Foi
naquela rua que aprendi a andar, a caminhar para ir para a escola e para a
brincadeira e a jogar à bola. Foi também naquela simples rua que um dia parti o
vidro da vizinha, que chorei uma paixão não correspondida e fui para a escola
primária e mais tarde para o liceu e para a faculdade. Foi lá que me sentei na
porta da minha antiga casa e esperei por minha mãe e meu pai, porque afinal nem
a chave da porta tinha. Tantas coisas tem a rua onde nascemos que nem sequer as
vemos, mas na minha rua até pedras, muros e formas eu conheço. Foi ali que senti
calor, frio e chuva e andei de um lado para outro.
Eu
tenho uma rua onde nasci e lembro-me dela, recordo-a como se fosse minha, pois
no meu coração tem um canto que, ao vê-la, a sinto como se fosse familiar,
amada e martírio. Vi por ela passar velhos, novos e miúdos, vi meu filho e minha
filha aprenderem a andar. Foi ali mesmo em frente à minha porta que um dia fui
noivo para a igreja e me casei e vi chegar tantas vezes meu pai e minha mãe. O
que ela lavava e varria. Que saudades tenho da minha rua, tão bela, com as
portas de todos os vizinhos que amo. Tenho a lembrança de suportar a dor de os
ver também partir.
A
rua de Lisboa é identificada, mas falta a história. Foi de pedra basalto, mais
tarde alcatroada, esburacada com novos apetrechos e dotes de urbe ou capricho
de engenheiro da câmara.
Todos
os que por uma rua passam nem imaginam o que se passou e passa — zanga, paixão,
dor, amor — e tanto sem ver se sente, nos muros, nas pedras e até nas ervas
limpas pelo homem dos serviços municipalizados. As ruas eram lavadas, varridas
e mantidas limpas, com lixos, bichos e outros, com muitas coisas e vida havia
na rua e há por certo na rua onde nasci.
Recordo
que observava de menino o formigueiro que por ali passava e as gentes, o
comércio e a luta que despertava e me fazia ver que a vida é mais.
Na
rua identificava o Sr. Costa, que numa carrinha Volkswagen, tipo pão-de-forma, vendia pão que eu também ia comprar.
Nessa mesma rua vinha um casal — a D. Rosa e Sr. José — com a carroça, com uma
égua sublime e forte. Vendiam fruta e legumes e riam, divertiam-me, e sabiam que
eu um dia queria ser médico e sou. Também me lembro do homem do «pitrólio», do
funileiro que concertava panelas e tachos. Do Ti Amolador e da sua gaita-de-beiços
a anunciar chuva, a reparar e a amolar tesouras e facas. Recordo-os com saudade
e gosto, todos eles foram meus heróis e vida de ser e gostar.
Quantas
cores, odores e amores tive na simples rua e vi flores de Primavera, retive
frio de Inverno, recebi granizo no pêlo, calor passei e tanto suei com a
recomendação de minha mãe: «Usa sempre chapéu!»
Por
aquela serena e discreta rua passaram trabalhadores, operários, presidentes,
ministros e mais gente rica e pobre, honrada e imaculada e manchada pela desgraça.
Nessa rua minha mãe ensinou-me sempre a olhar as gentes e dizer coragem,
esperança, dar, ouvir e nem sempre desconfiar. Com meus pais aprendi o que sou,
pois foi isso que aprendi na rua onde nasci.
Na
minha rua meu irmão fugiu de uma vaca que se tinha escapado de um barco da zona
ribeirinha e que até veio no jornal, colhida nem tanto e hoje esquecida, mas
que assustou tudo e todos.
Aprendi
ali a conduzir e a saber andar de bicicleta, mas também de patins, ali na minha
rua caí e esfolei-me. Tantas coisas aconteceram: revolução, procissão e até
conversa amena em noite de Verão. Sentados ao fresco, vizinhos e amigos, era a antiga
Lisboa, eram gentes que vinham de fora e se integravam no mundo citadino. Ali
havia pedreiros, carpinteiros, doutores e amigos, hoje nunca esquecidos, pois,
se nos encontramos, festejamos e adoramos lembrar, ai lembrar, os tempos
daquela simples rua de Lisboa.
Vi
moças bonitas, casamentos e batizados, funerais e mais que me esqueci, mas houve
um dia que chorei e me despedi da minha rua. Meu pai partiu, minha mãe também,
fomos eu e meu irmão e chorámos tanto, abraçámo-nos naquela rua que foi nosso
berço e embalo, doença e alegria e agora um adeus tenho de dar.
Volto
e voltarei ali a passar e direi: «Morei aqui e amei.»
Lembrança
forte e terna da rua onde nasci.
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