecemos o porquê, o quando e o onde.
– Espanta-me que ainda se note!
Algo nas minhas palavras a enfureceu porque subitamente arrasta-me da cama em direcção à casa de banho, empurra-me contra o lavatório e eu fico ali, em frente ao espelho.
A primeira coisa que notei foi que estávamos ambos nus, mas não era isso que ela me queria mostrar. Colocou a mão debaixo do meu queixo e, levantando-o, fez-me olhar para mim. O meu maxilar estava inchado, o meu lábio inferior gordo e o olho direito brilhava em sedutoras tonalidades de roxo. Eu lembro-me. Lembro-me de ele me bater. Mas é como se olhasse para outra pessoa no espelho e não para a minha própria carne.
– Eu vou matar esse filho da puta – disse ela, mas eu não estava consciente da sua presença.
Estava ocupado a tentar lembrar-me de como tinha acontecido, de como o meu amante me tinha batido, de como o meu amor me tinha amassado, até o meu rosto se transformar numa massa na qual eu não reconhecia a minha fisionomia. Estava apenas consciente das suas mãos no meu baixo-ventre enquanto as minhas mãos exploravam a minha cara, rastreando as lesões como se traçassem um roteiro para memória futura. E então ela sussurrou ao meu ouvido esmagado:
– Nós vamos matar o desgraçado.


Sexta. Noite, o dia de…

– Whou, Sebastião. O que é que estás a fazer com isso?
A sua voz era irónica, como se o facto de eu explorar esta arma, esta arma na minha mão, não pudesse apresentar qualquer perigo. Depois eu vi o medo. Vi o medo nos seus olhos quando lha apontei.
– Poisa isso, amor, poisa isso, olha que isso pode disparar.
– Estou a contar com isso – disse-lhe numa voz que não parecia a minha. Avanço, ele recua. Parece uma dança, um jogo infantil.
– O que estás a fazer?
– Vou matar-te – o meu dedo acaricia o gatilho. – Matar-te por tudo o que me fizeste.
– Mas o que é que eu fiz?
Avanço.
– És cego, Jorge? Ou és apenas estúpido?
– O teu rosto? Queres dizer o teu rosto?
Agora ele está assustado, encurralado entre mim e a cama.
– T-tu a-a-a-chas que fui eu que fiz isso? – balbucia, é incrível como uma arma carregada faz um homem gaguejar.
– Sebastião, tu caíste na casa de banho. Não te lembras? Bateste com a cabeça no lavatório.
– Não mintas.
– Amor, lembra-te. Eu cheguei a casa e tu estavas no chão, cheio de sangue. Não te lembras?
A pistola treme na minha mão.
– Pára com isso. Eu não acredito em ti. Tu bateste-me depois de me teres apanhado ao telefone com ela.
– Quem?
– A Carmo.
– Quem é a Carmo?
– A mulher que te vai enterrar.
– Tu estás fora de ti, amor, eu não conheço ninguém chamado Carmo.
– Eu estava ao telefone com ela. Naquela noite, na cozinha. Ela… Eu dormi com ela.
Ele riu-se, mas foi uma gargalhada curta. Parou assim que aproximei a arma da sua cabeça.
– Sebastião, estás a dizer-me que me vais trocar por uma mulher?
– Não, Jorge, eu estou a dizer que te vou matar por uma mulher.
– Espera. Ouve. Não há nenhuma mulher. Não houve telefonema nenhum. Não há amante nenhuma. Tu bateste com a cabeça no lavatório e agora não sabes o que dizes. Tu precisas de um médico.
– E tu, tu precisas de um cangalheiro – respondo eu.
Mas as suas palavras incomodam-me. As suas palavras formam um círculo em redor da minha cabeça. Eu sei que não são verdadeiras. Eu sei que é apenas uma tentativa desesperada para salvar a sua vida.
– Mentira, Jorge. Mentira. Mentira. Mentira – digo e repito, e repito porque é a única palavra que faz sentido na minha cabeça. E cada vez que repito o meu dedo treme no gatilho.
– Sebastião, eu amo-te. Tu sabes que eu te amo.
Aperto o gatilho e uma bala rasga o seu peito. Aperto outra vez e o seu corpo roda no ar embatendo na parede. Não há som. Não há estrondo, nem grito. Aperto uma terceira vez e a luz deixa os seus olhos e o corpo, o seu corpo cai, inerte no chão. Não me lembro quantas vezes disparei. Só me lembro que a arma ficou sem balas. Há sangue por todo o lado. Principalmente na cama e na parede, mas também em mim. Estou coberto de sangue. Por todo o corpo tenho manchas, tenho salpicos do seu sangue.
Na casa de banho, o fluxo de água fria desperta-me para o mundo exterior. As minhas mãos lavam os meus braços e a água leva o sangue do meu amante morto.
Estou sozinho ao espelho. O inchaço está a desaparecer, o meu olho está quase normal. Quase me reconheço novamente.
– Acabou – digo em voz alta, para ninguém em particular. Momentos depois ela está junto a mim.
– Daqui a umas semanas vais à polícia e dá-lo como desaparecido. Quando perguntarem por que não foste mais cedo, diz que é habito ele desaparecer dias a fio. Irão suspeitar que tem outro amante e não te incomodarão mais.
– Sabes o que ele me disse antes de eu disparar? Que tu não existias.
– Mas eu existo – e a sua boca procura a minha e as suas mãos o meu corpo.
– Eu existo, e estou aqui.
Ela deita-me no chão, as suas mãos trabalham o meu baixo-ventre. Rasgando a minha camisa ainda manchada do sangue do Jorge, as suas mãos sobem e descem pelo meu peito, circundam o meu pescoço, enquanto ela lambe uma estrada em direcção ao meu estômago. O seu cabelo roça a minha pele. As minhas costas em arco. Eu gemo. Quase instintivamente meu corpo levanta-se e começa a subir e descer cada vez mais fundo, cada vez mais rápido. O orgasmo invade todo o meu corpo e ela mantém-me preso até me esgotar, até eu cair para trás no chão de azulejos, exausto, ofegante. Os meus olhos fechados.
É a luz que eu avisto em primeiro lugar, a luz brilhante no tecto da casa de banho. Estou deitado sobre o frio chão duro, o lavatório quase directamente sobre mim. Vejo uma linha escura, possivelmente sangue seco que tinha escorrido para baixo e fora da vista. Posso até tocar, mas não preciso. Eu sei que é meu. Levanto-me e olho-me no espelho. Sou eu, tudo bem. Nada foi alterado. O quarto está escuro e silencioso, mas não está vazio. Mesmo na sua quietude posso vislumbrar vagamente a forma do corpo em cima da cama. É um corpo que conheço bem, com curvas e ângulos. Se eu não respirar, quase posso ouvir os sussurros do seu respirar. Carmo dorme na minha cama.
Aproximo-me e deito-me. A minha roupa fica no chão enquanto me enrosco naquele corpo e nos lençóis. Plenamente consciente daquele braço em volta da minha cintura, suspenso entre o mundo e o sono, começo a sonhar. Nesse sonho, está alguém ao pé da porta, e fala para mim. Nesse sonho Jorge fala para mim.
– Temos de fazê-lo agora.
Pisco os olhos e ela está acordada, está a ir-se embora. Mas, em vez disso, ela fica, deitada a meu lado. De algum modo eu sei que ela se está a ir embora. Puxa-me para si e sussurra algo ao meu ouvido. Beija um lado da minha boca e carinhosamente toca minha bochecha. Meus olhos fecham-se novamente. Quando os abri, ela tinha desaparecido. Como se nunca ali tivesse estado. Os meus dedos tocam a minha boca, onde posso continuar a sentir os seus lábios.
«Agora estás livre… livre…», as palavras que ela sussurrou ainda ecoam na minha mente.
Quase não reconheço a minha própria voz quando digo: «Agora estou sozinho.»
Como sempre.

SER CAPAZ... 20 ANOS

Não sei se serei capaz, mas aqui vai…

Era uma vez um rapaz solitário, sensível e capaz das maiores atrocidades linguísticas.
É um desafio capaz de modificar a sua vida, não tanto pela veracidade dos factos, mas pela forma como os relata.
Sinto-me inseguro e pouco confiante para transmitir o meu «ser», a outra face, a minha vivência.
Mas acredito que libertarei alguns sentimentos e emoções.
Contar a nossa própria história é um desafio à nossa própria auto-estima. É o que vou tentar fazer.
Tenho saudades desses tempos, que revivo muitas vezes, pelas recordações sempre presentes.
Nasci na cidade do Porto, no ano de 1964, no Hospital de São João, e vivi durante os meus primeiros anos de vida numa rua perto do antigo Estádio das Antas. Nessa altura, enquanto bebé, tive uma doença no sangue, conhecida como «Púrpura».
Passados três anos, mudámos para Paranhos, perto do antigo campo do Salgueiros, conhecido por Estádio Vidal Pinheiro.
A minha meninice foi passada entre a minha casa e a casa dos meus avós maternos.
A casa dos meus avós fazia frente com a enorme Quinta do Covelo. Dois pisos, um de habitação, com uma cozinha enorme, onde sobressaía um fogão eléctrico, cujo forno era tão grande que cabia um peru inteiro para doze pessoas; e outro, de garagem, despensa e garrafeira.
Anexo à casa tinha uma fábrica e um jardim enorme e lindo, composto por uma vinha de uvas americanas, galinheiros, um lago com peixes, um grande poço e todo o tipo de hortaliças, flores e árvores de fruto. Tinha como vizinhos uns senhores que adoptaram uma menina de raça negra chamada Helena, com quem convivi e brinquei durante muitos anos. Hoje nada sei dela, como de tantas outras coisas que perdi o rasto. Ficaram as memórias de um tempo em que tudo era fantástico e grandioso.
O meu avô era um republicano de gema, desde o busto da República que tinha em casa ao içar da Bandeira Nacional naquele mastro gigante, todos os domingos e feriados nacionais.
Homem robusto, trabalhador, disciplinador e até ditador e com um feitio parecido com o meu, que fervia em pouca água, mas bondoso e amigo. Todos gostavam dele e respeitavam as suas vontades, Era um apaixonado da música sinfónica e filarmónica de tal forma que foi músico e tocou trompete durante muitos anos numa banda. A surdez afastou-o dessas lides musicais, nunca o vi nem ouvi a tocar, mas apanhei com ele a paixão do assobio. Lia «O Primeiro de Janeiro», «O Século» e «República» e tudo o que era informação.
Adorava as festas e os passeios com o meu avô, que não conduzia mas tinha carro - uma carrinha «Peugeot» muito antiga, mas muito bonita, de cor azul e de interiores em madeira. Todos os anos íamos buscar vinho verde tinto e algum branco, para engarrafar, a Paços de Ferreira. Era um ritual. Eu, o meu avô e o Sr. Acácio, que era motorista de táxi, parávamos para lanchar sempre numa adega rústica, onde eu comia para uma sandes de presunto e bebia o meu «sumol». O pior era engarrafar o vinho, era tudo tratado religiosamente, as garrafas eram lavadas com água e esferas de chumbo, depois eram passadas e lavadas com o próprio vinho.
Os passeios à semana e os lanches na Maria Rita e na Casa das Tortas. Ao sábado aqueles triângulos de pão de forma com fiambre e queijo, a acompanhar sempre o meu «sumol», para o meu avô era vinho branco «Três Marias» ou «Casal Garcia», na distinta Docemar. Os almoços em família, as idas a Famalicão, ao Tanoeiro e outras que tais que a memória vai apagando em mais de trinta anos decorridos.
As festas de Natal, a Páscoa, o São João, a passagem de ano, o meu avô adorava e tinha gosto nos présepios, nas cascatas, nas luzes que iluminavam o jardim, os balões, os foguetes, etc., sem falar nas comidas: o bacalhau, o cabrito e os bolos, que eram preparadas com afinco pela avó, tia e mãe. Embebedar o peru era outro motivo de excitação; o caramelo do pudim, que delícia!
Ouvia-se na noite de passagem de ano, antes ou depois da meia-noite, o hino da Maria da Fonte e o Hino Nacional e todos ficavam de pé. Também se ouvia noutras alturas muita música sinfónica, aqueles discos pesados de 78 rotações, Beethoven, Mozart e as valsas de John Strauss. As minhas primas e irmã eram mais os Beatles, José Afonso, Sérgio Godinho, Paulo de Carvalho, entre outros, os espanhóis Água Viva e muita música anglo-saxónica, Cat Stevens, etc.
Os amigos de escola e vizinhos ainda hoje se reúnem num jantar –
-convívio anual. Os mais velhos, agora perto dos 45 anos, e os mais novos, pela casa dos 30 anos, revivem as histórias mais marcantes e os jogos «Trinca Cevada», «Disco Voador», «Cintinho», etc., que fizeram parte da infância.
Tive uma péssima instrução primária na Escola Primária de Paranhos. A turma só de rapazes, os ditados, as cópias e o respectivo desenho eram o prato do dia, enquanto o professor namorava a empregada da directora da Escola. Dois anos chegaram para nunca mais recuperar os meus dons pela literatura, sempre tive aversão à leitura. Cresci sem gosto para ler, só se fossem uns «Tio Patinhas». A partir dos 8 anos de idade passei a usar óculos.
O problema foi detectado num rastreio que se efectuava nas escolas e foi também uma dor de cabeça para os meus pais, pois não havia haste ou lente que resistisse.
Nesse ano comecei a jogar basquetebol, ou, mais propriamente, minibásquete, no Académico do Porto, na Rua de Costa Cabral, onde conheci o Baptista e o Paulo Américo, ainda hoje grande amigos, mas com os quais durante alguns anos perdi o contacto após ter abandonado o basquetebol
No dia 25 de Abril de 1974, estava na 4.ª classe e fomos enviados para casa sem saber porquê. Várias tiragens de «O Comércio do Porto» matavam a minha curiosidade, mas estava totalmente a leste do significado dessa revolução. Mas fiquei com medo!
As férias eram feitas na praia de Leça, fizesse nevoeiro ou frio, de Julho a Setembro. A barraca estava alugada à Emília Barbosa. O meu pai ia levar-nos às nove horas da manhã e buscar-nos às cinco da tarde. Nunca hei-de esquecer a ronca do farol, que nas manhãs de nevoeiro se ouvia por toda a praia, nem dos gelados, vendidos naquelas bicicletas com arca frigorífica, nem das línguas-de-sogra, que eram transportadas em cilindros de chapa, nem da vendedora com os biscoitinhos de Valongo. A partir das onze horas o nevoeiro desaparecia e naquele areal extenso jogava-se à bola. A nossa preferência era o jogo da sameira. Havia campeonatos e regras estipuladas. A construção da pista era feita com uma cadeira de madeira das barracas e até havia prémio da montanha - um monte de areia molhada em caracol onde só cabia uma sameira de cada vez. A largura era mínima. Houve um ano que ainda fomos passar quinze dias para a lagoa de Santo André e outro a São Pedro de Muel.


II

Veio o ciclo preparatório no Augusto Gil, as reformas do ensino, as convulsões políticas, os atentados nas sedes da CGTP, PSR e afins, que proliferavam à volta da escola, na Rua de Santa Catarina.
O que relembro sempre era o roubo da fruta na mercearia. Dava um gozo especial, porque o senhor ficava indignado por lhe roubarmos a fruta. Era tipo o rato e o gato. Não era para comer, era só para chatear, que prazer! A tabacaria e os chupas de caramelo, as bolas de futebol de plástico e os cigarros «Kentucky» e «Definitivos», os mata-ratos. Eu não fumava! As idas à gruta num terreno abandonado, as guerras de pedras entre os alunos do ciclo e os da escola normal. E nunca hei-de esquecer os meninos de calções no Inverno, os irmãos Rothes e os meus dois primos, que também eram da minha turma, um já tinha sido expulso do Colégio dos Carvalhos e o outro era tão traquina que a minha tia tinha conta aberta na Carcereira, hoje Hospital da Boavista.
A primeira vez que entrei num estádio de futebol foi no Bessa, o Boavista contra o Sporting. Fui com o meu tio Eduardo num sábado à tarde. A família do meu pai era toda boavisteira e academista através do hóquei em campo, onde foram jogadores o meu pai e os meus tios. Mais tarde cheguei a ver alguns jogos de veteranos no Campo da Constituição e no antigo campo da Belavista.


III

Depois veio o liceu, no António Nobre, agora mais perto de minha casa. Aquilo é que foi! Eram todos os dias ameaças de bombas, escola fechada a cadeado, as lutas associativas estudantis no polivalente em tempo de campanha eleitoral. Uma frase, que eu nunca esqueci, dos anarcas, «deitar o liceu abaixo, para construir um novo, onde o polivalente devia dar lugar a uma piscina», os guarda-chuvas e os ovos com tinta, os primeiros comícios e os bloqueios de entrada a certos estudantes do liceu, as idas à livraria do Avante para partir os vidros das montras, etc. Valia tudo!
Comecei a participar em tudo o que era política, estávamos no chamado «Verão Quente», filiei-me no PPD e comecei por colar cartazes e a participar nas brigadas de limpeza, que era retirar os placares dos outros partidos na antiga rotunda da Circunvalação. Tempos controversos e de bastante convulsão. As organizações de esquerda estavam muito bem estruturadas. Tinham os metalúrgicos, entre outros, nós tínhamos o MIRN e o CDS e meia dúzia de durões, provenientes dos Liceus de D. Manuel e de Garcia de Orta e do Colégio Helen Key, entre eles o conhecido e famigerado Manuel Serrão, o Berto Spínola, irmão do amigo e colega da escola primária, Fernando, entre outros.
O problema eram as aulas, os testes e os exames obrigatórios. A minha turma tinha excelentes alunos, mas eu era mais virado para as festas, portanto sempre fui um estudante médio. Tinha uma «paixão» pela Educação Visual, não conseguia fazer um desenho, era um desastre! Tinha a sorte de ter um tio que era desenhador na Litografia Maia, propriedade de uns familiares da minha avó, e que me ajudava, mas estive para chumbar no 9.º ano por causa do exame de desenho. A sorte foi ter pedido recurso e o enunciado da prova estar mal feito, tendo-me sido dado nota para passar. Esse ano também estive bastante doente com um foco infeccioso que me afectou os dois olhos. O primeiro contacto com o hospital, os exames clínicos, a penicilina e as injecções de «Penadur» passaram a fazer parte da minha vida durante bastantes meses, sem se saber realmente o que se passou.
Concluiu-se que seria reumatismo infeccioso, que até hoje não me abandonou.
Penso que nesse ano, nas férias grandes, tive que acompanhar a minha irmã para a praia de Miramar. Ela tinha acabado o antigo 7.º ano e teve que fazer um ano cívico de prestação de auxílio aos socorristas da praia; mais uma transição na educação da altura.
Com o encerramento dos jornais «O Século» e «República», passou-se a ler os jornais «O Diabo» e «A Barricada» em casa dos meus avós, bem como a revista «A Gaiola Aberta», mais tarde também o semanário «Tempo».
A fábrica do meu avô, de fabrico de formas para bolos e cortantes para a indústria hoteleira, também passou por maus momentos e a paciência do meu avô já não era muita e a idade não ajudava.
Nas férias grandes comecei a vender esteiras para a praia e mais tarde fui trabalhar com o meu pai num armazém de miudezas e confecção de vestidos de noiva, de que era proprietário, na Rua do Almada. Lá ia ganhando um dinheirão com a venda das esteiras, percorrendo os bancos da Avenida dos Aliados. Deu-me para os meus gastos nas férias. Nesse ano fomos até Fuengirola, perto de Torremolinos, no Mediterrâneo, Espanha. Foi o meu primeiro contacto com águas quentes e com o calor tórrido. Nos anos seguintes fomos para Benidorm. Relembro os ingleses com uns penteados da onda futurista, ouviam-se os Duran Duran, Soft Cell, Human League, Spandau Ballet, etc. Até aos dias de hoje os meus pais continuam a ir quinze dias para Benidorm, na companhia da minha irmã, do meu cunhado e do meu sobrinho.


IV

Nova vida e uma nova fase. Passei, por ordem dos meus pais, para a Lúmen, na Rua da Boavista, onde estive até perfazer o 12.º ano. E quem fui lá encontrar? Os meus dois primos rebeldes. Um deles andava sempre de táxi, da Marechal para o café Bom Dia e depois para a Marechal Gomes da Costa. Tinha acabado de mudar para a nova casa, mas ainda não se tinha habituado aos ares da Foz, portanto ia e vinha durante o dia diversas vezes às Antas. Era, e ainda é, completamente doido!
Acho que foi nesse externato que comecei a ter outras vivências diferentes das que estava habituado. Conheci outro tipo de pessoas, a maior parte oriundas da Foz e de outros locais da cidade do Porto.
Estávamos no final do ano de 1980, ano bastante marcante para a minha vida - a morte fatídica do Doutor Francisco Sá Carneiro, que ainda recordo como se fosse hoje. No Coliseu do Porto, eram 21 horas, ia haver o comício de encerramento para as presidenciais da Aliança Democrática, com a presença do general Soares Carneiro, de Francisco Sá Carneiro e de Amaro da Costa. Nas ruas ouviam-se gritos de «assassinos», a mágoa, a revolta, o inconformismo, tinha morrido o meu ídolo de juventude. Senti-me vazio e sem saber o que fazer e a onde ir. Fui para casa chorar!
A Lúmen, onde também andavam o Zé, o Pedro e a Maria, respectivamente filhos e sobrinha de Sá Carneiro, esteve encerrada durante os actos fúnebres, tendo o silêncio permanecido por algumas semanas naquela escola.
Em casa do meu avô, ao lado do busto da República, existia agora uma fotografia de Francisco Sá Carneiro, que aí permaneceu até à sua morte.
Desse dia em diante, a política e a filiação praticamente acabaram!
Conheci vários ilustres da nossa praça, mas o mais castiço foi o Zé Luís, ainda hoje entre os grandes amigos, o Pedro Placas, o Albano e a Mónica, que na altura foi confundida como sendo professora e que acabou anos mais tarde por casar com o Albano, vindo depois os dois a ser os meus padrinhos de casamento. Mas voltando ao Zé, rapaz bem disposto sempre com uma piada nova, hoje mais conhecido por «Zé Moura» ou «Queijo», por ser gordinho. Nunca conseguia chegar às aulas a tempo, tinha sempre histórias para contar! Porque as noites eram longas. Ia com os tios e amigos para as «boîtes» da cidade. Ainda recordo o director, Cordeiro dos Santos, dizer-lhe: «Eu já sei, não tem aulas nem nada para estudar!» Risada geral.
Arrastados por ele, fomos parar ao Marquês de Pombal e começámos a estacionar na esquina dos correios do Marquês e a parar no Café Imperador, onde também se juntavam o Baptista e o Paulinho, antigos conhecidos do básquete, entre outros. Era malta da Escola Aurélia de Sousa, do Oliveira Martins e do Helena Key.
Passados vinte e tal anos ainda recordamos os velhos tempos e as nossas histórias. Juntou-se a nós o Moisés, que vinha lá do meio dos «ciganos», e a orquestra ia ficando completa. Ao fim da tarde, sem exagero, reuniam-se entre 20 e 30 rapazes e algumas, poucas, raparigas. O ambiente por ali era pesado, não naquele local, mas em todo o Marquês, café dos índios, as casas de máquinas, havia muita droga e afins. Mas o mais importante era arranjar miúdas para fazer festas em casa da avó do Zé Luís, no Bonjardim, que praticamente estava sempre na casa de praia na Aguda. Era só apontar números de telefones e, claro, o cicerone era o Zé, que fazia os convites, etc., tratava de tudo, era o máximo! Às vezes nem música havia, mas o que interessava era estar escuro, e dar uns beijitos. Até ao som de um relato de futebol se faziam festas.
Estávamos na altura do «Saturday Night Fever» e do filme «Grease» dos Bee Gees.
Faziam-se muitas festas particulares e os sons eram muito variados, desde o «funky», à «new wave», ao «punk» e ao «rock»; claro que os «slows» nunca podiam faltar, era da praxe.
Aos sábados à noite havia corridas de motas à volta do Marquês, com polícia de choque à mistura. Era a confusão total! Tínhamos a mania das francesinhas e cachorros no Chamiço e outros pratos no Paju, até ao Big-Ben íamos parar, coisas do Zé!
Nessa altura só tinha permissão de saída até a meia-noite. Era complicado fazer algo mais. Uma educação sem grandes benesses e com pouco diálogo, mas lá ia equilibrando as coisas, claro não contando que eram três contra mim, até a minha irmã ajudava à missa. Teria na altura já 18 anos.
Muitas das tardes, às quartas e sextas, foram passadas no café Orfeu e na discoteca Glassy. Foi o meu primeiro contacto com discotecas.
Aos domingos fazíamos um almoço no Lopes, na Areosa, uma adega manhosa, coisas do Moisés Macedo, pela certa, mas era engraçado. Íamos de autocarro, o Moisés vestia a farda castanha (uma imitação dos proxenetas da época), fato de bombazina castanho, com golas até aos ombros, calças à boca-de-sino e sapatinho de tacão afiambrado, uma camisa às flores e, o mais importante, um medalhão e uma cabeleira comprida aos caracóis. Claro, ia sozinho na frente do autocarro e nós cá trás a rir como uns perdidos com a cara das pessoas que entravam no autocarro e que ficavam estupefactas e com receio de sentar-se por perto. Só faltava o «Ford Capri» ou o «BMW 2002».
Namoradas, poucas, nunca fui muito de ter compromissos. A primeira a sério chamava-se Paula Taborda, morava em Álvaro Castelões e depois mudou-se para Damião de Góis. Por culpa dela tornei-me sócio do Futebol Clube do Porto e comecei a ser visita regular dos bares do Shopping Dallas e a acompanhar a irmã, que era comunista ferrenha. Foi com ela, pela primeira e última vez, que entrei na sede do Partido Comunista, na Avenida da Boavista. Quase que me benzi, mas até achei graça no fim da visita e senti uma mistura enorme de sentimentos.
Por essa altura, a visita da Sua Santidade o Papa à cidade do Porto, onde fez a sua aparição na Praça Humberto Delgado, marcou-me pela positiva e deixou-me bastante emocionado, pela beleza, pela cor e pela fé transmitida.

Passaram mais de quarenta anos. Dedico este miniconto a todos os que já não se encontram fisicamente entre nós e que contribuíram para a pessoa que sou hoje!